Associação Mundial de Psiquiatria admite relevância da espiritualidade nos problemas de saúde – Por Gláucia Chaves



A relação entre espiritualidade e saúde já é estudada há algum tempo, mas começa a receber cada vez mais atenção tanto do público quanto da comunidade científica.

“Todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara loucura”.

Em 1956, quando lançou sua obra-prima, Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa antevia uma discussão que até hoje não encontrou consenso. A ligação entre espiritualidade e psiquiatria é um campo de estudo antigo, mas que só agora é considerado passível de investigação científica. 

No início deste mês, durante a 33ª edição do Congresso Brasileiro de Psiquiatria, a Associação Mundial de Psiquiatria (WPA) divulgou um posicionamento sobre o tema. Segundo a entidade, “nas décadas recentes, tem havido uma crescente conscientização pública e acadêmica sobre a relevância da espiritualidade e da religião para os problemas de saúde”. Até agora, a WPA já identificou mais de 3 mil estudos afins.

Além da melhora na qualidade de vida e no ganho social do indivíduo, os trabalhos demonstraram que a espiritualidade tem implicações expressivas em campos espinhosos da psiquiatria, como a prevenção do suicídio e a recuperação de suicidas. A falta do lado espiritual (ou uma visão distorcida, “fanática”) pode, por outro lado, piorar quadros depressivos e aumentar as chances de abuso de drogas, além de outros transtornos mentais.

Alexander Moreira-Almeida, coordenador das seções em espiritualidade e psiquiatria da WPA e da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), explica que uma das definições mais aceitas de espiritualidade é “busca pessoal por questões fundamentais sobre a vida”. “Há até uma relação fundamental com o sagrado e o transcendente”, completa o especialista, que também é diretor do Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

Essas duas palavras, sagrado e transcendente, são centrais quando o assunto é espiritualidade. A partir delas, pode-se ou não formar uma comunidade, que seria, de acordo com Alexander, a religião. “A religião é um sistema de crenças e práticas que busca a aproximação com o sagrado e com o transcendente. Uma religião seria a forma institucional, coletiva, de espiritualidade”. É perfeitamente possível, portanto, haver espiritualidade sem religião.

Segundo o médico, a previsão da ciência era de que a humanidade trocaria a religiosidade por uma visão estritamente materialista da vida entre o fim do século 19 e o início do século 20. Não foi o que aconteceu. A humanidade, em sua maioria, mantém crenças e práticas religiosas e espirituais. 

No Brasil, especificamente, a religião ainda é dominante: de acordo com um levantamento realizado pela UFJF, a Unidade de Pesquisas em Álcool e Drogas (Uniad) e a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), 90% dos brasileiros preferem ter uma religião. Dos 9% que afirmaram não ter um credo, a maioria acredita em Deus. Os que se declararam ateus ou agnósticos não chegaram a representar 0,5% da população pesquisada. Outro dado interessante do Brasil é a mistura: o sincretismo religioso representou 10% dos entrevistados. 

“Mais de um terço dos brasileiros frequenta um grupo religioso mais do que uma vez por semana”, completa Alexander Moreira-Almeida. “Provavelmente, não há nenhuma outra atividade social, voluntária, não obrigatória que tanta gente faça com tanta frequência”.

Não restam dúvidas de que a população brasileira é extremamente religiosa. Mas até que ponto isso influencia na saúde? “Há uma grande complexidade na relação entre os dois. Não é simplesmente dizer que a religião é boa ou ruim”, frisa o psiquiatra. 

A religiosidade, segundo ele, é algo multidimensional: é possível começar a investigação a partir das crenças religiosas do indivíduo, da frequência de orações, sobre o modo como a pessoa lida com os problemas por meio da religião. Cada uma dessas dimensões terá relações diferentes com os desfechos na saúde, como depressão, mortalidade e qualidade de vida.

Uma área bastante investigada é o impacto da religiosidade na depressão. Atualmente, de acordo com Alexander, há mais de 100 trabalhos sobre o assunto. O estudo “Religiosity and major depression in adults at high risk: a ten-year prospective study” (Religiosidade e depressão maior em adultos de alto risco: um estudo prospectivo decenal), publicado em 2012 no periódico especializado The American Journal of Psychiatry, é um exemplo. 

O trabalho investigou a religiosidade de crianças em torno dos 10 anos de idade, filhas de pais com depressão em tratamento. O resultado foi: aquelas que se consideravam religiosas tinham 10 vezes menos risco de desenvolver depressão se comparadas às demais do grupo.

Ao longo do estudo, os médicos comparavam e avaliavam a espessura cortical das crianças. O que se percebeu é que, ao se tornarem adultos, esses indivíduos continuaram mais protegidos contra a depressão, tinham o córtex duas vezes mais espesso que o grupo de controle. “Parece ser um mecanismo biológico. A espessura cortical é um fator protetor contra a depressão”, detalha Alexander. 

Um outro estudo, feito pelo médico, foi realizado com 1.500 idosos carentes de São PauloA ideia era investigar a prevalência de transtornos mentais comuns: basicamente, sintomas depressivos e ansiosos. O resultado foi parecido: idosos que frequentavam serviços religiosos tinham menos da metade dos níveis de depressão e de ansiedade do que os que não frequentavam.

Para os idosos, a religiosidade foi a principal fonte de suporte social. Venceu, inclusive, família e amigos. Em um estudo de 2009, intitulado: “Religiosidade e espiritualidade no transtorno bipolar do humor”, Alexander Moreira-Almeida pesquisou 168 pacientes bipolares e descobriu que os pacientes que frequentavam serviços religiosos tinham menor frequência de quadros de depressão. O coping (termo da psicologia que se refere à forma com que encaramos os eventos da vida) religioso positivo também ajudou a manter a tristeza a uma distância segura. 

O outro lado da fé

De modo geral, as questões religiosas enfatizam cuidar, valorizar o corpo como uma dádiva divina. Essa valorização da vida, por sua vez, estaria relacionada a menores níveis de violência, comportamento sexual de baixo risco e uma maior inserção na comunidade. Mas se a doutrina foge do controle, pode ocasionar sentimentos não tão amigáveis, como o fanatismo, a intolerância (não só religiosa), episódios depressivos, de pânico ou de ansiedade.

A religiosidade parece influenciar também aspectos mais primitivos, digamos, da psiquê humana. O vício, por exemplo. “Quanto maior o nível de religiosidade, menor o abuso de drogas”, resume Alexander Moreira-Almeida. 

Entre os 12 mil estudantes brasileiros entrevistados por Alexander e sua equipe, em uma pesquisa sobre a influência da religião na dependência química, os indivíduos sem envolvimento religioso demonstraram o dobro da frequência de uso de tabaco, de álcool e de outras drogas. 

O comportamento suicida, de acordo com uma pesquisa feita pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e liderada pelo psiquiatra André Caribé, também pode ter relação com a espiritualidade: em indivíduos espiritualizados, a probabilidade de atentar contra a própria vida cai pela metade.

Bernard van Rensburg, presidente da Sociedade Sul-Africana de Psiquiatras (SASOP), diretor da SASOPs Spirituality and Psychiatry Special Interest Group (S&P SIG) e secretário da seção de espiritualidade e psiquiatria da Associação Mundial de Psiquiatria (WPA), estuda, em especial, a relação entre ansiedade e espiritualidade. Segundo ele, o sentimento é um tema recorrente na maioria das religiões. 

A espiritualidade, em diversos credos, é, na maioria das vezes, “descrita como uma experiência, algo que ultrapassa a mera observação. Não apenas uma ideia abstrata ou uma teoria”, completa o médico. Medo, ansiedade e estresse, Rensburg detalha, são respostas a ameaças conflituosas vivenciadas pelos religiosos. Do ponto de vista filosófico da religião, o médico explica que as principais respostas são o medo da morte, da falta de sentido da vida e a culpa.

Kenneth Pargament, professor de psicologia clínica na Bowling Green State University (EUA), publicou mais de 250 artigos sobre religião e saúde mental. Autor dos livros: The psychology of religion and coping: theory, research and practice (A psicologia da religião e coping: teoria, pesquisa e prática, em tradução livre) e Spirituality integrated psychoterapy: understanding and addressing the sacred (Espiritualidade integrada à psicoterapia: compreensão e tratamento do sagrado), 

Pargament é considerado uma sumidade mundial no tema. O especialista reforça: a religião também pode ser fonte de sofrimento e angústia, a depender de como as crenças são encaradas. 

“Muitas pessoas experimentam eventos traumáticos, mas não necessariamente enfrentam consequências negativas de saúde. Por outro lado, algumas pessoas enfrentam poucos eventos traumáticos ao longo da vida, mas sofrem bastante.”
Um dos problemas é que quando alguém considera algo sagrado, imediatamente tem medo de “perder” aquilo ou de que suas crenças sejam violadas. Kenneth Pargament e sua equipe realizaram um estudo sobre os atentados terroristas que derrubaram os prédios do World Trade Center, em 11 de setembro de 2001. 

“Perguntamos se as pessoas consideravam os ataques uma violação de seus valores sagrados”, explica. “Descobrimos que aqueles que encaravam o episódio como uma ofensa estariam mais dispostos a apoiar ações extremas, incluindo o uso de armas nucleares e biológicas”. Em outras palavras: quando as pessoas sentem que o sagrado foi violado, parecem desinibir qualquer controle emocional sobre a violência e a raiva.

Outra postura que pode causar problemas emocionais e psíquicos é como se encara o conceito de deus. “Deuses pequenos”, segundo Pargament, não nos preparam para lidar com os problemas e as experiências da vida. Alguns exemplos: o “deus da absoluta perfeição” (demanda uma conduta sempre perfeita), o “seio celeste” (deus é amoroso em qualquer circunstância e nunca espera nada de nós em troca) e o “deus policial” (que tudo registra para futuras punições). 

“O problema do deus da absoluta perfeição é que ele não aceita nossos erros, assim como um deus ininterruptamente amoroso não nos prepara para a dor ou para decepções”, resume o médico.

Para o profissional, integrar espiritualidade e psicoterapia passa por um processo de conhecer o conceito: o primeiro passo, segundo Pargament, é entender o que se quer dizer com “espiritualidade”. 

“Uma das coisas mais importantes é aprender a ouvir com o quarto ouvido”, ensina. Se na psicoterapia “ouvir com o terceiro ouvido” quer dizer escutar atentamente o que o paciente diz e o que ele não diz, o quarto ouvido seria a audição da alma, ou do sagrado. Só para frisar: o tratamento espiritualizado dentro da psicoterapia não é uma alternativa aos métodos convencionais de terapia, mas um complemento. “Você não precisa escolher. É um tratamento integrado a qualquer modelo”.  


A religião no mundo


Um levantamento feito em 65 países divulgado este ano pela empresa WIN/Gallup ouviu 64 mil pessoas e revelou os países mais espiritualizados do mundo:

* A Tailândia é a nação com mais religiosos: 94% dos entrevistados;
* China (7%), Japão (13%) e Suécia (19%) são os países menos crentes do mundo;
* Na América Latina, a Colômbia (82%), o Peru (82%) e o Panamá (81%) ficaram no pódio;
* 79% dos entrevistados brasileiros se declararam religiosos — o que nos deixou em 23º na lista.
Veja outros dados da pesquisa de Alexander Moreira-Almeida:

* Ao todo, foram entrevistadas mais de 3 mil pessoas;
* 5% dos brasileiros declararam não ter religião;
* 83% consideraram a religião muito importante para sua vida;
* 37% frequentavam um serviço religioso pelo menos uma vez por semana;
* As filiações religiosas mais frequentes foram catolicismo (68%), protestantismo (23%) e espiritismo kardecista (2,5%);
* 10% afirmaram frequentar mais de uma religião;
* De modo semelhante a estudos em outros países, maior idade e sexo feminino se associaram a maiores níveis de religiosidade subjetiva e organizacional, mesmo após o controle para outras variáveis sociodemográficas;
* Entretanto, nível educacional, renda e raça negra não se associaram de modo independente a indicadores de religiosidade.

Fonte: Pesquisa “Envolvimento religioso e fatores sociodemográficos: resultados de um levantamento nacional no Brasil”







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