A procura do sagrado na cidade profana – Por Valdemar Cruz
As cidades europeias são hoje,
por definição, espaços profanos.
É uma evidência que decorre da circunstância
de as sociedades contemporâneas não estarem vinculadas a valores religiosos,
pelo modo como se organizam, pelo modo como refletem o quotidiano dos cidadãos,
pelo modo como se relacionam com os dilemas morais e éticos suscitados pelos
desafios da vivência comum. O religioso não está ausente, nem foi expulso da
vida da cidade. Apenas perdeu a centralidade de outros tempos.
Durante séculos, assistimos a uma
sacralização de tudo quanto tivesse a ver com o divino e o religioso. As
cidades foram moldadas nessa dependência. Construíram-se grandiosas catedrais,
belíssimas igrejas, templos singulares, pensados como forma de glorificar deus,
mesmo se, para quem não acredita, exaltaram, antes de mais, a determinação e o
engenho dos homens.
Este era um debate feito com toda
a naturalidade. Nos últimos anos, com o emergir do fanatismo islâmico, a
questão religiosa saltou de novo para o centro do debate na Europa, depois de
mais de um século de efetiva secularização da sociedade. E centro-me no
continente europeu por ter sido aqui onde com mais profundidade e eficácia foi
edificado o conceito de Estado laico, no caso em resposta ao poder do
catolicismo.
O mundo árabe precisa de fazer este debate como conceito global, embora o problema da violência em nome de uma certa ideia de religião esteja a também a dilacerar a Europa, devido à sucessão de atentados terroristas identificados com uma perigosa deriva e até subversão do islão protagonizada por um conjunto de jovens radicalizados.
Surgem vozes a clamar contra a necessidade de adaptar
a laicidade do Estado às supostas especificidades do islão. A acontecer, isso
seria colocar de pernas para o ar todo um conceito de vida que ao longo dos
anos tem normalizado a vida dos cidadãos.
A própria comunidade árabe
residente na Europa tem sabido, na sua esmagadora maioria, assumir os preceitos
laicos, como se viu em França quando em 2004 foi promulgada a lei sobre os
símbolos religiosos nas escolas, ou as leis sobre os casamentos e os funerais.
Cabe às religiões adaptarem-se ao Estado e às suas leis, e não o contrário.
Foi muito difícil chegar aqui. Porém, aqui chegados, todos pudemos usufruir do prazer de viver em comunidade no respeito pela diferença, política ou religiosa.
Essa conquista teve vantagens inegáveis, até mesmo para as religiões. Qualquer cidade europeia tem a sua geografia marcada por monumentais templos religiosos, na sua maioria católicos. São visitados por crentes, agnósticos ou ateus. Cada um terá as suas motivações. Pode haver um sincero interesse de aproximação ao divino, ou o simples prazer estético de contemplar templos como, por exemplo, a catedral de Chartres, em França, a mesquita-catedral de Córdoba, em Espanha, ou, numa visão contemporânea, a igreja do Marco de Canavezes.
Assistimos a uma normalização da
relação com o religioso. O ato de entrar numa igreja não
tem de possuir em si mesmo um qualquer significado. Se quisermos encontrar um
denominador comum em quantos lá entram, será sobretudo um ato de resposta ao
apelo do belo. E cada um traduzirá para si mesmo o lugar ou a dimensão
espiritual ou filosófica suscitada por aquela manifestação de beleza.
É isso o que nos desvenda a
esplendorosa exposição patente no átrio da Câmara Municipal do Porto,
intitulada: "O Porto e as Igrejas". Durante quatro meses intensos, o
fotógrafo Egídio Santos percorreu a cidade à procura dos templos com que nos
cruzamos no dia a dia, para os revelar a partir de uma outra forma de ver.
O resultado é fascinante.
Descobrimos como se fora pela primeira vez o que há muito julgávamos conhecer.
A câmara de Egídio constrói a perfeita metáfora da revelação. Nesse sentido há
algo de divino naquela forma de retirar véu a véu, até nos presentear com a
nudez inteira aqueles templos nunca assim vistos por força das muitas camadas
de sombras projetadas pelos nossos olhares.
Apreciar aquele interior da Sé
Catedral, deixar todos os sentidos presos ao espetáculo do órgão da igreja de
São Bento da Vitória, ou ficar atónito com a inesperada grandiosidade da igreja
da Lapa, são apenas detalhes de um percurso que passa ainda pela igreja dos
Grilos e nos mostra um comovente abraço com o longe, materializado no edifício
da Alfândega e no rio Douro. Depois há a renovada igreja dos Clérigos ou
construções contemporâneas, como as igrejas das Antas ou do Cristo Rei.
No total foram fotografados 150
espaços religiosos, todos ligados ao mundo católico. Há todo um outro universo
nascido de diferentes religiões, espalhado pela cidade, não contemplado no
projeto que incluiu a edição de um livro.
Nesta procura do sagrado no meio
do profano, a Câmara Municipal do Porto e a diocese, parceiros de iniciativa,
teriam merecido um outro tipo de aplauso caso tivessem ousado explorar um
espírito mais ecuménico.
Crer em Deus é, presume um não
crente, conviver com a dúvida permanente. No dia em que fosse demonstrada a
existência de Deus desapareceriam o fascínio e o mistério inerentes à ideia de
crença.
A capacidade de assumir essa
inquietação é o que determina uma visão não totalitária ou exclusivista das
crenças. A cidade é o espaço onde todos se encontram. Logo, a cidade não
exclui. Inclui.
Fonte: http://expresso.sapo.pt
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