Embargos Culturais - Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
O enigma de Vasti, ou a metáfora
da coragem da recusa.
Vasti é uma impressionante
personagem bíblica que se encontra em excerto do intrigante livro de Ester, no
Velho Testamento. Vasti pode nos simbolizar a coragem da recusa e a atitude
libertadora de não submissão, na exata medida pela qual se interprete esse
texto antigo, à luz de valores presentemente dominantes, e que prestigiam uma
antropologia positiva da experiência humana. Vasti é uma heroína. Recusou uma
situação vexatória que lhe queria impor o poderoso marido.
Bem entendido, o presente ensaio
não é um esforço de interpretação teológica ou de exegese bíblica. Falta-me
sobretudo conhecimentos de teologia para tal iniciativa. Cuido de um exemplo
literário, e o que trato como tal, com o objetivo de ilustrar alguns problemas da
história do Direito e da hermenêutica. Refiro-me ao problema das fontes, ao
tema da tradução, ao dilema do presenteísmo e ao conteúdo ideológico da ação
interpretativa. Interpreto uma fonte primária, ainda que traduzida e
reproduzida, com meus olhos e sentimentos de meu tempo, sob forte inspiração
ideológica reveladora de um humanismo imaginário.
Talvez na Pérsia (que o texto
identifica como reino de Assuero, que cobria desde a Índia até a Etiópia) o rei
Xerxes (que o texto também identifica como Assuero) dera uma grande festa, no
terceiro ano de seu reinado. Fala-se de um grande banquete, servido a príncipes
e servos; o texto bíblico invoca um soberano desejoso de impressionar, vaidoso,
exibindo suas riquezas, como inegáveis provas de sua glória e poder. Conta-se
que o folguedo durara 180 dias.
A abastança do soberano é também
revelada com a descrição do palácio, no qual “as tapeçarias eram de pano
branco, verde, e azul celeste, pendentes de cordões de linho fino e púrpura, e
argolas de prata, e colunas de mármore; os leitos de ouro e de prata, sobre um
pavimento de mármore vermelho, e azul, e branco, e preto”. O texto também nos
revela que se bebia em copos de ouro, que eram diferentes uns dos outros. O
“beber era por lei”, o que indica uma obrigação.
Ao mesmo tempo, a rainha Vasti
recebia as mulheres do reino em umo outro banquete, em outro local do palácio;
o texto bíblico não descreve nem o banquete de Vasti nem o outro local onde a
festa se passava. O rei, embriagado ao extremo (com o coração alegre de vinho,
na linguagem metafórica do texto bíblico), determinou que seus camareiros
trouxessem a rainha, formosa, bela, “para mostrar aos povos e aos príncipes a
sua beleza”. Vasti deveria comparecer à festa, exibindo-se, a mando do rei,
portando a coroa real.
Vasti negou-se a atender a ordem
do rei, que era seu marido. Este ficou enfurecido, nele acendendo “sua ira” na
melodiosa linguagem desse belo texto. O rei socorreu-se de seus conselheiros
(sábios que entendiam dos tempos, isto é, da vida secular e real). Questionou
aos doutores da lei o que deveria fazer com Vasti, que o desrespeitara
publicamente. Os intérpretes da lei entenderam que Vasti praticara um crime
político, enfrentando a autoridade maior do reino; matizava um péssimo exemplo,
que afetaria negativamente a autoridade de todos os homens daquele importante
reino.
O conselheiro mais influente,
Memucã, contaminou o rei, dizendo que rainha não pecara somente contra o
soberano, “porém também contra todos os príncipes, e contra todos os povos que
há em todas as províncias do rei”. Afirmou que todas as mulheres desprezariam
seus maridos. O rei deveria baixar um édito real, proibindo a presença de Vasti
na corte, destituindo-a de seus bens e alguma influência.
Os doutores da lei suscitaram que
Xerxes noticiasse o reino de sua decisão, redigindo nas respectivas línguas e
escritas que mulheres deveriam honrar aos maridos. O rei procurará uma nova
esposa, que encontrará na pessoa de Ester, situação que se desdobra na segunda
parte desse livro.
Não se sabe os motivos da
negativa de Vasti. Imagina-se que a exposição pretendida pelo rei desonrava a
rainha, ciente de seus valores, como pessoa, e não como objeto de exposição
pública. Ainda, seria festejada por uma horda de borrachos, bêbedos, cujo
comportamento não controlava.
O texto é antigo, traduzido,
carregado de metáforas e de maneirismos de um tempo que desconhecemos, e de uma
civilização sobre a qual apenas conjeturamos. O problema central do excerto,
submissão ou desobediência da rainha, é inegavelmente uma questão de gênero que
se resolve no plano da liberdade, ainda que o preço pago fora a condição
material de vida da insurreta, e ainda que em outras épocas possa ter suscitado
interpretações menos benevolentes para com Vasti.
A influência dos doutores da lei
na formação da vontade do Estado é, porém, situação recorrente, em vários
tempos e lugares, o que revela suspeita aliança entre o intelectual e o poder,
ainda que esse seja um tirano, e aquele, um fino pensador.
Arnaldo Sampaio de Moraes
Godoy é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito
da USP. Doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP.
Professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no
Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).
Fonte http://www.conjur.com.br
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