Católicos, ortodoxos, evangélicos e judeus: a Páscoa em versão jovem – Por Catarina Martins


Um católico praticante, três cristãs ortodoxas não praticantes, uma evangélica a perder a fé em Deus e um judeu a descobri-la partilham os rituais de celebração da Páscoa. São jovens entre a religião e a festa de família.

A Páscoa da família Alvim parece saída de outros tempos. Todos os anos mais de 100 pessoas reúnem-se para um fim-de-semana de celebração. A fotografia de família é tirada na grande escadaria da Quinta de Seiça, o único local com espaço suficiente para permitir que as sucessivas gerações Alvim, compostas por famílias numerosas, caibam no retrato. Há muitas crianças e jovens e todos estão impecavelmente vestidos e sorridentes.

A Páscoa dos Alvim é uma grande festa familiar em torno de uma festa religiosa, não apenas um almoço por tradição e de costumes esquecidos com o passar das décadas. 

Joaquim Alvim, 15 anos, é o mais novo de oito irmãos e explica a importância desta celebração: “A Páscoa é aquele momento do ano em que todos os Alvim se juntam. No Natal geralmente só se encontram os primos direitos, mas na Páscoa unimos a família toda. Estamos todos juntos na quinta e nunca esquecemos a ressurreição de Jesus Cristo”.

Este ano, a mãe e os irmãos de Joaquim celebram a quinta-feira e sexta-feira santa em Lisboa, só partindo para Ourém no domingo. Uma das irmãs está prestes a ter o segundo filho, que pode nascer a qualquer momento. Os Alvim estão convencidos que nascerá este domingo de Páscoa.

No caminho para Ourém é provável que parem em Fátima, “aproveitando para rezar”, diz Joaquim. Além da missa e do almoço, os Alvim desdobram-se em actuações musicais e cânticos, religiosos ou outros, e na corrida pela busca dos ovos de Páscoa escondidos pelos mais velhos entre os arbustos. Será o desfecho de uma celebração mais alargada que começou no dia 10 de Fevereiro, data do início da Quaresma segundo a Igreja Católica.

Se para muitas famílias de origem católica em Portugal esse dia pode até ter passado despercebido, para Joaquim, o período que então se iniciou é da maior importância e exige sacrifícios especiais. “Nas sextas-feiras da Quaresma não comemos carne. Durante todo o tempo, fazemos sacrifício daquilo que mais queremos”, diz o jovem.

O jejum e a abstinência observados pela família Alvim traduzem-se em quê? “Não se trata só da comida, mas também de ajudar mais em casa, de tentar rezar o terço todos os dias”, continua. E como resiste um jovem a um mundano século XXI, quando entre muitos dos seus amigos essas práticas já desapareceram? “O melhor para fazer o jejum é pensar em Jesus. Ele esteve 40 dias sem comer nada”. E é assim que, por vezes, Joaquim lá consegue evitar comer um chocolate.

Os últimos Censos, de 2011, indicavam que o número de pessoas que se identificava como católicas pouco baixou numa década (de 7,35 milhões em 2001 para 7,28 milhões dez anos depois). 

Em contrapartida, subiu o grupo de quem dizia não ter religião ou de quem tinha outra que não a católica. Portugal contava, no ano do Censos, com 615 mil pessoas que se assumiam sem religião (o dobro de uma década antes) e 348 mil que se afirmaram crentes de outra religião que não a católica (mais 80%).  

Luana Pereira, 19 anos, promete que vai contornar a proibição da mãe e terá comido carne pela primeira vez na chamada “sexta-feira santa”. “Acho que desta vez vou comer. Não acredito em Deus”, diz a brasileira que está em Portugal há nove anos. A mãe de Luana é cristã evangélica e frequentadora assídua da Igreja Deus e Amor. Luana já foi crente, mas afastou-se da fé. Para desgosto da mãe. “A minha mãe chateia-se muito e diz: ‘Você tem de acreditar, vamos na Igreja’”.

A jovem de 19 anos entrou uma vez na igreja a que a mãe vai, mas diz não querer repetir a experiência. “Fiquei assustada. Era uma gritaria de todo o tamanho, estava todo o mundo rezando”, diz, sem paciência. A atitude de Luana não traduz apenas uma fase rebelde ou intolerância face aos rituais religiosos. Fala de uma transformação mais profunda. “Quando eu era pequena, acreditava muito em Deus. Agora vejo o que está a acontecer no mundo. Se existisse mesmo um Deus, ele não deixaria isto acontecer. Acredito que existe qualquer coisa, mas não gosto de dogmas. Os padres estão programados para dizer sempre a mesma coisa”, desabafa.

Logo de seguida, outro desabafo: “A minha mãe não gosta nada que eu diga isso.” A amiga Natia Machaidze, georgiana de 19 anos, aproveita a deixa para confessar: “Quando digo isso à minha mãe, ela também não gosta”. 

Natia Machaidze é natural de Tbilissi, na Geórgia. Veio para Portugal há cinco anos. Frequenta o 11º ano no Liceu Passos Manuel, onde é colega de turma de Luana. A Páscoa ortodoxa é uma celebração de extrema importância para os crentes desta Igreja, talvez mais ainda do que o Natal. Na Geórgia, o fim-de-semana de Páscoa (que não é celebrado obrigatoriamente na mesma altura que a Páscoa católica devido à diferença de calendários) era sempre celebrado com uma grande festa em família, fartos almoços acompanhados por idas à igreja. Em Lisboa, a família é composta pela Natia, os pais e dois irmãos mais novos e as idas à igreja são cada vez menos frequentes. 

“Fomos uma vez à igreja russa, mas não costumamos ir à missa. A minha mãe diz que acredita em deus, mas não precisa de ir à igreja para o demonstrar”, diz. Ainda assim, quando a Páscoa ortodoxa se estiver a aproximar, este ano, calha a 1 de Maio, a família Machaidze vai enfeitar a casa com ovos de um tom vermelho-acastanhado, tingidos no corante natural libertado pela cozedura das cascas de cebola e das raízes de grana e com velas de mel, adquiridas na Geórgia nas viagens de férias. A única iguaria típica da Páscoa preparada na casa dos Machaidze é o pashka, um bolo de frutos secos que os eslavos comem tradicionalmente nas celebrações pascais.

Natia tem dificuldade em enumerar outros hábitos georgianos neste período e chega a procurar no Google. Depois lembra-se que a mãe assiste sempre, pela Internet, à celebração do Ritual do Fogo na Igreja do Santo Sepulcro em Jerusalém

Natia, que parece não ter a certeza de acreditar em deus, lá acaba por dizer que o que acontece nessa igreja é “um milagre”, referindo-se ao acender supostamente espontâneo de milhares de velas pelos fiéis ortodoxos. Mas para Natia o mais importante neste período é o almoço com a família e, principalmente, a possibilidade de comer pratos georgianos de todos os dias como num banquete. “Xachapuri [massa com queijo no forno], bobinai [feijão com especiarias]. Aiiii!”, diz Natia, antecipando já a satisfação.

A amiga Luana, para quem a Páscoa também se resume ao almoço de domingo com a família, onde se juntam tias, tios, primos e se come peixe, carne, arroz, feijão, mais carne, junta-se-lhe no elogio algo nostálgico à comida georgiana. “É tudo muito bom”, diz. E a conversa sobre a celebração da Páscoa fica por aí. 

No restaurante de comida russa Stanislav, no centro de Lisboa, a conversa sobre a Páscoa também gira em torno da importância dos almoços de família. No início de Maio, o restaurante estará também decorado com os ovos tingidos e haverá fatias de pashka para distribuir pelos clientes. 

Milene e Nicole Pskhatsieva, duas meninas de 13 e 7 anos, amigas de Stanislav, o dono do restaurante, contam como decoram os ovos com autocolantes ilustrados com motivos religiosos ou figuras de desenhos animados e como se divertem a chocar os ovos uns contra os outros, perdendo a criança que tiver o azar de ver o seu ovo estalar primeiro.

As meninas já nasceram em Portugal, mas são filhas de pais uzbeques, que chegaram à zona de Lisboa há cerca de quinze anos e abriram lojas com mercadorias eslavas, onde imigrantes da Geórgia, Ucrânia, Moldávia, Rússia e de outros países da ex-União Soviética, compram produtos típicos para o dia-a-dia, mas também para a celebração de festividades. 

Para a Páscoa, a lista de compras terá de incluir o rábano, a beterraba, os enchidos, a couve ácida, o arenque fumado, o vinho doce, bombons e, para quem não quiser dar-se ao trabalho, o pashka já confeccionado. 

Yana, a mãe das crianças, cresceu num país que, além de ser maioritariamente muçulmano, pertencia também à União Soviética, o que significou que as práticas religiosas nunca tiveram grande importância na sua vida. Milene, de 13 anos, intervém e diz: “Mas para acreditar em deus não é preciso ir à igreja”.

Contrariamente ao que aconteceu à família de Natia, os Pskhatsieva começaram a frequentar mais a igreja desde que estão em Portugal, influência dos amigos ucranianos e moldavos, mais tradicionais e ligados à religião, explica Yana. É provável que no dia 1 de Maio Milene e Nicole peguem em cestos com Pashka e ovos tingidos e assistam à missa numa igreja de Cascais. 

As celebrações duram toda a noite e juntam vários ortodoxos próximo da marginal, num espírito comunitário da saudação pascal ortodoxa. “Cristo ressuscitou”, dizem uns. Os outros respondem: “É verdade que ressuscitou”.

Mas a família Pskhatsieva prepara-se para celebrar este domingo a Páscoa católica, tal como têm feito. Ainda que esta celebração não envolva idas às igrejas católicas, é normal para estes uzbeques juntarem-se num almoço que inclui o folar e uma ida à praia. Em parte, este novo costume é motivado pela interrupção lectiva das crianças que se encontram em férias de Páscoa. Em parte, é por uma questão de integração. “Já cá estamos há tanto tempo. As crianças estão de férias e aproveitamos. Também celebramos dois Natais”, diz Yana. Stanislav interrompe: “Não podemos ficar desligados”. 

Dos 348 mil crentes não católicos, ainda segundo o Censos de há cinco anos, 57 mil eram ortodoxos (o triplo de 2001), 76 mil protestantes (mais 58%) e 163 mil “cristãos de outro tipo”. O número de judeus quase duplicou em 10 anos (de 1773 para 3061), mas este grupo religioso mantém-se como um dos menos expressivos na sociedade portuguesa.

Yahoshua Miranda, 15 anos, vai este domingo a um almoço de Páscoa em casa da avó materna, católica não praticante que assinala a época festiva como um momento para juntar a família. Nesse almoço não se fala de Jesus Cristo e Yahoshua nem chega a lembrar-se de que está a celebrar uma festa de uma religião que não é a sua. Tudo se torna mais complicado quando as férias da Páscoa da escola pública que frequenta coincidem com a Pessach, que tradicionalmente chamamos “Páscoa judaica”, mas que é, na verdade, o momento em que os judeus celebram a libertação da escravatura a que foram sujeitos no Egipto. 

Pessach, que significa “passar por cima”, alude ao pedido feito por Moisés aos judeus para que sacrificassem um cordeiro e utilizassem o sangue deste nas portas das suas casas para que deus, que havia decidido sujeitar os egípcios a dez pragas, passasse por cima das suas casas, evitando que a décima praga, a morte dos filhos primogénitos, se abatesse sobre este povo.

Um dos preceitos desta celebração é não consumir alimentos que contenham fermento, uma referência ao pão cuja massa não teve tempo para levedar durante a fuga do Egipto. Mas em casa da avó é possível que haja bolos e bolachas à solta, apesar dos pedidos e dos avisos da mãe de Yahoshua, Lusa Miranda, uma judia convertida. 

“Os mais novos acabam sempre por cair”, diz Lusa. Quando, como este ano, o Pessach calha fora da interrupção lectiva não judaica (a celebração começa no dia 22 de Abril e estende-se por oito dias, terminando oito dias depois), Lusa pede na escola dos filhos que não lhes seja servido às refeições nenhum dos cinco cereais proibidos, cevada, trigo, aveia, centeio e espelta. O Pessach inicia-se com a limpeza profunda das casas, em que os judeus procuram livrar-se do chametz, ou seja, tudo o que é farinhas e cereais e massas é dado, vendido ou destruído.

Yahoshua é o primogénito, o que significa que no dia anterior ao início do Pessach tem de cumprir jejum. Não tem conseguido fazê-lo, porque acaba por se sentir mal, mas Lusa garante que este ano vão “tentar esticar-se mais um bocadinho”. No futuro, isso poderá justificar as faltas escolares, cenário que agrada a Yahoshua.

O Seder do Pessach, jantar inicial da comemoração, segue uma série de rituais definidos no Hagadá, texto com regras a serem cumpridas. Antes de a refeição propriamente dita poder começar, os judeus têm de contar a história do êxodo, fazer rezas, comer alimentos simbólicos e referentes à fuga do Egipto. 

Para que os mais novos não adormeçam ou não se aborreçam, esconde-se o afikoman (metade do matzá, o pão sem fermento que pode ser comido durante este período) para que as crianças esperem até ao final do jantar para se divertirem na busca do pedaço escondido.

Yahoshua admite que a proibição de não comer os alimentos fermentados se torna mais difícil à medida que os oito dias do Pessach vão passando. “Sinto muita falta de comer esparguete. Quando no fim podemos comer pão, é mesmo bom.” O jovem concede que, se a mãe não o tivesse levado a cumprir os rituais da fé judaica, ele teria ignorado, já não lhe ligaria nenhuma.

Há cerca de dois anos completou o Bar Mitzvá (quando celebram 13 anos, os jovens judeus são chamados, pela primeira vez, a ler a Torá, passando então a pertencer integralmente à comunidade) e agora continua a aprender hebraico. Então, o Pessach ganhou outro significado. “Sinto uma ligação espiritual com os nossos antepassados que fugiram”.  



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