O Peso do véu: a vida de muçulmanas no Brasil - Por Isabela Bonfim
No Paquistão, uma mulher
muçulmana pode ser legalmente apedrejada por cometer adultério.
Sarah Ghuraba, de 27 anos, tinha
consulta marcada e se dirigia a um posto médico perto de casa, quando foi
surpreendida por uma pedrada na perna. O agressor gritou “muçulmana maldita” e
fugiu. A cena não se passou no Paquistão, mas em um bairro da zona sul de São
Paulo. No Brasil, apedrejamento é crime de lesão corporal com pena prevista de
três meses a doze anos de prisão. Sob nenhum aspecto, no Brasil ou no Paquistão,
o apedrejamento é aceito pelo Corão, livro sagrado do islamismo.
Sarah não é adúltera. Ela
acredita ter sido apedrejada por ser muçulmana e escolher vestir o hijab, véu
tradicional usado por mulheres adeptas do islã para cobrir a cabeça. A agressão
aconteceu em Janeiro, uma semana depois do atentado ao jornal satírico Charlie
Hebdo, em Paris, em que doze pessoas foram assassinadas a tiros por radicais
islâmicos.
Os autores pretendiam vingar o profeta Maomé, alvo de charges da
publicação. Na manhã seguinte ao crime na França, o principal templo islâmico
do Brasil amanheceu pichado em São Paulo. Outros casos de violência contra
mulheres muçulmanas foram registrados em Minas Gerais e Mato Grosso.
Sarah foi ao Facebook contar sua
história de agressão com a intenção de alertar outras mulheres. “Somos vítimas
da islamofobia, da ignorância, da falta de informação e da informação
distorcida”, diz Sarah. Ela identifica um padrão de comportamento: sempre que
há um atentado promovido por radicais religiosos na Europa e nos Estados
Unidos, com ampla divulgação pela imprensa, há também um aumento do ambiente de
rejeição no Brasil, país naturalmente mais ecumênico. Vestida com túnicas e
véus, a mulher muçulmana é alvo facilmente identificável e, por consequência,
mais vulnerável.
As hostilidades costumam acontecer nos ônibus e vagões do
metrô. Entre empurrões, cotoveladas e xingamentos, muitos se recusam a sentar
ao lado de mulheres que usam véu. Outros tentam arrancá-lo à força.
Mulheres como Sarah sofrem
duplamente. Os próprios companheiros de fé alimentam o preconceito, ao
transformar a religião em arma com o pretexto de vingar ofensas a seus profetas
e símbolos. Como reflexo, mulheres são agredidas por pessoas incapazes de
compreender e aceitar o credo alheio. Se há o islamofascimo, há também a
islamofobia, ambos intoleráveis.
A mulher no islã
O uso do hijab é uma obrigação no
islã. “O preceito religioso é claro, quando a mulher sai à rua, ela tem de se
cobrir. Faz parte da formação cultural dela e, nesse contexto, ela não se sente
oprimida. No Ocidente, temos dificuldade de enxergar dessa maneira”, explica a
antropóloga da Universidade de São Paulo (USP), Francirosy Campos Barbosa
Ferreira, especializada em contextos islâmicos e árabes. A principal metáfora
para o uso do hijab relaciona a face feminina coberta a pedras preciosas.
“Ninguém deixa uma joia valiosa exposta e o véu é como se fosse a caixa da joia
que protege a beleza mulher. A gente usa para não despertar o interesse de
homens na rua”, diz Mag Halat Gebara, de 21 anos, muçulmana residente em São
Paulo.
Para Francirosy, dentre as
religiões monoteístas, o islã é o que dá maior espaço a mulher. “Elas podem
escolher com quem se casar, exigir o divórcio e têm direito à herança”.
São conceitos estabelecidos pelo
Corão há catorze séculos. Direitos semelhantes só viriam a ser conhecidos pela
mulher ocidental na idade contemporânea. No papel, e numa linha cultural
através dos séculos, soa bonito e civilizado, no entanto, boa parte das nações
majoritariamente islâmicas são teocracias, ditaduras que impõem às mulheres a
humilhação alegando apoio nos textos do Corão.
“A mulher ser proibida de dirigir
ou frequentar a escola são leis de alguns países, não faz parte do islã. As
pessoas confundem a instituição política com a religião”, Sheikh Jihad
Hammadeh, da Mesquita Abu Bakr em São Bernardo do Campo (SP).
É importante ressaltar que muitas
leis de estados islâmicos não aparecem no livro sagrado que teria sido revelado
a Maomé. “A mulher ser proibida de dirigir ou frequentar a escola são leis de
alguns países, não faz parte do islã. As pessoas confundem a instituição
política com a religião”, explica o Sheikh Jihad Hammadeh, da Mesquita Abu Bakr
em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo. Os muçulmanos pagam o preço
dessa confusão, mesmo porque, quando se olha o mapa-múndi, o islã de hoje
parece não combinar com democracia.
O islã no Brasil
Como em qualquer lugar do mundo
ocidental, também no Brasil as mulheres muçulmanas sofrem com a adaptação ao
cotidiano, sobretudo quando se vestem de modo inabitual do ponto de vista de
quem não professa o islamismo. Comunidades muçulmanas que buscam se assimilar
perfeitamente ao cotidiano brasileiro são bem aceitas. Mas o preconceito se
fortalece quando se acrescenta uma informação estética estranha aos costumes
locais, como o véu.
Nesse aspecto, o Brasil é um
espelho do mundo, ainda que na infância das questões ligadas ao islamismo.
Segundo o IBGE, a população muçulmana cresceu 29% entre 2000 e 2010. Hoje, de
acordo com o levantamento oficial, 35 mil brasileiros se identificam como
muçulmanos, mas a comunidade islâmica estima que o número já supere 1,5 milhão.
Só no estado de São Paulo seriam 300 mil.
Outros estados com forte presença
muçulmana são Paraná, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Rio de Janeiro. “A
religião chegou com a imigração, mas hoje é muito grande a adesão de
convertidos”, afirma o Sheikh Jihad Hammadeh.
Com o crescimento de fiéis, e a
expansão de radicais incapazes de separar fé e razão, de saber quais papéis são
atribuídos ao Estado, quais devem ser da Igreja, apelando ao terrorismo, os
muçulmanos brasileiros inadvertidamente atraem o ódio inexplicável. As
mulheres, que calorosa e carinhosamente demonstram seu credo, parcialmente
cobertas, são transformadas em presas. As agressões de origem religiosa
são uma preocupante novidade no Brasil, país que mistura Alá até mesmo com
Carnaval.
O islamismo cresceu 29% no Brasil
em dez anos. O número é 2,5 vezes maior que o crescimento da população geral.
(IBGE).
Muçulmanas em São Paulo
Quando Sarah Ghuraba se converteu
ao islã, a adaptação às vestimentas foi o mais fácil. Já a predileção pelo
preto não é imposição religiosa, mas gosto pessoal. “Eu sempre fui roqueira e
só usava roupas largas e pretas”.
Entre as bandas prediletas, estão
The Doors e Slayer. Ela não escuta mais rock atualmente, porque a música, em
geral, não é bem vista no islã. O namorado guitarrista, Sarah conheceu no
Orkut. Mas para que viessem a se casar, ele também teve de se converter e
deixar a guitarra.
É apaixonada pelo seriado
Supernatural, joga videogame e é viciada em Resident Evil. Nas horas livres,
vai ao Parque do Ibirapuera patinar com os amigos. Quando mais nova, decidiu
ser freira e desistiu no último ano. O primeiro Corão, Sarah ganhou de um
seminarista e começou a levá-lo para as aulas de teologia. A resistência e
intolerância dos frades gerou também o primeiro desconforto com o catolicismo.
Foram quatro anos de estudo até que ela decidisse se converter. “O principal
motivo foi a condição da mulher. No islã, ela é a base da religião”.
Houve muita resistência por parte
da mãe. “Ela batia panelas na hora das minhas orações e colocava porco na minha
comida por maldade”. Mas o maior preconceito, ela sentiu na rua. “Na primeira
semana em que coloquei o hijab, uma mulher cuspiu em mim dentro do ônibus”,
diz. Essa foi a primeira de uma série de agressões físicas e verbais que Sarah
enfrenta diariamente. Há três anos, ela levou uma porrada no rosto em plena Avenida Paulista. “Fico imaginando que um dia a gente vai morrer e aí sim as pessoas
vão entender o que acontece e tomarão uma providência”.
Brasileira de família libanesa,
Mag Halat Gebara mora na zona leste de São Paulo. Estudou em escola islâmica e
cresceu sob os costumes da religião, mas decidiu usar o véu há menos de um ano.
“Ninguém na minha família usa hijab, nem minha avó de setenta anos”.
A família muçulmana foi a primeira a
protestar, com receio de que Mag sofresse preconceito. “Antes eu passava
desapercebida, nunca ninguém soube que eu era muçulmana. Com o véu, você passa
a representar a religião”.
Viciada em maquiagem e apaixonada
por moda, a decisão de usar o hijab é um desafio cotidiano. “Não é só um véu na
cabeça, você tem que se vestir com modéstia, estar sempre de manga comprida e
com roupas que não marcam o corpo”. Para continuar a se vestir bem, mas dentro
dos padrões islâmicos, ela busca tutoriais e acompanha blogueiras muçulmanas.
“Não existem muitas no Brasil, como sempre gostei de escrever, às vezes penso
em abrir o meu próprio blog”. Além da faculdade, ela sai com os amigos,
muçulmanos ou não. Visita exposições, assiste a filmes e adora cantoras pop
como Ellie Goulding e Beyoncé.
Ela já foi questionada se usa o
hijab 24 horas por dia ou se pode tirar para tomar banho. “As pessoas acham que
o véu é uma punição ou castigo. Perguntam por que meu marido fez isso comigo.
Foi uma escolha minha, meu marido nunca me pediu isso”.
Mag casou aos 19 anos
com um rapaz muçulmano que conheceu aos 15 e nunca teve outro namorado. Os
irmãos acompanhavam o casal nos encontros. Ela acredita que casou cedo e sem
muita intimidade, mas não vê nisso um problema. “Ninguém se conhece 100% antes
de se casar. Eu sou uma pessoa normal, tenho uma boa relação com meu marido e
também compro lingerie”.
Um dos programas favoritos da
Érica Renata Paiva é andar no shopping e ir ao cinema, passeio em que ela
frequentemente encontra alunos e tira uma foto sorridente. Foi assim que eles
descobriram que, fora da escola, a professora usava véu. Ao se converter, há
mais de oito anos, Érica teve receio de usar o hijab no ambiente de trabalho.
Foi advertida quando pediu permissão ao diretor e, ao insistir no uso, foi
demitida. Hoje, ela trabalha em outra escola e não abre mão do direito. “O
hijab é parte de mim. Sem desmerecer a profissão, se eu tivesse que me submeter
a tirar o véu para entrar em um emprego, eu ia preferir fazer faxina a ser
professora”.
Alegre e carismática, ela procura
sempre variar nas roupas. “Eu sou muito vaidosa, meus alunos nunca me viram repetir
um hijab”. Ela também gosta de usar calças mais largas e adapta as peças para
ficar dentro do padrão islâmico. “Eu crio moda, mas as roupas são sempre
discretas e elegantes”.
Ela explica que a vaidade é um pecado, mas que
procura se afastar disso. “Ser muçulmano não significa ser uma pessoa perfeita.
Significa ser uma pessoa que busca a perfeição todos os dias”.
Érica descobriu o Corão na
faculdade, com um amigo muçulmano que lecionava árabe. “É um livro essencial,
muito bonito do ponto de vista da perfeição da escrita”. Mas acredita que
existe muito preconceito e confusão em torno da religião.
“A primeira pergunta que me fazem
é se falo português, se sou desse país”. Natural de Curitiba, Érica se casou na
igreja católica aos 16 anos e tem uma filha. Agora, ela está noiva de um
brasileiro muçulmano. “Ele não se importa se sou divorciada, para o islã a
mulher é uma jóia e a separação é permitida”.
Fonte: http://elastica.abril.com.br
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