Se eu governasse o mundo. Umberto Eco dá um recado de fim de ano
Importante filósofo, escritor e
formador de opinião, o italiano Umberto Eco às vésperas de completar 84 anos
nos oferece algumas reflexões sobre temas que considera fundamentais: internet,
religião, e sobretudo a educação.
Ele acha louvável que o maior número possível
de pessoas frequente a universidade. Mas condena a decadência generalizada da
qualidade do ensino no mundo ocidental.
Entrevista à Serena Kutchinsky
O que eu faria se governasse o
mundo? Só posso dar uma resposta polêmica sobre o que eu faria se governasse o
mundo, já que não existe chance de que isso aconteça. À medida que fui
envelhecendo, comecei a odiar a humanidade. Assim sendo, se fosse dono do poder
absoluto, deixaria que a humanidade persistisse no caminho da sua
autodestruição, de modo que ela seria mesmo destruída, e eu seria mais feliz.
As pessoas como eu, os
assim-chamados intelectuais, fazemos nosso trabalho, podemos escrever artigos,
temos nossas formas de protestar, mas não podemos mudar o mundo. Tudo o que
podemos fazer é apoiar a política de empatia. Angela Merkel fez uma declaração
positiva quando incentivou o povo alemão a acolher refugiados sírios. Ela mudou
a imagem do povo alemão em todo o mundo. Depois disso, os alemães já não serão
vistos como membros da SS de Adolf Hitler. Isso é o que um político pode fazer.
Na rede não existe controle de qualidade
Os jovens precisam aprender a
filtrar e a questionar as informações que recebem através da internet, em vez
de toma-las como verdades absolutas. Trata-se de uma tarefa difícil. Eu uso a
Wikipedia e sei que posso confiar em 90 por cento do seu conteúdo. Mas, na
minha própria página, as pessoas escreveram que eu sou o primeiro de uma fiada
de 13 irmãos, e que me casei com a filha do meu editor. Nada disso é
verdadeiro. Assim, essa informação pode estar sujeita à manipulação. Um dos
meus netos tem 15 anos e diz que muitos de seus amigos acreditam nas “teorias
da conspiração” que são divulgadas na Internet. Na rede não existe controle de
qualidade, e isso é um enorme problema.
O drama da internet é que ela
promoveu o idiota da aldeia a detentor da verdade. As redes sociais deram voz a
legiões de imbecis que, antes dessas plataformas, apenas falavam nos bares,
depois de uma dose de cachaça, sem prejudicar a coletividade. Essas redes constituem
um fenômeno que nos permite ter acesso a conteúdos cujo acesso, de outra forma,
seria muito difícil. Mas... nem tudo são rosas e, a verdade, é que muitas
pessoas não estão “educadas” para fazerem bom uso da internet e das redes
sociais em particular. Normalmente, esses imbecis seriam imediatamente calados,
mas agora têm o mesmo direito à palavra que um Prêmio Nobel!
Livros com menos de cem páginas
Cada governo deveria fazer um
grande esforço para tentar incrementar e melhorar a educação. Antes da Primeira
Guerra Mundial, apenas cerca de 20 por cento das pessoas na Europa recebera um
ensino fundamental. Hoje em dia, o problema são as universidades. Procura-se
reduzir os requisitos exigidos para entrar-se nela, de modo que mais pessoas
tenham acesso ao ensino superior. Isso é louvável, mas apresenta o risco de que
a qualidade do processo educacional seja reduzida. Isso aconteceu na Itália, no
Brasil e na maioria dos países recentemente, e os resultados são uma tragédia.
Agora, os três primeiros anos de universidade são muito fáceis e os alunos não
têm de ler livros com mais de 100 páginas. Aqueles que detêm o poder precisam
compreender que para vencer a pessoa precisa enfrentar desafios. Quando eu
estava na universidade tive de ler milhares e milhares de páginas e não morri
por causa disso!
O ensino de línguas é a única
coisa que eu tornaria obrigatória nas escolas. Se o conceito de Europa existe,
ele é baseado no conhecimento mútuo da linguagem. Em dois de seus maiores
países, França e Inglaterra, a maioria das pessoas parecem conhecer apenas a
sua própria língua. Até bem pouco tempo, na Inglaterra, as pessoas eram
fluentes em latim. Hoje, poucos sabem que o latim é uma língua. O meu neto é
uma exceção à regra, há dois anos estuda grego, mas apenas porque nós, seus pais
e avós, assim o quisemos; ele ainda não é capaz de ler Homero no original,
claro. Mas tem desenvolvido uma compreensão da civilização. Este é o sentido da
palavra grega "encyclios," que significa "educação
circular", de onde vem a palavra "enciclopédia".
A necessidade de uma crença religiosa
Os homens são animais religiosos.
Os cães não são religiosos. É verdade que eles latem para a Lua, mas
provavelmente não por causa da religião. Os seres humanos têm a tendência de
buscar as razões e os motivos da situação em que se encontram. Há uma bela frase
atribuída a GK Chesterton: "Quando os homens não acreditam mais em Deus,
não é que passaram a acreditar em nada; é que passaram a acreditar em tudo.”
Não há governante do mundo capaz de eliminar a religião. Você pode ser ateu ou
não-crente, mas tem de reconhecer que a grande maioria dos seres humanos
precisa de alguma crença religiosa. Karl Marx dizia que a religião é o ópio do
povo, que ela mantém as pessoas tranquilas. Mas a religião também pode ser a
cocaína do povo. Ela tem uma função dupla: dar resposta a algumas questões
fundamentais e, às vezes, empurrar os crentes na luta contra os não-crentes.
Trata-se de uma das características da humanidade, da mesma forma que os seres
humanos constituem a única espécie capaz de amar.
Por último, se eu fosse governante
do mundo, gostaria de obrigar as pessoas a ler todos os meus livros, para que
eles se tornem tão inteligentes como eu e não acreditem que devamos ter um
governante do mundo! Fico irritado quando recebo comentários positivos quando
eles são positivos por razões equivocadas. E às vezes sinto-me sensibilizado
por comentários negativos porque quem os faz de algum modo percebeu que nos
meus escritos existe algo de verdadeiro. Outras vezes, fico irritado com um
comentário negativo porque acho que ele é simplesmente estúpido. Mas tudo bem,
isso faz parte do jogo.
Fonte: https://www.brasil247.com
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