Religião e ciência: a tarefa diplomática que resta – por Guilherme de Carvalho
Entre as tantas metáforas para o
diálogo entre religião e ciência, como as de “dois livros”, “olhos e pernas” ou
“pontes”, a imagem da “embaixada” chama a atenção para a incontornável dimensão
política da tarefa. Mas é necessário?
Não faltarão vozes para questionar
a viabilidade de tal “diplomacia”; alega-se que religião e ciência seriam
discursos intrinsecamente independentes, como defendeu Stephen Jay Gould com
sua tese dos “magistérios não interferentes”; ou que a religião seria mera
ilusão com a qual não deveríamos perder tempo, exceto em refutações. Mas as
pessoas comuns continuam “perdendo tempo” com a religião, no entanto, e
promovendo interferências entre esses dois magistérios, tanto quanto sempre o
fizeram.
Em: Os usos sociais da
ciência, Pierre Bourdieu recorre à sua noção de “campo social”, como um
universo ou mundo social envolvendo agentes, instituições e capitais próprios,
e que obedecem a leis sociais específicas, para explicar socialmente a ciência.
Assim como há o campo artístico, o jurídico ou o literário, haveria o “campo
científico” e, acrescentaríamos, o campo religioso.
Esses campos são, sim, mundos
sociais relativamente independentes; mas não são e não podem ser estanques, e
sua mutabilidade garante que sobreposições ocorram. Não é que não possamos
refletir normativamente sobre seus limites; mas que tal reflexão diz respeito
não apenas à integridade de cada campo, mas à integração pessoal dos indivíduos
que participam de ambas as comunidades, e à sua posição e função no conjunto da
sociedade, com todas as implicações políticas disso.
Como integrar fé e ciência sem
comprometer a identidade cristã? Tendo em mente o meu próprio
contexto cristão, discirno ao menos três desafios comunicacionais e
diplomáticos.
Em primeiro lugar, eu levantaria o problema antigo da tensão
entre conservadores, às vezes pejorativamente denominados “fundamentalistas”, e
progressistas ou “modernistas”, tanto no catolicismo quanto no evangelicismo, e
suas posturas conflitantes na resposta à modernidade e à ciência. A questão é:
como integrar fé e ciência sem comprometer a identidade cristã?
O segundo desfio diz respeito ao
diálogo propriamente dito entre a comunidade científica e a religiosa. Têm as
igrejas recursos intelectuais e pastorais para compreender e respeitar a lógica
interna de cada campo/mundo social e da ciência em particular? Ou melhor: como
as igrejas podem construir uma relação com as comunidades científicas de modo a
explorar as porosidades sociais naturais, mas sem comprometer a autonomia e
vitalidade interna dessas comunidades?
Finalmente, temos a questão mais
dolorosa: a dos usos políticos da ciência. Não faltam exemplos históricos, como
o de Thomas Huxley construindo a consciência profissional da comunidade
científica por meio de uma oposição à religião; ou da rejeição soviética,
liderada por Lysenko, da “genética ocidental”; ou do emprego de argumentos
científicos sobre a saúde pública visando reformas progressistas na ética
sexual.
O diálogo é necessário, nesse caso, para iluminar e avaliar a
sobriedade de tais usos, que não são necessariamente ruins, mas que podem ser
unilaterais e injustos. Não há respostas simples a esses
desafios, mas as providências imediatas me parecem óbvias: precisamos de
embaixadores entre essas comunidades.
Guilherme de Carvalho, teólogo
e mestre em Ciências da Religião, é diretor de L’Abri Fellowship Brasil e
diretor de conteúdo do projeto Cristãos na Ciência (abc2), que
realiza evento em Curitiba nos dias 4 e 5 de Março.
Comentários