A experiência com o divino que traz humanização - Por Ricardo Machado e Leslie Chaves
Para Clemir Fernandes, a
assistência religiosa nos presídios, além do contato com o sagrado, possibilita
o acesso à dignidade, dentro e fora do cárcere.
O sistema penitenciário
brasileiro padece cronicamente de uma série de dificuldades, desde as matérias,
como a falta de espaços adequados para manter os apenados no cumprimento de
suas sentenças, até as referentes ao tipo de tratamento que o sistema
judiciário como um todo oferece a essas pessoas e seus familiares. Entretanto,
também há ações que buscam mitigar o ambiente hostil dos presídios. A inserção
religiosa está entre essas iniciativas.
O trabalho da Pastoral Carcerária é um
dos mais tradicionais e pioneiros nesse campo. Conforme ressalta o professor Clemir
Fernandes, em entrevista por e-mail à IHU On-Line, “as relações entre
Estado brasileiro e Igreja Católica são tão antigas quanto a própria história
do Brasil”.
Segundo o professor e pesquisador, a presença do trabalho da Igreja
Católica nos presídios é capilarizada, atuando em grande parte do país.
Entretanto, o número de agentes religiosos pertencentes a diversos grupos
evangélicos é muito superior ao de católicos envolvidos em atividades com os
presos e ex-presos.
Para Fernandes, o trabalho
religioso nas prisões, independente do credo a que ele for ligado, é
fundamental para oferecer aos apenados uma via para a busca da recuperação de
sua cidadania.
“Para uma população já bastante desrespeitada em seus direitos
básicos, ter acesso à assistência religiosa é um fator que oportuniza muitas
possibilidades de dignidade, tanto na prisão como após sua liberdade. O
trabalho dos religiosos produz uma espécie de humanização na medida em que
interage com os presos, causa reflexões acerca de sua condição, ouve suas
dificuldades, atende a demandas inclusive materiais, faz conexões com suas
famílias, obviamente do lado externo da prisão, enfim, os respeita efetivamente
como pessoas”, ressalta.
Esses dados fazem parte do estudo
Assistência religiosa em prisões do Rio de Janeiro: um estudo a partir da
perspectiva de servidores públicos, presos e agentes religiosos (e uma proposta
de recomendação à Seap), desenvolvido pelo Instituto de Estudos da Religião –
ISER sob a coordenação do pesquisador e divulgado em 2015.
Clemir Fernandes é graduado
em Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Sul e em Ciências Sociais pela
Universidade Federal Fluminense - UFF. É mestre e doutorando em Ciências
Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Atuou como
assessor da ONG Viva Rio na área de Religião e Direitos; atualmente é
pesquisador do Instituto de Estudos da Religião - ISER, especialmente no eixo
Religião e Espaço Público.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como se dá a inserção religiosa no sistema prisional
brasileiro? Como ocorreu historicamente esse processo?
Clemir Fernandes - No
contexto atual do Estado do Rio de Janeiro o processo se dá da seguinte forma:
Uma entidade religiosa (igreja, centro espírita, etc.) se credencia na
Secretaria de Administração Penitenciária - SEAP. Tendo sido aprovada a partir
dos critérios estabelecidos, agentes religiosos dessas entidades fazem seu
pedido de credenciamento na SEAP. O sistema de segurança do Estado averigua se
a pessoa tem condições de ser um agente religioso. Sendo aprovado é emitida uma
carteira de acesso ao sistema. Mas não de forma universal. Ele é credenciado
para atuar em até duas unidades prisionais. Antigamente os diretores de
presídio tinham autonomia para credenciar quem desejassem. Havia muitas
relações de compadrio em que suas crenças religiosas determinavam quais
religiosos teriam mais ou menos acessos aos presos para o trabalho da
assistência religiosa.
IHU On-Line – Do que se tratava a Pastoral Carcerária da Igreja
Católica que se notabilizou a partir da segunda metade do século XX? Qual sua
expressão atualmente?
Clemir Fernandes - As
relações entre Estado brasileiro e Igreja Católica são tão antigas quanto a
própria história do Brasil. A assistência religiosa feita pela Igreja Católica
no interior dos presídios conquistou tamanha notoriedade que o Estado construiu
capelas católicas em várias unidades prisionais pelo país.
No contexto dos presídios do Rio
de Janeiro a Igreja católica tem forte capilaridade, estando presente em todo o
sistema prisional, embora em número bem menor de agentes em comparação aos
grupos evangélicos. O trabalho católico é reconhecido pelas muitas ações em
favor dos presos, para além da assistência religiosa em si. Fato que gerou
historicamente até críticas de antigas faculdades de Serviço Social porque
queriam se desvincular de qualquer associação com assistência religiosa, como a
feita pelos católicos nos espaços prisionais.
IHU On-Line – Atualmente, como está composta a assistência religiosa
nos presídios brasileiros? Que tipos de confissões religiosas prestam esse
serviço?
Clemir Fernandes - No Estado
do Rio de Janeiro, que pode ser uma amostra possível de Brasil, os diversos
grupos evangélicos são a maioria. De fora são vistos como um único grupo, mas
têm disputas entre si: Assembleia de Deus, que são muitos e distintos grupos,
Batistas, que também têm diferentes denominações, Igreja Universal do Reino de
Deus, Igreja Metodista, Presbiterianos, congregacionais,
pentecostais/neopentecostais de igrejas diversas e variadas, etc. Com seus
grupos de pastoral, mais tradicionais, e também agentes ligados a modelos da
ampla renovação carismática católica, a Igreja Católica vem em segundo lugar,
mas bem atrás dos evangélicos em número de agentes. Em seguida, em número ainda
bem menor, são os espíritas, no geral, kardecistas e depois, bem isoladamente,
algum grupo afro-brasileiro, um judeu, etc. As religiões de natureza mais
missionária ou proselitista, como as cristãs em geral (católica, evangélica e
kardecista) são, portanto, as mais presentes no sistema.
IHU On-Line – De que forma as religiões neopentecostais acabaram
ocupando um certo espaço deixado pela Igreja Católica?
Clemir Fernandes - O retrato
da composição de agentes religiosos nos presídios segue tendência relativa da
média da realidade religiosa da sociedade brasileira conforme dados do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. Dentre os grupos
religiosos, os que mais cresceram segundo as três últimas edições do Censo
foram exatamente os evangélicos. Por outro lado, os católicos são a denominação
que mais teve perda de fiéis. Portanto, o crescimento numérico de evangélicos
chegou também aos presídios, inclusive corroborado pelos processos de mais
democracia e mais reconhecimento das diversidades nos espaços públicos.
Ampliando, assim, a presença e ação de outras religiões, com destaque para os
evangélicos neopentecostais por sua postura militante de propagar sua fé. Por
outro lado, é possível conceber que a proposta religiosa de igrejas
neopentecostais, voltada mais para interesses individuais coniventes com certa
realidade cultural predominante atualmente, encontrou mais eco ou resposta nos
presídios do que a mensagem comunitária ou coletiva mais afeita ao modelo
tradicional católico.
IHU On-Line – Como é o trabalho realizado pelos evangélicos dentro das
casas de apenados? Por que eles se tornaram mais numerosos em relação às outras
religiões?
Clemir Fernandes - Os
católicos realizam encontros de oração e reflexão, ou missa, quando é possível
ter um padre, o que é mais difícil de acontecer. Espíritas e Testemunhas de
Jeová (que não se identificam como evangélicos, nem são reconhecidos como tais
entre os próprios evangélicos), atuam de maneira semelhante no que tange à
rotina de trabalho: palestras e estudos mais individualizados. Evangélicos em
geral e neopentecostais em particular, que são a maioria, fazem encontros no
mesmo formato do culto de suas igrejas, com cânticos, orações, pregações,
coral, banda, recolhimento de ofertas, batismo, ceia (eucaristia), petição por
cura, libertação, etc. Utilizam linguagem bem acessível ao universo dos presos.
Em presídios do Rio de Janeiro, além dos agentes religiosos, que são obviamente
externos ao presídio, várias unidades possuem um pastor ou liderança religiosa
interna, que é um dos próprios presos reconhecidos pelos detentos e também pela
direção do presídio. Ele faz acompanhamento religioso no interior das galerias,
de forma permanente. Um detento que se identificou como católico disse que no
presídio prefere frequentar os cultos evangélicos: “Se tivesse um padre eu iria
[na reunião católica], mas como não tem, prefiro a [igreja] evangélica”.
IHU On-Line – Como a questão do dízimo, proibido por resolução do
Ministério da Justiça, ocorre dentro dos presídios? Como lidar com essa questão
que é um gesto de fé para os evangélicos?
Clemir Fernandes - Nas
entrevistas que fizemos tocamos nesta questão e as respostas que tivemos
apontam para o fato de que nem todos os grupos evangélicos fazem recolhimento
de ofertas ou de dízimos. E os que fazem insistiram em explicar que ela não
fica com eles, os agentes religiosos, mas que permanece no próprio presídio e é
administrada pelos presos para atendimento de necessidades coletivas ou mesmo
para ajudar quando alguém deixa o presídio. Como o dízimo, outras práticas são
igualmente vedadas pela legislação aos presos, o que não significa que não
ocorram rotineiramente no dia a dia do presídio.
IHU On-Line – Quais são os principais desafios no trabalho com os
apenados? Que dificuldades se apresentam no contexto do dia a dia?
Clemir Fernandes - Os
religiosos reclamam dos problemas de falta de rotina, mesmo considerando que o
presídio é regido por uma lógica de segurança permanente. Qualquer alteração é
motivo para cancelarem o trabalho religioso, sem qualquer aviso prévio.
Geralmente são pessoas que percorrem grandes distâncias para acessar o
presídio. Outra questão é o horário de entrada, que nem sempre é cumprido,
resultando, às vezes, em espera de até mais de uma hora. Quanto ao horário de
término, segundo dizem, o rigor é total, não sendo possível qualquer tipo de
compensação por eventual atraso de liberação da entrada dos agentes religiosos.
A rispidez e poder de controle dos agentes penitenciários é um fator constante
de reclamação dos religiosos, que são voluntários e reclamam serem tratados
como cidadãos. Eles sofrem críticas de que estão ali “perdendo tempo”, que são
“bobos de acharem que os presos são santinhos”, que suas doações de sabonetes e
outros produtos de higiene pessoal os presos trocam por bebidas e até drogas.
Também reclamam da falta de espaço adequado para as reuniões. Os grupos
católicos possuem uma capela que, no geral, não é compartilhada com outros
grupos. Também, quando há templo evangélico, dificilmente ele é utilizado por
outras religiões. O espaço do refeitório é, geralmente, o único local possível
para o encontro, que nem sempre é adequado para a natureza do trabalho feito.
IHU On-Line – Quais são as implicações na separação/classificação dos
presos entre aqueles que seguem uma doutrina religiosa e aqueles que não seguem?
Os que seguem uma confissão religiosa têm privilégios? Quais?
Clemir Fernandes - Conforme
a lei vigente, os presos devem ser separados por tipo de crime cometido,
conforme as tipificações do Código Penal, o que inviabilizaria qualquer outra
classificação, inclusive por pertença religiosa. Mas na prática isso não ocorre
universalmente. Existem presídios que possuem celas evangélicas para presos
dessa confissão religiosa, não havendo similar com outras crenças, ou seja, não
existe “cela católica” ou “cela de religiões afro-brasileiras”.
Estar na cela evangélica pode ser
visto como um privilégio ou não, porque os critérios são basicamente os mesmos
no interior do presídio. Mas para ter “direito” a participar dela o preso
precisa “dar provas” de que tem um comportamento coerente com o padrão tido
como certo pelos presos dessa cela, especialmente do líder, que é geralmente um
pastor ou pessoa reconhecida como pastor. Os critérios são rígidos, desde
limpeza do espaço, o asseio pessoal, a proibição de vícios, a obediência às
regras, ao “testemunho evangélico”, envolvendo até punição e expulsão da cela
em caso de desrespeito às normas. Nem todo mundo consegue e alguns acham até
rigoroso demais. No geral, são vistos de maneira positiva pelos agentes
penitenciários e é possível que alcancem privilégios no tratamento geral na
prisão.
IHU On-Line – De que maneira a inserção religiosa dentro do sistema
prisional oferece um caminho de diálogo e reinserção pública de um grupo
marginalizado socialmente?
Clemir Fernandes - Para uma
população já bastante desrespeitada em seus direitos básicos, ter acesso à
assistência religiosa é um fator que oportuniza muitas possibilidades de
dignidade, tanto na prisão como após sua liberdade. O trabalho dos religiosos
produz uma espécie de humanização na medida em que interage com os presos,
causa reflexões acerca de sua condição, ouve suas dificuldades, atende a
demandas inclusive materiais, faz conexões com suas famílias, obviamente do
lado externo da prisão, enfim, os respeita efetivamente como pessoas. Alguns
religiosos têm estruturas de acolhimento de presos quando ganham seus alvarás
de soltura, buscam qualificá-los para o mercado de trabalho, ajudam no retorno
às suas famílias, e muitas vezes até com recursos para voltarem para seus
lares, pois muitos saem da prisão, muitas vezes, sem dinheiro algum. Existe no
Rio de Janeiro, por exemplo, organizações religiosas que atuam com ex-detentos
visando sua reinserção de maneira mais eficaz na vida social, desde as famílias
até a conquista de emprego ou mesmo algo na linha do empreendedorismo.
IHU On-Line - Qual a contribuição do trabalho das religiões na
construção de uma relação mais tolerante entre egressos do sistema prisional e
o restante da sociedade?
Clemir Fernandes - As
religiões em geral têm uma gramática de acolhimento e respeito aos egressos do
sistema prisional e realizam até campanhas e reflexões religiosas para
sensibilizar seus fiéis nesse sentido, mas é sabido que são muitos os desafios
enfrentados pelos ex-detentos para conseguirem respeito e reconhecimento. É
possível que os religiosos estejam na liderança dessas poucas iniciativas que
buscam aproximar e reinserir ex-presos no cotidiano da vida em sociedade como
cidadãos, sujeitos de direitos.
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