“Principal lugar de transformação não é o de Deus, mas o da pertença religiosa” – Por Nuno Ribeiro e Lurdes Ferreira



O lugar da futura religiosidade das sociedades vai colocar em causa tanto a laicidade dos Estados como as próprias hierarquias das igrejas, diz o antropólogo e sociólogo Alfredo Teixeira.

Alfredo Teixeira, antropólogo e sociólogo, responsável do Centro de Estudos de Religiões e Culturas na Universidade Católica Portuguesa, antevê que o lugar futuro da religião tende a ser cada vez mais uma escolha de "radical" liberdade individual.

Meio milénio depois de Thomas More, como é possível que a milhões de pessoas não seja permitida a liberdade religiosa?

Não há uma explicação única para todos os contextos em que a liberdade religiosa sofre limitações. Em alguns casos advém de um paradigma político, em que uma certa ideia política tentou substituir a função de agregação da religião na sociedade, a construção de uma ideia de futuro para a vida das pessoas. Em outros casos, advém da hegemonia que uma determinada tradição religiosa tem num espaço e da relação que estabelece com as outras dinâmicas sociais.

Nas sociedades que fizeram a experiência histórica da modernidade, onde o lugar da religião sofreu uma alteração importante a partir dos séculos XVI e XVII, temos formas bastante diferentes de inscrever essa liberdade religiosa no espaço público. Temos uma identidade nacional fortemente vinculada a uma entidade religiosa nas sociedades do Norte da Europa em que a própria ideia de Nação foi configurada religiosamente, a Dinamarca, por exemplo, embora depois a sociedade seja muito secularizada e a religião tenha um impacto diminuto no quotidiano. Mas quando se pensam como Nação essa referência luterana torna-se muito preponderante. 

Na sociedade britânica temos como chefe de uma igreja um monarca. Nas sociedades do Sul temos a contratualização do Estado com as igrejas maioritárias, portanto modelos concordatários, ou sociedades bi-confessionais, onde a pluralidade religiosa tem um forte equilíbrio, como a Alemanha. O Estado regula e faz da religião uma espécie de serviço público: as universidades têm faculdades de Teologia católicas e protestantes sustentadas pelo próprio Estado, os ministros de culto são como funcionários públicos.

Qual é hoje o número de pessoas que no mundo são perseguidas ou privadas da sua religião?

Falar de números é difícil. Por exemplo, numa sociedade como a China é difícil falar de população privada de liberdade religiosa quando tivemos um século de construção de práticas onde a socialização excluiu o universo da expressão religiosa. O que subsiste hoje ou é muito ligado ao Estado ou, então, quase um religioso selvagem, que invade a China e preocupa o Estado. É um fenómeno novo, uma emergência do religioso não a partir da erosão das religiões tradicionais mas da erosão de uma determinada política sobre a religião que se configura como um vazio religioso.

Podemos falar de uma geopolítica das religiões?

Claro. Hoje, as religiões têm essa escala. Quando pensamos em realidades como o evangelismo pentecostal, as igrejas chamadas neopentecostais, que são dentro do cristianismo o fenómeno religioso que mais se expandiu nas últimas décadas, não é independente da mundialização, de dinâmicas de expansão do mercado. Em muitos casos são igrejas que se vão aproximar muito de dinâmicas de crise.

Pode concretizar?

Por exemplo, a expansão destas igrejas na África subsariana. Estas sociedades que tinham sido regiões de missionação tradicional, onde as igrejas protestante, católica e o próprio Islão tinham uma inscrição muito ampla, conheceram recentemente estes novos fluxos e, em particular, nas complexas periferias urbanas. 

No quadro pós-colonial, as estruturas tradicionais destas sociedades desmoronaram-se e leva-as a não ter um stock da tradição e, por outro lado, não têm o Estado providência, securitário, que ajuda a construir uma certa coesão. Estas igrejas são muito marcadas pela lógica da conversão individual. Ser crente, neste contexto, é aderir individualmente a um conjunto de convicções e de propostas. Não há, como no caso das igrejas cristãs mais tradicionais e do próprio islão, uma lógica de transformação da sociedade, de inclusão numa sociedade mais ampla. Há, sim, uma palavra dirigida ao indivíduo que está numa situação crítica…

Também acontece na América Latina…

Sim, sobretudo no que é a expansão em determinadas classes sociais, embora haja outras dimensões deste fenómeno que o tornam atractivo para outros extractos socioeconómicos, sobretudo na dimensão do pragmatismo de uma religião do bem-estar, da realização pessoal. Estes grupos religiosos estão a inscrever-se no que chamaria as fracturas de uma modernidade múltipla. 

Quando falava do mapa da modernidade estava a falar da modernidade histórica, hoje não há lugar que não seja moderno, esta dinâmica expandiu-se com os seus paradoxos. No hemisfério Sul temos uma modernidade própria, que não é a modernidade europeia ou a da América do Norte.

É mais individualizada?

Tem como suporte o actor fundamental da modernidade, que é o indivíduo. Deixou de ser a comunidade.

Está a sugerir que o espaço para o religioso vai ser mais individual?

Estou a sugerir isso, mas não tenho capacidade de dizer que é uma dinâmica que se vai concretizar da mesma forma em todos os espaços sociais e culturais. Tivemos compreensões diferenciadas da laicidade, desde sociedades com modelos de laicidade muito estrita, com o Estado neutro do ponto de vista religioso sem qualquer tarefa de regulação com uma política de estrita laicidade, como em França, onde a inscrição do religioso na esfera pública tem as dificuldades conhecidas, em particular no caso do Islão, com as tensões que observamos nas últimas décadas.

Anos atrás quando foi aprovada uma nova lei da laicidade que tinha como objecto regular questões novas que a presença da comunidade islâmica trazia à sociedade francesa, recordo que uma jovem muçulmana universitária contestou a lei, não pela proibição do Estado em usar o véu, o que seria na lógica do choque cultural, mas dizendo que queria ter o direito de escolher. Isto é a incorporação na identidade islâmica dos valores da liberdade individual.

Cabe ao Estado impor regimes igualitários entre religiões?

O Estado tem sempre muitas dificuldades em lidar com este problema. Nas sociedades que fizeram esta experiência histórica de pluralização no quadro de uma presença historicamente marcada pelo cristianismo, porque a forma como compreendemos o pluralismo religioso nas sociedades não é independente do trabalho histórico feito pelo cristianismo mesmo em tensão e conflito, fomos conduzidos a um modelo do mercado, da livre concorrência. Aí, quando o Estado é visto a apoiar a presença de determinados grupos religiosos nas sociedades, a distanciar-se de outros ou a declará-los ilegítimos, facilmente pode ser percebido como uma espécie de interferência nas leis da concorrência, da oferta e procura.

Este paradigma está mais presente do que pode parecer, porque até os próprios grupos religiosos o interiorizam e usam os mecanismos próprios da propaganda do mercado para tornarem pública a sua mensagem. Claro que isto tem impacto quando se pensa o problema da relação do Estado com o pluralismo religioso. 

Em algumas sociedades, como o Canadá, chegou-se ao ponto de considerar que a partir do momento em que o Estado protege dimensões do religioso que são patrimoniais, isto pode ser visto como perpetuação da hegemonia de uma determinada tradição religiosa.

Também poderia ser encarado como, através de um processo igualitário, promover diversas igrejas de Estado?

É esse o lugar de todas as ambiguidades. O Estado, pelo papel que tem na sociedade, qualquer que seja a perspectiva que assuma enquanto regulador, ela terá sempre impacto na própria organização do religioso.

Então, que deve fazer o Estado? Nada?

Não digo que não deva fazer nada. O Estado está em maus lençóis (risos), porque a possibilidade de agir neste contexto tem as mesmas dificuldades que tem para agir no domínio da economia e das outras dinâmicas sociais. Mesmo que o Estado tenha essa política de estrita neutralidade, o que vai acontecer é que o indivíduo tem formas de afirmar a sua presença na sociedade que lhe vai permitir fazer regressar, a partir das suas convicções pessoais e escolhas, o religioso à esfera pública.

Por outro lado, sendo a pluralização religiosa um factor que pode promover a aproximação entre grupos com tradições diferentes mas também favorecer todas as formas de comunitarismo e desagregação social, nesse sentido o Estado está em maus lençóis. De facto, quando quer intervir e de alguma forma apoia o religioso como factor de coesão social e cria dificuldades a outros grupos, em nome de que valores o vai fazer?

A história mostra-nos que foi possível partilhar valores, como a afirmação progressiva do valor do cuidado da vítima. As sociedades antigas não cuidavam das suas vítimas, nem sequer lhes chamavam vítimas. Os processos de coesão social passavam por excluir, excluir o estrangeiro, a mulher, há zonas de exclusão muito vincadas. [Jürgen] Habermas sublinha muito este aspecto, quando refere que grande parte dos valores consensuais nas nossas sociedades radicam, segundo ele, na óptica da fraternidade cristã, só que as pessoas já não precisam de ser cristãs para viver esses valores. Esses valores emanciparam-se, o que chamo de universalização.

O que é que não muda na relação do homem com Deus?

A relação do homem com Deus é mediada através de um conjunto de configurações muito diferentes, mesmo nas religiões monoteístas. Nestas modernidades múltiplas, a questão de Deus faz um certo consenso na humanidade. 

Nas sociedades, a relação dos indivíduos com alguma coisa que as ultrapassa, que por exemplo dá um sentido à experiência da morte, está muito mais distribuída do que a convicção de que a ideia de Deus é inútil ou dela não precisamos. O que parece ser a maior zona de transformação é, talvez, as formas de vinculação religiosa. Nas sociedades do Atlântico Norte, o principal lugar de transformação não é o de Deus, mas o da pertença religiosa. O que sofre enorme erosão não é tanto a disposição para aceitar, ou não, esse horizonte que está para além de nós, mas a forma como isso é vivido e se exige uma determinada vinculação do crente. 

Nos estudos, a categoria que mais cresceu, desde 1999 até 2011, foi a de crente sem religião, que se considera aberto à questão religiosa mas sem a necessidade de o vincular a uma pertença, a uma igreja, e isto é transversal do ponto de vista socioeconómico. Isto acontece por uma transformação de médio curso, que se tornará em transformação de longo curso, de sociedades que se afirmam cada vez mais na lógica de emancipação do indivíduo, ao ponto de o indivíduo achar que para viver essa afirmação religiosa o pode fazer através de uma radical autonomia. Assim, o que está verdadeiramente em crise é a pertença [a uma dimensão normativa do religioso] e não a crença.

Nessa perspectiva, ser religioso é um acto de pura liberdade?

E será cada vez mais numa sociedade de indivíduos, o religioso torna-se, cada vez mais, num lugar de liberdade. O valor da liberdade religiosa, não apenas na versão tradicional de liberdade de culto, mas inscrita nesta experiência de uma radical liberdade individual, parece-me um lugar muito interessante para pensar o que são as dinâmicas actuais na sociedade. É uma dinâmica que causa erosão nas próprias instituições religiosas, porque é uma liberdade que em certa medida põe em causa a concepção de laicidade do Estado, mas também a configuração do religioso instituído, hierarquizado, normativo. É, a meu ver, o lugar da futura religiosidade das nossas sociedades.

Qual é hoje a utopia que se coloca ao espaço religioso?

Nesse ponto de vista, a utopia não será, apenas, um horizonte. O religioso aparece hoje como um suplemento fundamental da realização das pessoas. Há um certo desejo de encontrar algo que responda às inquietações das pessoas e isso não é fácil de encontrar nestas respostas hiperespecializadas da sociedade. Talvez o dinamismo que transcreve melhor a aspiração das pessoas é encontrar alguma coisa que, de novo, dê sentido global à vida sem limitar a liberdade individual, sem o peso hegemónico de uma estrutura, seja política ou religiosa, que no fundo vai conseguir isso à custa de uma limitação da liberdade individual.

https://s.publico.pt/NOTICIA/1719878




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