O que a interpretação jurídica pode aprender com a interpretação bíblica - Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
A atuação do jurista é
substancialmente interpretativa.
A compreensão de textos constitucionais,
legais e contratuais é precedida, informada e de algum modo concluída por
juízos de interpretação. Essa é mais uma semelhança, entre tantas outras que
há, entre Direito e Teologia, campos epistêmicos que carregam uma trajetória
convergente.
Harold J. Berman, em intrigante livro sobre a História do Direito,
explorou essa relação, com foco nas fontes teológicas da tradição jurídica
ocidental, no contexto do catolicismo; John Witte Jr. o fez também, na
conjuntura das tradições reformadas, especialmente a luterana.
Essas percepções são extensivas a
problemas de hierarquia (expressão que tem sentido originariamente teológico,
implicando a ideia de sagrado, na etimologia grega), de fixação de textos
canônicos (que também consiste em operação substancialmente teológica, pautada
pela constatação de textos de autoridade), a par de arranjos institucionais
orientados para a acomodação de conflitos e de angústias humanas. Paul Ricouer,
referindo-se a Johannes Weiss e a Albert Schweitzer, a propósito, entre outros,
do tema central do “kerygma”, aproximava o esforço da interpretação
neotestamentária a um fundamento não escatológico de liberdade; como é também,
afirmo eu, a liberdade o sentido e o limite da interpretação jurídica.
É nesse contexto que o estudo do
livro de Augustus Nicodemus Lopes é também seminal para os que atuam e pensam
no ambiente jurídico. O autor é Pastor presbiteriano, com mestrado na África do
Sul, doutorado nos Estados Unidos, e ampla atuação como pastor e professor, no
Recife, em São Paulo, em Goiânia, entre outros. Escrito sob um ponto de vista
reformado esse belíssimo texto centra-se na demonstração de que o método
gramático-histórico é o que melhor se adaptaria “ao caráter humano e divino das
Escrituras”. O livro é construído com material de aulas sobre o tema,
circunstância que comunica com clareza e objetividade pontos controvertidos dos
vários modelos e fórmulas de interpretação bíblica.
O tópico dos distanciamentos
(temporal, contextual, cultural, linguístico e autoral) das Escrituras é o
ponto de partida do livro, revelando, humana e humildemente, os limites e os
paradoxos de uma tentativa de exegese séria dos textos bíblicos. Há uma
sistemática e bem elaborada síntese dos primeiros intérpretes do Antigo
Testamento, a exemplo dos Rabinos do Antigo Israel, de Filo de Alexandria e de
Flávio Josefo; nesse campo histórico há também extensa referência às comunidades
do Mar Morto, cujos manuscritos, encontrados em 1947, são estudados por
Augustus Nicodemus Lopes, menos como pontos de divergência ou de convergência
com o Cânon, e mais porque “refletem as práticas hermenêuticas em vigor naquela
época”. Isto é, o autor nos evidencia que cada época constrói sua exegese, sua
Teologia, do mesmo modo, e agora a ilação é minha, que cada tempo constrói suas
interpretações e suas verdades, também e substancialmente, quanto a seus
arranjos jurídicos.
É ao mesmo tempo com muito rigor
que Augustus Nicodemus Lopes explora os intérpretes alexandrinos (Orígenes e
Atanásio) e antioquianos (Teófilo), os pais latinos da Igreja (Agostinho e
Jerônimo), os intérpretes da Idade Média (Cassiano, Bernardo de Claraval), os
reformadores (Lutero, Calvino), com estações ainda em Erasmo de Roterdã,
humanista católico, sobre quem o autor observa que “(...) teve importante
contribuição para a hermenêutica que se desenvolveu após a Reforma (...) Ele
desejava alcançar o sentido simples e original do texto bíblico e torná-lo
significante para as pessoas de sua época (...) Seu alvo era simplificar o
Cristianismo, exaltar a razão e enfatizar a moralidade em vez do ritualismo que
prevaleceu na Idade Média”.
Passando pela Idade Moderna, o
autor alcança também os intérpretes contemporâneos, sob uma etiqueta de
“pós-modernos”, com especificações no que denomina de “vertente
teológico-psicológica” (Schleirmacher), “vertente exegética” (Bultmann),
“vertente teológica” (Barth), “vertente-lingüística” (Saussure), e
“vertente-filosófica” (Gadamer e Derrida), além, naturalmente, dos chamados
estruturalistas, no contexto do que denomina de “estruturalismo bíblico”.
A referência a esses pensadores,
especialmente Saussure, Gadamer e Derrida, suscita ambiência familiar para os
estudiosos de hermenêutica jurídica; refiro-me, entre outros, ao tema dos
preconceitos como condição da compreensão, um dos núcleos discursivos que se
colhe em atenta leitura do “Verdade e Método”; cuja conexão com a experiência
normativa é explicitada em autores de muito vigor intelectual, a exemplo de
Inocêncio Mártires Coelho e de Lênio Streck. Para este último, Streck, com base
em Gadamer, “o caráter da interpretação do direito é sempre produtivo (...)
esse aporte produtivo forma parte inexoravelmente do sentido da compreensão
(...) é impossível o intérprete colocar-se no lugar do outro”; para aquele
primeiro, Inocêncio, a pré-compreensão “é prefigurada pela tradição em que vive
o intérprete e que modela os seus preconceitos (...).
O tema da compreensão é
recorrente nos juízos de interpretação jurídica, situação que também pretende
se ajustar nos juízos de interpretação bíblica, para a qual Gadamer pretenderia
qualificar também a chamada “fusão de horizontes”. Para Augustus Nicodemus
Lopes, “apesar das contradições internas e das críticas, a filosofia
hermenêutica de Gadamer ganhou grande aceitação no mundo acadêmico e contribuiu
de forma decisiva para o surgimento de sistemas de interpretação da Bíblica
centrados no leitor, inerentemente subjetivos (...)”. Augusto Nicodemus
Lopes, ao que consta, contesta a fórmula da fusão dos horizontes, forte na
percepção de que a realidade mostra que o intérprete nem sempre estaria preso a
seus preconceitos; é que, afirma, “se Gadamer estiver certo, o leitor sempre
interpretaria o texto da mesma maneira”.
Miríade de problemas de
interpretação jurídica possuem correlatos em problemas de interpretação
bíblica. Ambos os campos podem mutuamente se socorrer, em busca do
esclarecimento e da tomada de decisões. Quando afirmo que a interpretação
jurídica tem a aprender com a interpretação bíblica refiro-me à necessidade de
mais obras de hermenêutica jurídica de sistematização de várias correntes,
ainda que contemos com belíssimo o livro de João Baptista Herkenhoff.
No limite, o Direito e a Teologia
são, do ponto de vista epistêmico, experiências humanas, profundamente,
inegavelmente humanas, que guardam semelhanças e dissemelhanças. O Direito se
pauta pela construção de arranjos de convivência, práticos, e a Teologia busca
na revelação, na intuição e na compreensão das limitações também humanas, uma
fórmula de superação que se desdobra também no mistério da transcendência.
Nesse sentido, a leitura do livro
de Augustus Nicodemus Lopes, a par de seus insuperáveis méritos intrínsecos, de
rigor intelectual e de método, de riqueza de informações, de provocações
intelectuais, de orientação pedagógica, é também uma recorrente lembrança de
que os problemas de interpretação são universais, e que questões de exegese
jurídica também são metodologicamente visitadas pela experiência Teológica.
2. Harold J. Berman, Law and
Revolution- The Formation of the Western Legal Tradition, Cambridge,
Massachusetts and London: Harvard University Press, 1983, pp. 165 e ss.
3. John Witte Jr., Law and
Protestantism- The Legal Teachings of the Lutheran Reformation, Cambridge:
Cambridge University Press, 2002.
4. Paul Ricouer, Ensaios
sobre Interpretação Bíblica, São Paulo: Novo Século, 2004, pp. 149 e ss.
Tradução de José Carlos Bento.
5. Cf. Carlos Maximiliano, Hermenêutica
e Interpretação do Direito, Rio de Janeiro e São Paulo: Livraria Freitas
Bastos, 1965, pp. 273 e ss.
6. Augustus Nicodemus Lopes, A
Bíblia e seus Intérpretes, uma breve história da interpretação, São Paulo:
Editora Cultura Cristã, 2004.
7. Cf. Augustus Nicodemus
Lopes, cit., p. 7.
8. Cf. Augustus Nicodemus Lopes,
cit., p. 8.
9. Cf. Augustus Nicodemus Lopes,
cit., p. 9.
10. Augustus Nicodemus
Lopes, cit., p. 65.
11. Augustus Nicodemus Lopes,
cit., p. 167.
12. Cf. Augustus Nicodemus Lopes,
cit., p. 226 e ss.
13. Hans-Georg Gadamer, Verdade
e Método, Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, Petrópolis:
Vozes, 1999, pp. 416 e ss. Tradução de Flávio Paulo Meurer. Revisão de Ênio
Paulo Meurer.
14. Lênio Luiz Streck, Jurisdição
Constitucional e Hermenêutica, uma Nova Crítica do Direito, Rio de Janeiro:
Forense, 2004, p. 6.
15. Inocêncio Mártires Coelho, Interpretação
Constitucional, São Paulo: Saraiva, 2007, p. 6.
16. Augustus Nicodemus Lopes,
cit., p. 220.
17. Augustus Nicodemus Lopes,
cit., p. 219.
18. João Baptista Herkenhoff, Como
aplicar o Direito, Rio de Janeiro: Forense, 1999.
Arnaldo
Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela
Faculdade de Direito da USP, doutor e mestre em Filosofia do Direito e do
Estado pela PUC-SP, professor e pesquisador visitante na Universidade da
California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu
(Frankfurt).
Fonte: http://www.conjur.com.br
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