Má sorte ter sido... (Dia da) Mulher - Por Paulo Mendes Pinto
É longo e continua a ser
dramático o percurso do lugar da mulher na sociedade dos países ditos
“ocidentais”.
Passado que é mais um dia 8 de Março, fazemos o balanço e fomos
bombardeados com os números que colocam verdadeiramente a nu aquilo que
somos: uma sociedade machista, que diz ser igualitária mas que mata, rouba e
trata de forma desigual as mulheres.
Mas o problema é muito mais
profundo e complexo. E sigamos apenas duas das possíveis linhas de pensamento.
Por um lado, a mulher é tratada de forma inferior, a não ser que, muitas vezes,
use dos seus atributos de beleza ou sexuais para conseguir o sucesso, sofrendo,
assim, uma dupla violentação por terem de se render a uma lógica de trocas
sexuais numa sociedade que as olha constantemente como objecto.
Mas, por outro lado, esta
catadupa de dados e factos, de valores, de números que nos mostram o quanto a
sociedade é apenas igualitária nas intenções, é a demonstração de que, pior que
fazer-se a discriminação, fazêmo-la tendo dela pleno conhecimento e
valorizando-a como negativa. Isto é, nada fazemos apesar de se conhecerem ao
pormenor as mecânicas da discriminação, como se ter um Dia da Mulher fosse um
bem superior, uma catarse e uma demonstração de valores que fizesse alguma
diferença. Não, não faz nada enquanto não se mudarem as mentalidades.
E é para o campo do que muda
muito lentamente na História que nos devemos voltar para tentar compreender em
que camisa de forças parece estarmos retidos, pouco fazendo para alterar o
estado de coisas. De facto, é devido a um misto de aspectos antigos e muito
consolidados de mentalidade, especialmente de origem religiosa, e falhanços
muito graves da nossa sociedade em termos políticos e de protecção social, que
vemos diariamente mulheres a serem mortas, assim como outras a serem empurradas
para uma prostituição não desejada para conseguirem sobreviver.
Mas mais que aspectos
simplesmente religiosos, que são aqui fortíssimos, estamos perante aspectos de
mentalidade profundamente consolidados em milénios de discriminação de uma
sociedade que desde, pelo menos, as idades dos metais, Calcolítico e Idade do
Bronze, se tornou fundamentalmente guerreira, valorizando as qualidades do
homem nessas funções.
A linguística mostra-nos um sem
número de casos significativos, como uma das formas mais comuns para, em
inglês, designar a mulher: «female» e «women». Sendo consensual a diferente
origem etimológica entre «male» e «female», assim como entre «women» e «men», não
deixa de ser brutalmente significativo que a evolução das diferentes raízes ao
longa da Idade Média tenha evoluído para esta aparente oposição em que a
palavra referente ao feminino parece ser construída pela aposição de um prefixo
à palavra que representa o masculino, criando como que uma dependência de um
sexo em relação ao outro.
Mas muito mais se poderia
apontar, como a ainda mais inconsciente realidade de em quase todas as
situações de substantivos neutros ser a forma masculina que os representa, ou, mais
interessante, ainda, o plural, desde que integre um único masculino, torna-se
quase sempre masculino: numa turma de 20 meninas e um único menino, todos são
«alunos» ou «meninos».
Se o nosso olhar for para o
universo religioso, os dados são menos subtis mas mais dramáticos. Quantas
religiões e tradições proíbem a entrada nos espaços sagrados a mulheres
menstruadas? Quantas mais vedam os sacerdócios ao género feminino?
Obviamente, na construção da
nossa mentalidade, aqui neste rectângulo europeu, a realidade cristã é muito
importante. E essa está repleta de verdadeiros mitos que lançaram a mulher para
uma situação que nos deixou profundas marcas na estrutura de pensamento, mesmo
depois de décadas de lutas e depois de já termos corpos legais praticamente igualitários.
De facto, desde que se lançou
para o quadro genesíaco a ideia de queda, de pecado original, vendo-se em Eva
o papel mais activo, que tudo se encaminharia muito mal para as fêmeas desta
espécie. Obviamente, a caracterização daquela que viria como que desfazer o que
Eva fizera perder, sendo a mãe do Messias, em nada ajudou: virgem, sem pecado,
ela é mulher mas é tudo menos comum, é um modelo inatingível. Numa instituição
feita e comandada por homens que cada vez mais recusam a prática sexual, com
Maria coloca-se num patamar de impossibilidade a perfeição que se quer para a
mulher.
E se a questão da virgindade de
Maria é, no texto bíblico hebraico que profeticamente a fundamenta, nada
consensual, a caracterização de Maria Madalena como prostituta ou resultou de
crasso e grosseiro erro de um Papa, ou foi, então, propositada montagem para
reter no medo uma população de Roma num momento de convulsões, de fomes e de
doença. De facto, no Novo Testamento, Maria Madalena nunca surge como
prostituta, tendo sido Gregório Magno (apara na passagem do séc. VI para o VII)
que, num sermão proferido num quadro de fomes e doença generalizada em Roma, o
afirmou.... O facto desta mentira ter sido tida por verdade por quase milénio e
meio mostra como estava, e está, formatada a nossa cabeça.
A verdade é que pouco melhorou na
concepção da mulher, antes pelo contrário. Mais que rejeitado o papel da
mulher nas funções eclesiásticas cristãs, o que em nada corresponde à verdade
dos textos mais antigos, foi toda a noção de corpo e de vivência da sexualidade
que foi agrilhoada numa sociedade que foi complexificando os mecanismos de
autorrepressão, as formas de censura e o desejo de fuga e uma ideia de pecado
omnipresente. Só muito recentemente a Igreja Católica abriu espaço para que a
prática sexual, sem conduzir directamente à procriação, pudesse ser algo de
direito.
Citando a peça de John Ford
que uso como base no título neste texto, parece que, mesmo numa sociedade que
tende a ver e a tratar a mulher como igual ao homem, a via da afirmação sexual
continua a ter uma força tremenda e a ser uma marca de uma certa infantilidade
de que não saímos.
Será preciso que nos dispamos
completamente das identidades herdadas, das tradições dos nossos antepassados
para conseguir, finalmente, conviver com as mulheres como simples e vulgares
seres humanos?
De facto, eu diria que é preciso
ir a esse absurdo de ruptura, não apenas em relação aos preconceitos contra a
mulher, mas como em muita outra coisa. É que são as próprias palavras que traem
as tentativas de avançar e de mudar.
No limite irónico, dizemos com
satisfação que uma mulher é virtuosa, elogiando-a. Ora, sintomaticamente, a
palavra "virtude" vem do latim virtus, palavra criada com base
em "vir", "varão", a raíz da nossa palavra
"viril", também. O que nos vai na cabeça? Simples: para uma mulher
ser virtuosa, é preciso ser... homem.
Com este léxico não vamos lá...
Paulo Mendes Pinto - Coordenador
da área de Ciência das Religiões na Universidade Lusófona.
Fonte: http://lifestyle.publico.pt
Comentários