O lucro e a fé – Por José de Souza Martins
Não é de hoje que o efeito
desagregador do capitalismo bate de frente com a Igreja Católica.
Na foto, o sorriso sem graça de
Evo Morales é decifrado pela expressão de desapontamento do Papa Francisco no
ato cerimonial de entrega do presente que o governo boliviano fez ao
representante do Estado do Vaticano. É a escultura de um Cristo crucificado sobre
a foice e o martelo, símbolo do comunismo. Foi um presente de mau gosto. Outros
governos, em diferentes países, têm cometido descuidos parecidos.
O Museu da Presidência da
República, em Lisboa, expõe presentes dados aos governantes portugueses. Um grotesco
e antiecológico casco de tartaruga, sobre a qual um primitivista pintou uma
paisagem, foi presente de Juscelino Kubitschek ao presidente Craveiro Lopes de
Portugal. Está lá, no meio de objetos de prata e de obras de arte.
O regalo se destaca pela impropriedade.
É verdade que anos depois o presidente Ernesto Geisel nos redimiu oferecendo a
outro presidente português uma bela escultura de Bruno Giorgi. No caso de um presente a uma
pessoa como o papa, é sempre complicado lidar com objetos simbolicamente
controvertidos como dádiva a quem é altamente simbólico, pela posição que ocupa
e por aquilo que personifica. Francisco ao ver o objeto comentou: “Isso não
está certo”.
Trata-se da réplica de uma
escultura simples feita pelo jesuíta Luís Espinal, assassinado na Bolívia, em
1980, durante a ditadura militar. O original pertence a outro jesuíta, que
estava no mesmo quarto em que o assassinato se deu. Um conjunto de interpretações
tentou consertar a antidiplomacia do gesto de Evo Morales, ele próprio dizendo
ter julgado que o presente agradaria o papa dos pobres, tendo em conta que ele,
a caminho de La Paz, parara no local do assassinato para rezar. Mas papa dos
pobres não quer dizer papa da foice e do martelo. Não é preciso ser comunista
para se interessar pelos pobres, os que Marx definia como lúmpen-proletários,
os sem lugar ativo no processo histórico, o oposto do proletariado do apreço
marxista.
O incidente aponta para um
conjunto de símbolos trocados e de personagens interpretando o objeto e o ato a
partir de sistemas simbólicos opostos. Desde os anos 1960, a aproximação entre
grupos da Igreja Católica e facções dos partidos comunistas tem sido demarcada
pela tentativa de produzir um quadro de referência comum que permita o diálogo
e a convivência entre materialistas e crentes, além da ação política conjunta.
Tem sido um esforço para superar
o veto católico ao comunismo e seus desdobramentos no âmbito da religião e da
fé. Quando da morte de Che Guevara na guerrilha da Bolívia, uma fotografia do
cadáver percorreu o mundo como ícone de um Cristo latinoamericano imolado pelo
poder do imperialismo explorador, inimigo dos humilhados e ofendidos da terra.
Mais adiante, começaram
peregrinações de católicos de esquerda ao lugar dessa morte. Mas não se fala
que nas anotações do diário do Che, feitas poucas horas antes de sua captura e
assassinato, ele se dera conta do equívoco de não ter se aproximado dos
camponeses, cuja causa supostamente defendia. Era tarde demais. Che estava só.
Desde então, esforços foram feitos,
tanto por setores da Igreja, quanto por diferentes grupos de esquerda para uma
aproximação recíproca, o que não suprime equívocos frequentes de ambos os
lados. Agora mesmo, na visita do papa a
Equador, Bolívia e Paraguai, um militante brasileiro chegou a declarar que
“eles” têm Obama e “nós” temos Francisco. O primeiro representando o
capitalismo iníquo e opressor e o segundo representando o anticapitalismo
libertador.
A crítica católica ao capitalismo
vem de longe. João XXIII, Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI a fizeram em nome
de uma matriz conservadora, centrada na pessoa contra o mundo que gerou a
figura segmentária, alienada e solitária do indivíduo, mais jurídica do que
vivencial. Bento XVI, que cita Marx e nem por isso é marxista, retomou, num de
seus documentos, o texto de Karl Marx que mais atrai e sensibiliza os cristãos
que é o capítulo sobre alienação nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos, do
mesmo modo que recorreu a Freud para falar sobre a libido no documento sobre o
amor.
O efeito, socialmente
desagregador e desmoralizador, do primado do lucro no mundo contemporâneo não
pode deixar de encontrar pela frente a resistência da Igreja Católica. A
decomposição da pessoa e das instituições que dela derivam corrói as bases
sociais da fé e anula a própria religião, diluída na errância de uma
religiosidade de resultados, em que cada um inventa a sua.
Os discursos do papa sobre as
iniquidades do mundo subjugado pelo capitalismo não podem ser interpretados
como uma adesão ao chamado bolivarianismo, o que quer que isso signifique, e
aos socialismos tópicos e superficiais de uma América Latina de incertezas e
misérias.
Tão escabrosas que nem mesmo os
presos de uma prisão boliviana visitados pelo papa, injustiçados pela vida e
injustiçados pela Justiça, estão minimamente assistidos pelo mesmo governo do
Cristo crucificado na foice e no martelo.
José de Souza Martins - sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP, escritor, entre outros livros, autor de A politica do Brasil lúmpen e místico (editora Contexto).
Fonte: http://alias.estadao.com.br
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