A violência com nome de religião – Por Teresa Toldy e Tiago Pires Marques
Nestas conversões não é a “morte
sem sentido” que se afigura como fim inexorável, mas a morte como forma última,
ou única, de sentido.
No início de
Março, divulgou-se na comunicação social uma lista com nomes de jihadistas do
Daesh, provenientes de países ocidentais. Alguns teriam ascendência portuguesa.
Todos viviam em cidades europeias, tendo-se subitamente convertido ao islão.
Num noticiário, o jornalista mostrava-se perplexo com a decisão de vida destes jovens,
que, citando a peça, não pode conduzir senão a “uma morte sem sentido”.
O fenómeno do “Estado Islâmico”
[ISIS] é, indubitavelmente, motivo de perplexidade. Porém, interessa reflectir
sobre o que este episódio nos pode sugerir a respeito da violência que se
autojustifica com a religião. Em dois milénios de violência dita “religiosa” no
mundo ocidental, as linhas de fractura dividiram fiéis de uma e outra religião
e, dentro das religiões, as várias interpretações da tradição (ortodoxos e
heréticos).
O poder estatal foi
frequentemente o braço de uma religião ou de uma interpretação da tradição.
Este poder abateu-se sobre muçulmanos, judeus, protestantes, católicos
heréticos e indígenas. No Ocidente, a modernidade dissolveu estas oposições em
mesas redondas ecuménicas, muitas vezes de circunstância, e que nem sempre
reflectem as diferenças e desconhecimento entre religiões.
Isso mesmo sublinharam vários
representantes religiosos num encontro promovido, a 9 de março, pelo
Observatório da Religião no espaço Público (Policredos) do Centro de Estudos
Sociais (Universidade de Coimbra) na Gulbenkian sobre o tema da: violência
exercida em nome da religião.
Porém, se em geral as diferenças
entre religiões, no Ocidente, não se traduzem hoje em repressão estatal ou em oposições
violentas, isto não significa que não tenham surgido novas linhas de divisão,
geralmente centradas em problemas internos às religiões, como o sacerdócio das
mulheres, no catolicismo, e temas que são classificados como “morais”, pelo
menos no universo cristão. É o caso dos direitos LGBT, das discussões em torno
de temas como o aborto, a reprodução medicamente assistida e a eutanásia.
É sabido que, actualmente, a
extrema-direita na Europa estabelece uma relação unívoca entre violência na
religião e islão. Finge-se esquecer que, em países como a Birmânia, a população
muçulmana rohingya é vítima de uma perseguição fomentada pelo Estado
e alguns monges budistas e que, na Nigéria, há massacres envolvendo cristãos e
muçulmanos.
Por outro lado, a perseguição a
cristãos em países como a Coreia do Norte, a Eritreia, a Síria e o Paquistão;
ou a China, que, apesar de formalmente consagrar a liberdade de religião,
persegue não só grupos cristãos, mas também os membros do Falun Gong,
muçulmanos e budistas tibetanos, é também uma realidade.
No Irão e outros países, a fé bahá’í é
perseguida; e no Iraque, a comunidade yazidi é vítima do ISIS. Porém,
a diversidade de referências religiosas dos países mencionados apela a análises
mais complexas no que toca à associação da violência às diferentes religiões e
impõe a necessidade de superar visões que estabelecem um corte entre a identidade
religiosa e a realidade política.
Na década de 2000, as militâncias
ateias em países como a Grã-Bretanha e os Estados Unidos acentuaram a fractura,
esta tipicamente moderna, entre religiosos e ateus militantes. Para estes
ateus, qualquer religião, mesmo vivida no plano pessoal, fere a racionalidade
científica, é mistificadora e contrária ao progresso social. Ora, esta
problemática não se confunde com uma quarta fractura, que percorre as paisagens
políticas tocadas pela secularização (recuo do religioso para a esfera privada
e separação formal entre Estado e Igrejas).
Com efeito, as vagas migratórias
dos últimos anos reacenderam os debates sobre a identidade europeia e nacional,
em que se debatem modelos de laicidade, mais ou menos universalistas ou multiculturalistas.
O caso francês é, a este respeito, exemplar. Da direita à esquerda, nenhum
interveniente político dispensa, em França, a repetição do mantra da fidelidade
à República laica.
As atrocidades recentes cometidas
pelos que se dizem jihadistas combatendo pelo ISIS ou pela Al-Qaeda, em nome de
Alá, na Europa, África, América e Ásia, e de que muitos muçulmanos são vítima,
vêm acrescentar a estas quatro linhas de fractura, entre fiéis de religiões
diferentes, entre intérpretes da mesma religião, entre religiosos e ateus, e
entre defensores de diferentes modelos de laicidade, uma nova oposição.
Trata-se, neste caso, de um diferendo sobre a
presença da religião nesta violência, envolvendo diversas interpretações de
religião. Integrando-se na análise das causas destes actos, tais interpretações
influem nas estratégias que os visam conter e combater.
Aqueles que vêem nesta violência
uma componente religiosa descrevem o perigo de um islão fundamentalista e
violento. Contra esta interpretação argumentam os que olham para as invocações
de Alá e da jihad como uma retórica justificativa sem relação com a
religião.
Com efeito, a análise dos
processos concretos de invocação religiosa por parte das novas identidades
violentas chama a atenção para o desenraizamento de alguns destes homens e
mulheres que, em muitos casos sendo europeus, se tornam jihadistas, para a
injustiça no acesso ao mundo laboral e para a violência quotidiana de que são
alvo as pessoas com nomes árabes.
Por outro lado, não é possível
compreender esta nova violência com nome de religião sem ter em conta a
Internet, veículo incontornável de circulação de sentidos e de deslocalização
das linguagens e técnicas de morte. Não podemos, igualmente, deixar de
equacionar as representações mediáticas. Ora, estes processos retêm muito pouco
dos mundos religiosos tradicionais e mesmo dos termos do debate moderno sobre a
religião.
A interpretação que dissocia as
motivações religiosas do islão é defendida por líderes e responsáveis
religiosos, intelectuais, pela generalidade da classe política europeia e por
académicos relevantes nos estudos da religião. A inautenticidade ou
superficialidade dessas motivações resultaria do autodidactismo e iliteracia
religiosa dos recém-convertidos.
Robert Pape, James Feldman e
Karen Armstrong referem a iliteracia religiosa dos “convertidos” ao ISIS. Por
exemplo, dois ingleses ingressados nas suas fileiras teriam encomendado pela
Internet, pouco antes de partirem para a Síria, um livrinho chamado Islam
for Dummies. A partir de uma posição de esquerda, mas sublinhando, pelo
contrário, a necessidade de levar a sério a “energia religiosa” destes
convertidos, Jean Birnbaum critica nestas posições a desvalorização das
motivações expressas pelos autoproclamados jihadistas.
Para este autor, tal posição
resulta de uma tradição marxista tendente a ver no discurso religioso a
ideologia das “verdadeiras causas”, económicas e sociais. Para Birnbaum, se a
posição é criticável no plano teórico, as razões e motivações podem também ser
causa de acção, o seu problema principal estaria na negação de alguns dados
empíricos.
O autor acrescenta que, se é
certo que alguns dos convertidos sabem pouco do islão e se encontram em
posições precárias ou subalternas, outros há que têm cursos superiores, boas
condições de vida e um conhecimento da religião por que dizem lutar documentado
por uma prática religiosa longa e por boas bibliotecas pessoais.
Há, pois, nestes debates sobre a
violência com nome de religião uma guerra de interpretações sobre o que é a
religião e que se reflecte no modo como interpretamos a violência feita em seu
nome. Porventura, este diferendo ressoava já nas quatro linhas de fractura
religiosa atrás enunciadas, tornando-o apenas mais visível.
A este respeito, é oportuno citar
de novo Karen Armstrong, que lembra que o conceito de religião geralmente
utilizado nestes debates, como sistema de crenças e rituais implicando um
envolvimento afectivo dos indivíduos, existe apenas num caso histórico, o de
algumas Igrejas cristãs reformadas. Seria artificioso prescindirmos da noção de
religião para olhar para algumas destas formas de violência. Mas não nos
devemos esquecer de a completar e qualificar de acordo com os contextos e
tradições religiosas em análise.
Assim, questões como a “lista dos
jihadistas” e da dimensão religiosa dos atentados devem remeter para uma série
de questões mais afinadas. Quem são estes convertidos? Quais as suas
trajectórias? De que forma “receberam” o islão? E que islão é esse? É
necessário ainda olhar para um problema que se situa aquém da violência em nome
de Alá. Porque é que para tantos o suicídio e a “morte em nome de...” parecem
fazer mais sentido do que a vida? Nestas conversões não é a “morte sem sentido”
que se afigura como fim inexorável, mas a morte como forma última, ou única, de
sentido.
NOTA: o debate “Violência
religiosa e violência com nome de religião” decorreu na Fundação Calouste
Gulbenkian no dia 9 de Março de 2016, contando o com a presença de Abel Pego
(pastor da Igreja Evangélica Baptista de Cedofeita), António Matos Ferreira
(professor universitário), Boaventura de Sousa Santos (sociólogo), David Munir
(imã da mesquita de Lisboa), Ludwig Krippahl (Associação Ateísta Portuguesa). A
gravação em vídeo do debate será disponibilizada no site do Observatório
Policredos.
Coordenadores do Observatório
Policredos, Centro de Estudos Sociais, Laboratório Associado Universidade de
Coimbra.
Referências:
Karen Armstrong (2014), Fields
of Blood. Religion and the History of Violence.
Robert Pape (2005), Dying to
Win. The Strategic Logic of Suicide Terrorism.
Robert Pape e James K. Feldman
(2010), Cutting the Fuse: The Explosion of Global Suicide Terrorism and
How to Stop It.
Jean Birnbaum (2016), Un
silence religieux. La gauche face au djihadisme.
Fonte: https://www.publico.pt
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