Livro traça ligação entre espiritismo e psiquiatria no antigo Hospital Bom Retiro – Por José Carlos Fernandes



“Sanatório” que marcou a capital na primeira metade do século ainda mexe com a imaginário da população. Local acaba de ganhar espaço em um livro que resgata a ligação entre espiritismo e psiquiatria.

Até pouco tempo, quando alguém queria se safar de um enrosco, soltava o infalível bordão “doutor Alô mandou não contrariar”. A frase tinha o efeito de um “sossega-leão”.

Não só existiu um médico chamado Alô, Alô Guimarães, como a simples menção de seu nome invocava o “sanatório” do Bom Retiro, em Curitiba, do qual foi diretor, e, de troco, os métodos ali aplicados para aplacar a fúria de quem perdeu o juízo. Nenhum local mexia tanto com a imaginação dos curitibanos e moradores da redondeza. Assim permanece.

Do rodapé ao cabeçalho

O médico Alô Guimarães, um dos marcos da história do Hospital Bom Retiro, “não cabe numa caixinha”, como se diz no popular. Na mocidade, foi jornalista, tirando dos eixos uma carrancuda Gazeta do Povo. 

Deu-se na década de 1940, a mesma em que assumiu com honras de estado o setor de psiquiatria do Paraná. O nome de Alô era menos divertido e solene quando saía da boca do escritor Austregésilo Carrano, autor de O Canto dos Malditos, livro que deu origem ao longa: Bicho de sete cabeças, da qual o médico saiu chamuscado. A obra chegou a ser retirada das livrarias pela família.

Pois quem gosta de histórias, e das melhores, não deve esquecer que Alô não é o único personagem impagável dessa saga relegada à descrição dos rodapés, mesmo merecendo os cabeçalhos. Segundo a pesquisadora Andrea de Alvarenga Lima, Alô não era espírita, era maçom. Entrava nas igrejas católicas, nas não ajoelhava. E tinha livre trânsito na rica e culta federação que mantinha o Bom Retiro.

Exótico, estava sempre em boa companhia. Sobrenomes capazes de fazer abrir as melhores cristaleiras, como Leprevost, Ferreira da Costa e Tourinho, também participavam desse núcleo seleto pelo qual transitavam ervateiros, poetas, intelectuais, não raro casados com Filhas de Maria. 

Sentadas nos bancos de catedral, elas ouviam que as piores condenações estavam reservadas àqueles com quem dormiam e a quem seus filhos pediam bênção. O surpreendente é que esses acordos dignos da ONU tenham demorado tanto a chamar atenção e a serem estudados. A tragédia que se abateu sobre o prédio histórico do Bom Retiro em 2013, por ironia, acordou a Curitiba que ignorava sua veia kardecista e o que isso possa significar.

Campo minado

O antigo Hospital Bom Retiro permanece “em estado de demolição”. É campo de guerra para ambientalistas, que não engolem seu desaparecimento. Tem 20 mil metros quadrados de mata em 50 mil metros de terreno; nascentes de rio e; quando em funcionamento, 700 pinheiros-do-paraná. 

A construção, que não recebeu proteção do patrimônio municipal ou estadual, seguia o modelo dos sanatórios do início do século passado. Poderia ter parte de sua fachada preservada, ao menos. Paralelo à arquitetura, era, marco de uma certa mentalidade psiquiátrica,

Em maio de 2013, a demolição do Hospital Bom Retiro, plantado desde 1945 no bairro ao qual emprestou seu nome, não provocou um protesto, à moda do que fazem agora os estudantes paulistas. Mas causou impressão. Fez-se luto nas redes sociais. Trocas de farpas entre autoridades e ativistas do patrimônio. Pichações nos muros pediam que o alvará de demolição fosse queimado em praça pública. A grita foi sem sucesso.

“hospital dos espíritas”, como também era chamado, virou uma montanha de entulhos e no seu lugar deve nascer mais um empreendimento de arranhar os céus. Em outras instâncias, que não a imobiliária, contudo, o ocaso do Bom Retiro virou um gatilho para revisar uma página da história até então escrita a lápis: a influência dos seguidores de Allan Kardec no Paraná.

Há matéria-prima o bastante para doutor Alô nenhum ficar amuado. A começar que não se passa nem pelo simbolismo, nem pelo fausto da erva-mate, ou tampouco pela fundação da UFPR sem roçar no espiritismo, uma evidência que os novos pesquisadores deixaram de ignorar. Ainda que não forme uma Biblioteca de Alexandria, o assunto extrapola os muros da Federação Espírita do Paraná, fundada em 1902, e ganha cada vez mais território na academia. 

Passa pelas pesquisas pioneiras dos historiadores Flamarion Laba da Costa e Cleusa Fuckner, para citar dois, chegando à mais recente, Psiquiatria e espiritismo, a história do Hospital Bom Retiro, da Editora Factum. A assinatura é dos psicólogos Andrea de Alvarenga Lima e Adriano Furtado de Holanda.

O estudo de Andrea e Adriano tende a ter vida longa, por uma razão prática: em vez de servir uma única especialidade, bem a gosto da pesquisa acadêmica, serve um banquete completo, em que história, psiquiatria, religião e imaginário trançam as pernas e andam de braço dado. É saboroso como, a despeito dos incrédulos, o assunto pede. Parte dessa proeza se deve ao percurso de linhas tortas palmilhado pela autora.

Historiadora de primeira formação, Andrea de Alvarenga Lima tentou pesquisar outro templo da psiquiatria no Paraná, o Hospital Nossa Senhora da Luz, para a monografia de conclusão de curso. Sua descrição do que aconteceu é desafiar o mais evoluído dos médiuns. “Eu queria escrever a ‘História da loucura em Curitiba’. Me achava o Michel Foucault, mas fiz dois dias de pesquisa e abri a boca chorar. Desabei”, conta. Desistiu, mas o assunto não desistiu dela.

Nos anos 2000, graduada em Psicologia e membro de um grupo de pesquisa liderado por Adriano Furtado de Holanda, da UFPR, deparou-se com pelo menos duas emergências, para as quais não tinha mais desculpas:

1) estudar as relações entre psicopatia e religião;
2) e o lugar onde tudo se condensa. 

Em vez do Nossa Senhora da Luz, o Bom Retiro, cujos membros do corpo técnico, numa conspiração, não só dividiam com ela a sala de aula como lhe tilintavam as chaves dos arquivos do hospital.

“Ver tudo aquilo te esperando é enlouquecedor. O TOC foi lá em cima”, brinca, sobre o que sentiu ao ver aquela fileira de arquivos de ferro forrados de atas, fichas e prontuários, ali acumulados ao longo de mais de 60 anos. 

Dessa vez, manteve-se firme, investigando temas caros à historiografia e à crônica da psiquiatria brasileira. O resultado não poderia ser mais surpreendente: os altos da cidade onde funcionava o hospital era o epicentro dos debates sobre ciência, religião e até literatura. 

A psiquiatria aplicada era a clássica, mas não se pode dizer o mesmo da ousadia intelectual dos espíritas, que faziam do Bom Retiro um endereço de caridade, mas também de pensamento. “Eles enchiam prateleiras de escritos. E eram muitos, de muitas tendências, os da elite e os da periferia. Pouco se fala disso”.

Coincidência ou não, um ano depois do término da pesquisa o hospital financiado pelo mítico capitalista e espírita Lins de Vasconcelos virou poeira. Psiquiatria e espiritismo não nasceram para ser testamento do espaço perdido, mas é inevitável que sejam lidos como.







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