Audiência destaca perseguição religiosa, violência contra jovens negros e burla às cotas raciais


Sem negar os avanços da luta pela igualdade racial no país, participantes de audiência pública na Comissão de Direitos Humanos, reunidos nesta segunda-feira (24/08), homenagearem o ativista Abdias Nascimento e denunciaram situações que consideram reveladoras da resistência do racismo na sociedade brasileira.

Citaram, entre outros fatos, os números de jovens negros vitimados pela violência, burlas ao sistema de cotas raciais na educação e em concursos e atentados contra seguidores de religiões afro-brasileiras.

O escritor nigeriano Wole Soyinka, Prêmio Nobel de Literatura em 1986, um dos participantes da audiência, observou que as forças da intolerância, do preconceito e da discriminação são o oposto a tudo o que Abdias representou e lutou para fazer valer. 

Salientou que essas forças estão “vivas” e ameaçando todo o mundo, inclusive a África e o “mundo dos orixás”. Soyinka comparou o obscurantismo dessas forças a uma nova forma de escravidão, que a seu ver esconde-se “sob a máscara da religiosidade, da certeza moral e do moralismo religioso” para aniquilar valores e crenças diversas.

“É incrível que no início desse novo milênio tenhamos esse movimento na direção da reescravização não apenas de um povo específico, mas de toda a humanidade. Vocês conhecem alguns desses nomes do obscurantismo, alguns deles chamados de Isis, Al Shabá e, na Nigéria, o Boko Haram, aqueles que sequestraram mais de um ano atrás 270 alunos e alunas na escola, e tenho vergonha de dizer que nós ainda não sabemos onde estão essas crianças”, denunciou Soyinka.

A audiência teve como tema Grandes Vultos: O legado vivo de Abdias Nascimento. A proposta foi do presidente da comissão, senador Paulo Paim (PT-RS), que também dirigiu os trabalhos. Para o senador, o evento serviu para renovar a luta de um brasileiro que sempre buscou soluções efetivas para “a desigualdade social que sempre pesou contra o povo negro”. “O povo há de contar em versos e prosa a tua história, a história de um guerreiro e de um lutador”, disse Paim.

Economista, jornalista, poeta e dramaturgo, homenageado foi também senador pelo PDT do Rio de Janeiro, entre 1997 e 1999, ocupando a vaga de Darci Ribeiro. A audiência serviu ainda para o relançamento de sua biografia, editada pela série Grandes vultos que honraram o Senado, lançada em 2014, como parte das homenagens pelo centenário. Ele havia falecido três anos antes.

Vandalismo

Viúva de Abdias e autora da biografia, Elisa Larkin Nascimento disse que não faria sentido apenas realaçar o trabalho, mas fazer do momento uma oportunidade para chamar a atenção para questões atuais de racismo. Hoje diretora do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro), que fundou junto com Abdias, ela disse que o genocídio da juventude negra e a intolerância religiosa são os problemas mais aflitivos. 

Lembrou que no mesmo dia, ao ler o jornal de Brasília, se defrontou com notícias sobre atos de vandalismo contra terreiros de religião africana na capital federal. “A melhor maneira que temos de lembrar Abdias é trazendo essas questões ao debate”, disse ela.

Ivanir dos Santos, da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, observou que os casos de vandalismo e ataque aos centros de umbanda e candomblé pelo país inteiro estão crescendo e precisam ser enfrentados. Lembrou que um caso simbólico foi a pedrada recebida pela menina Kailane Campos, candomblecista do Rio de Janeiro, em Junho. Contra esse tipo de violência, anunciou uma Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa, na Praia de Copacabana (RJ), no próximo dia 21/09.

Ivanir também sugeriu uma audiência pública conjunta das CDHs da Câmara e do Senado, acatada por Paim e pelo deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ), também presente à audiência. Depois, o deputado salientou a importância de mostrar para as gerações mais novas as conquistas obtidas a partir de ações políticas e culturais lideradas pioneiramente por Abdias. 

Jean disse entender os sentimentos do ex-senador em sua solidão na defesa de temas com pouco destaque, à sua época o racismo, e agora o homossexualismo e as questões de gênero, motivo pelo qual disse ser hoje “combatido e difamado”: “Nesse ponto de vanguarda me conecto com ele, imagino a solidão dele, que é muito parecida com a minha”, afirmou.

Cotas

Ao tratar da política de cotas para negros, Frei David Santos, diretor executivo da Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes (Educafro) denunciou que esse instrumento de ação afirmativa está sendo corroído. O motivo seria a apropriação de vagas por pessoas que, mesmo sem traços fenotípicos evidentes, alegam descendência africana para conquistar mais facilmente as vagas ofertadas. 

O frei citou o caso recente de uma pessoa loira, de olhos azuis, que se inscreveu por meio das cotas e passou no concurso do Itamaraty, alegando ter um consanguíneo negro. O candidato não tinha pontuação suficiente para concorrer às vagas gerais.

Na visão de Frei David, os que assim agem são “pessoas sem ética” que buscam se favorecer de brechas da legislação de cotas. Chegou a identificar uma “forte conspiração” contra a comunidade negra gerada pelo direito administrativo e a inação dos gestores públicos contra os que se autodeclarem negros apenas para assumir vagas que, a rigor, não poderiam disputar. 

Observou que, ao atestar a constitucionalidade das cotas, o Supremo Tribunal Federal (STF) corroborou a autodeclaração, mas também as comissões criadas para averiguar a veracidade da informação do candidato.

“Entendemos que as cotas não estão aqui porque você tem genotipia. Elas foram lutadas e trabalhadas para quem tem fenotipia. Esse conflito precisa ser trabalhado nos governos federal, estaduais e municipais”, pediu.

Em reforço a Frei David, o advogado Humberto Adami, do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), disse que a falta de ação dos gestores para inibir a burla às cotas se insere no contexto de práticas do aparelho do Estado brasileiro que são expressão de racismo institucional. Segundo eles, mesmo quando as políticas públicas existem, elas não alcançam efetividade porque há “racismo e sabotagem”.

“É preciso personalizar, identificar quem são esses agentes do Estado que estão permanentemente boicotando as políticas de ações afirmativas e levar a questão ao âmbito do Judiciário brasileiro e, se não for suficiente, também às cortes da OEA”, defendeu.

Conquistas

Para o diretor do Departamento de Direitos Humanos e Temas Sociais do Ministério das Relações Exteriores, ministro Alexandre Ghisleni, o Estado brasileiro já abraçou o desafio feito por Abdias Nascimento de deixar a retórica e partir para a ação, não encobrindo mais o racismo no país e buscando promover a verdadeira inclusão. 

Segundo Ghisleni, isso já é um fato, e quem quer que assuma o poder terá que dar prosseguimento à bandeira. “Hoje já temos um histórico de políticas públicas, medidas afirmativas e um histórico legislativo, como o Estatuto da Igualdade Racial”, citou.

Alexandre Ghisleni também citou avanços obtidos no âmbito da política externa brasileira, como a criação de um grupo de trabalho afrodescendente no âmbito do Mercosul e da Cúpula da Comunidade dos Estados Latinoamericanos (Celac), a criação da Década de Ação dos Afrodescendentes Latinoamericanos e Caribenhos no âmbito das Nações Unidas, com trabalho para a atualização de padrões internacionais no combate ao racismo e à xenofobia.

Giovanni Harvey, secretário Executivo da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), citou as mesmas ações governamentais como exemplo de conquistas obtidas pelos movimentos pela igualdade racial. Depois, mencionou a “janela de oportunidades entre 2015 e 2022” vivida pelo movimento negro e pela secretaria, um momento histórico para corrigir distorções durante o bônus demográfico brasileiro. 

Entre as principais ações governamentais, citou, estão as que buscam reduzir as mortes de jovens negros, pois a redução dessa população em idade produtiva e economicamente ativa diminui as expectativas de ganho para a sociedade brasileira no período citado.

Cida Abreu, que preside a Fundação Palmares, destacou também a criação da Fundação Palmares e sua importância na formulação de políticas que passaram a ser implantadas. Ela lembrou que a entidade nasceu como demanda do movimento negro, com o apoio de Abdias. Isso ocorreu durante o processo de redemocratização do país, momento em que se intensificou a discussão de direitos e participação dos negros na sociedade.

Quilombolas

Mário Theodoro, coordenador da Iniciativa Legislativa Popular pela Criação do Fundo da Igualdade Racial, citou Abdias como o mais importante ativista negro do país, o inspirador das novas gerações. Sobre a criação do fundo, disse se tratar de medida fundamental para potencializar as políticas de igualdade e de compensação aos descendentes de escravos, inclusive a garantia de terras quilombolas.

A secretária de Políticas para as Mulheres do Distrito Federal, Marise Nogueira, reconheceu a importância de Abdias, seus contemporâneos e das gerações que se seguiram para as conquistas em favor população negra, inclusive a política de cotas. 

Para Anani Dzidzienyo, professor da Brown University, Abdias foi ainda o primeiro e mais importante brasileiro e afrodescendente a dar ênfase ao Brasil, no contexto internacional, falando sobre as relações raciais. “O ativista abriu as portas pelas quais hoje muitos, como o senador Paulo Paim, caminham”, frisou. 

José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares (Unipalmares), lembrou-se da luta para a criação da instituição, um espaço de ensino superior para resgatar a história e construir uma nova massa de intelectualidade negra. Segundo ele, todos taxavam os pais da iniciativa como “loucos”, mas Abdias mandava que os “sem juízo” continuassem inclusive ofertando seu gabinete do Senado como plataforma, emitindo cartas para que os órgãos públicos os recebessem e debatessem a proposta.






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