Religião na Cidade - Por Paulo Mendes Pinto
Sendo das liberdades de que menos
temos consciência, a liberdade de não ser identificado com religião alguma é
dos avanços legais mais marcantes na nossa sociedade.
Depois de séculos e
séculos onde a pertença religiosa podia significar quase imediata pena de
morte, a liberdade que temos de não sermos questionados, sequer, sobre
religião, é a mais directa marca dos traumas que as perseguições religiosas nos
deixaram.
De facto, é hoje uma garantia
constitucional para o cidadão português a impossibilidade que o próprio Estado
tem de obrigar alguém a responder sobre as suas convicções religiosas. Mais que
uma liberdade de consciência, este direito que nos assiste é imagem da
inviolabilidade de uma dimensão individual onde nada mais que o próprio tem o
direito a se imiscuir.
E se a liberdade de não ser
catalogado em termos religiosos se pauta constitucionalmente por esta
inviolabilidade, no quotidiano ela transporta-nos para vários campos muito
interessantes, desde o da segurança de cada um que poderia ser quebrada com a
aposição de uma pertença, até ao do recolhimento potencialmente próprio da
espiritualidade, que implica tantas vezes um afastamento ao que é material,
passando pelo lado ainda mais fundamental de, ao se estar a inibir, ou a dar a
liberdade da não catalogação, se estar a criar um patamar de igualdade que é
fundante de uma postura em que todos somos iguais perante a Lei e o Estado.
E hoje em dia, somos postos à
prova no que diz respeito à aplicação deste princípio constitucional, através
dos desafios que se colocam aos cidadãos europeus que são muçulmanos. De facto,
é possível a um europeu muçulmano manter serenamente o seu direito à não
rotulagem?
E não me estou a referir a uma rotulagem criminosa, assente em
generalizações desonestas, em que a cada muçulmano o senso-comum muitas vezes
faz corresponder um terrorista; refiro-me à aplicabilidade desse princípio
cristalino: um muçulmano, tal como um cristão, ou um ateu, entre todos os
outros, tem o direito a não ser importunado devido à sua pertença e prática
religiosa. Isto é, a noção de cidadania, ao colocar acima de todas as outras
pertenças a relação com o Estado, torna-as diminuídas de qualquer valor que
ensombre a ideia de cidadão.
E nesta declaração simples e
linear do lugar íntimo da crença, o Estado e o respectivo legislador esqueceram
uma das dimensões mais importantes da prática religiosa: a comunitária. E ao
esquecer este lado fundante das grandes religiões, especialmente dos
monoteísmos, o Estado centra a dimensão religiosa no indivíduo e na sua esfera
privada, criando uma enorme lacuna à noção de pertença e a tudo o que ela
implica.
Sendo que a noção de pertença é
imensamente complexa, vou-me apenas centrar no dilema que hoje se coloca a
muitos religiosos na Europa, mas que se reveste de grande acuidade no caso dos
europeus muçulmanos: como gerir publicamente a sua identidade religiosa?
Ser muçulmano é pertencer à Umma,
à comunidade de crentes; tal como ser cristão é pertencer a uma Igreja, a
uma assembleia. Em ambos os casos, “ser-se” é apenas uma dimensão possível na
relação, na comunhão, na partilha e no reconhecimento. Não se é cristão fora da
comunidade cristã, tal como não se é muçulmano sem uma ligação àqueles a quem
religiosamente se é Irmão.
Portanto, se ser cidadão permite
“esconder” a pertença religiosa, ser religioso implica uma dimensão de
visibilidade, de orgulho, até, que tem na afirmação pública da sua fé uma das
componentes mais importantes dessa pertença, mesmo de honesta perante a
divindade em que se acredita: não se pode repudiar ou negar por omissão, qual
Pedro ao cantar do galo na noite da prisão de Jesus.
Ora, em situações limite como a
que vivemos hoje, em que as generalizações invadiram os meios de comunicação,
em que o medo parece ter tomado conta do discernimento de largos sectores da
nossa sociedade, o dilema que se coloca a um muçulmano é tremendo. Dissimular a
fé ou, pelo menos, não a tornar pública, como meio de segurança, de defesa em
relação a todo um clima de uma certa hostilização? Ou, ao contrário, afirmar
bem alto a sua pertença, mostrando que se é algo de muito diferente dos
terroristas, tentando ajudar a desfazer essas visões preconceituosas?
Se em relação aos indivíduos a
questão se coloca nesta esfera da afirmação pública de um direito privado, em
relação às comunidades a questão ganha outros contornos ainda mais
interessantes. Deve uma comunidade religiosa tomar uma atitude de visibilidade
num momento como este? Mais concretamente, mesmo sem ter nada a ver com os
actos terroristas, deve uma comunidade islâmica gritar bem alto que não se
identifica, que repudia, que, para si, isso não é Islão?
Ora, são várias as dimensões em
causa. Por um lado, poderão ser vários os cidadãos, muçulmanos ou não, a dizer
que a comunidade nada deve fazer. Não se identificando com esse suposto “islão”
que mata e aterroriza, a sua postura em nade deve reflectir como que um assumir
de culpas que não são suas. E, obviamente, tem toda a razão quem assim
argumentar, tanto mais que é direito individual de cada membro dessa comunidade
a não exposição.
Contudo, os mesmos cidadãos
também serão os primeiros a concordar com o valor didáctico de uma tomada de
posição, de um assumir público de repúdio, ajudando a combater o preconceito e
criando uma visão menos marcada pelas generalizações. A mole dos nossos
concidadãos não só merece esclarecimentos, como muitas vezes exige tomadas de
posição que definam posições.
E, felizmente, esta tem sido a
posição das comunidades islâmicas portuguesas. Muito pouco tempo depois dos
atentados de 13 de Novembro em Paris, vários foram os comunicados que as
comunidades islâmicas fizeram circular repudiando esses actos cruéis.
Infelizmente, muito pouco foi o “tempo de antena” que os media lhes deram, mas
as comunidades islâmicas multiplicaram-se em entrevistas, em orações conjuntas,
em acções que contribuem para o esclarecimento e não para a consolidação do
clima de terror.
Também acarreta riscos. Mas é uma
postura cívica e religiosa do maior valor aquela que temos visto nas
comunidades muçulmanas portuguesas. No passado dia 24/11, no âmbito de uma
parceria entre a Comunidade Islâmica e a Universidade Lusófona, na Mesquita
Central de Lisboa, debatemos, muçulmanos e não muçulmanos, “O
autoproclamado Estado Islâmico, os refugiados e os desafios que se colocam à
Europa”. Num ambiente sereno, mas com um debate sério e sem fugir a nenhuma
questão, muçulmanos, cristãos, ateus, todos cidadãos, debatemos um tema que nos
marca a todos.
Desfazendo dúvidas, matando
preconceitos e saindo mais esclarecidos, mais uma vez, fez-se cidadania.
Fonte: http://lifestyle.publico.pt
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