O Islã não pode ser reformado. Algo na teoria e na vivência dessa religião dificulta uma reforma - Por Tarek Abi Samra
O fundamentalismo islâmico
estende o tapete vermelho ao terrorismo? Conseguirá o Islã abdicar das
interpretações extremistas?
Não há reconciliação possível entre o Islão e
a modernidade ou o Ocidente, defende nesta entrevista o escritor e filósofo
libanês Ali Harb.
Que relação tem o Islão com o terrorismo que grassa pelo mundo?
Desde os ataques do 11 de
Setembro (as Torres Gêmeas do World Trade Center de Nova York) esta pergunta
surge muitas vezes em destaque na imprensa e provoca polêmicas inflamadas,
senão mesmo manifestações de ódio. Há quem argumente que o terrorismo é uma
aberração, sem ligação ao Islã enquanto tal; a estes chamam-lhes cegos. Outros
acreditam que se trata de uma religião intrinsecamente violenta; a estes
costumamos apelidar de islamofóbicos.
Ambas as partes invocam este ou
aquele versículo do Corão, procurando assim demonstrar ora a barbárie do Islão
ora a sua natureza tolerante. Mas isso é esquecer que uma religião nunca pode
ser reduzida a um livro fundador, uma vez que é sobretudo uma prática milenar
que cristalizou num grande número de instituições e de formas culturais; seria
como remeter todos os regimes comunistas apenas para O Capital, de Karl Marx.
Ali Harb recusa-se a fazer este
tipo de regresso aos textos fundadores, para aí descobrir a essência da religião.
Segundo este escritor e filósofo libanês, uma simples leitura do Corão mostra
que esse livro sagrado tanto diz tudo como o seu oposto. Será, pois,
necessário adotar um método diferente, abordar o Islã de uma perspectiva: como
doutrina de salvação, isto é, como um sistema de pensamento que se afirmar
detentor da verdade absoluta, à semelhança do cristianismo e do judaísmo, bem
como das “religiões políticas” do século 20, como o comunismo ou o fascismo.
Semelhante abordagem revela um
potencial terrorista muito real, inerente ao Islã, ideia que Harb desenvolve no
seu mais recente livro, Al-Irhab sunna’ihi wa Al-Murshed, Al –Taghiya,
Al-Muthaka (O terrorismo e os seus criadores: o pregador, o tirano e o
intelectual), Arab Scientific Publishers, 2015).
A definição implícita de terrorismo por trás das teses do seu livro
parece bastante ampla e aplica-se tanto a atos de violência como a sistemas
filosóficos...
É verdade. Considero que o
terrorismo é essencialmente uma atitude intelectual, a do homem que acredita
ser o único detentor de uma verdade absoluta, o único autorizado a emiti-la.
Essa verdade pode ser no domínio social, religioso, político ou moral; pode ter
que ver com Deus, a nação, o socialismo, a liberdade ou o humanismo.
O terrorismo é também uma forma
de agir: quem acredita ser o único possuidor da verdade comporta -se em relação
ao outro, ao diferente ou ao antagonista, segundo uma lógica de exclusão, seja
a nível simbólico através do takfir(declaração de apostasia) e da
excomunhão, ou outras declarações de traição - seja ao nível físico - exílio ou
assassínio. O lema do terrorismo é: pensa como eu, senão acusa-te e condeno-te.
É neste sentido que o terrorismo é praticado pelo pregador que tem um projeto
religioso, pelo tirano com um projeto político, ou pelo intelectual
impulsionador de um projeto revolucionário para transformar a realidade. O
pregador excomunga, o tirano condena e declara qualquer um traidor, o
intelectual teoriza e o militante ou o jihadista atuam ou matam.
O terrorismo islâmico tem sido influenciado pelos regimes totalitários?
Os impulsionadores de novos
projetos religiosos foram influenciados, sem dúvida, pelos exemplos de Franco,
Hitler ou Mussolini, pela sua forma de governar e as suas técnicas para
controlar os homens, através da mobilização e da sua reformatação, de modo a
criar um rebanho que reproduza incansavelmente a mesma ideia feita. Esse
dualismo do dirigente endeusado e da população que o adora é uma criação relativamente
recente. Os regimes totalitários, independentemente da modernidade e
secularismo dos seus projetos, são uma reminiscência do pensamento religioso,
como evidencia a sacralização das respectivas doutrinas e a criação da figura
do líder único.
Em que sentido você afirma que um muçulmano moderado e tolerante é
coisa que não existe?
Qualquer religião monoteísta, por
definição, é um reservatório inesgotável de práticas violentas. É uma das suas
inesgotáveis potencialidades, uma espécie de vírus alojado no interior dos seus
genes culturais. Sendo a religião baseada na exclusão do outro, leva ao
dualismo entre o crente e o ímpio, o fiel e o apóstata. É impossível entender a
questão de outra forma. No lslã, a violência é agravada por um dualismo
adicional, o da pureza e da impureza. É o grande escândalo do pensamento
religioso islâmico: o não muçulmano é um ser conspurcado, impuro; é uma das
formas mais vis de violência simbólica. Daí a minha afirmação de que não há
muçulmanos moderados ou tolerantes que sejam fiéis aos dogmas e às práticas da
sua religião, a menos que sejam hipócritas, ignorantes da sua doutrina ou
tenham vergonha desta.
O exemplo mais flagrante é a
relação entre sunitas e xiitas. Após séculos de conflitos e de hostilidade, a
coexistência pacífica destes dois grupos resulta, não de pretensos valores de
moderação e de tolerância inerentes às suas doutrinas, mas devido à integração
de uns e de outros em instituições da sociedade moderna: a escola, a
universidade, o mercado, a empresa... Sempre que um dos lados regressa à
doutrina original, o conflito eclode de novo, de uma maneira cada vez mais
cruel e destrutiva. Isto leva-me a dizer que estamos na presença de duas
“religiões” mais hostis entre si do que em relação ao Ocidente ou a Israel.
Você defende que as religiões só se tomam tolerantes depois de derrotadas.
A única solução para as nossas sociedades seria derrotar o lslã, como a Europa
derrotou o cristianismo durante o Século
das Luzes? Ou pode o lslã ser reformado?
O lslão não pode ser reformado.
As tentativas de reforma que se sucederam ao longo de um século, no Paquistão,
no Egito ou noutros lugares, falharam todas e só geraram modelos terroristas. É
por isso que não confio na renovação do discurso religioso, propalada por
alguns muçulmanos e até mesmo por alguns leigos. A única saída é a derrota do
projeto religioso tal como é encarnado pelas instituições e poderes islâmicos,
com as suas ideias mumificadas e métodos estéreis. Além disso, sou muito crítico
em relação ao conceito de tolerância, um dos escândalos do pensamento religioso
em geral, uma vez que implica uma espécie de indulgência por parte do crente
para com o outro diferente dele. O primeiro acredita piamente que o outro é um
pecador, um ímpio e um renegado, senão mesmo uma vergonha para a Humanidade. A
tolerância anula, assim, qualquer possibilidade de diálogo; só o pleno
reconhecimento do outro permite que alguém quebre o seu narcisismo e entre em
diálogo com ele.
O atual incremento do terrorismo poderá ser entendido como um sinal de
dinamismo e vitalidade do Islã?
Falar de vitalidade do fenômeno
religioso recorda uma frase famosa atribuída a André Malraux sobre o “regresso
da religiosidade”. A religião está, manifestamente, ressurgindo. Mas é um
retorno assustador, que transformou o jihadista num monstro e num carrasco. Não
convém deixar-se enfeitiçar por palavras como “regresso” ou
"vitalidade".
Qualquer fenômeno ou atividade
tem dois aspetos: uma coisa que começou por ser benéfica, pode degenerar e
produzir efeitos nocivos, se não conseguirmos modificá-la e fazê-la evoluir. É
o que está acontecendo na França: o seu modelo social e econômico, o melhor da
Europa, desgastou-se e precisa ser renovado, coisa que a França parece incapaz
de fazer. Assim, considero que o projeto religioso do lslã, tal como foi
reformulado há mais de um século, não exibe nem vitalidade nem criatividade;
está reduzido a uma simples regressão ao passado, a uma reação motivada pelo
desejo de vingança contra o Ocidente que acordou a civilização islâmica da sua
letargia.
Defendo igualmente que o projeto
do Islã contemporâneo falhou em toda a parte onde os islâmicos tomaram o poder,
e em que organizações terroristas, como o Estado Islâmico e outras semelhantes,
trabalham na sua própria destruição e na do projeto religioso em geral. Quero
dizer com isso que as sociedades árabes necessitam de atravessar todas as
calamidades, desastres, massacres e guerras civis para se convencerem de que o
lslã já não é válido para construir uma civilização desenvolvida e moderna. Não
há reconciliação possível entre o lslã e a modernidade ou o Ocidente.
Por que você diz que as elites intelectuais contribuíram para a
ascensão do fundamentalismo religioso?
Contribuíram de duas maneiras. Em
primeiro lugar, através do fracasso dos seus projetos de modernização e
reforma. A sua atitude era utópica. Comportaram-se de uma forma simplista em
relação às ideias que propunham, tomando-as por verdades absolutas, modelos
preestabelecidos, sem necessidade de qualquer modificação para poderem ser
aplicadas à realidade. Ora, uma ideia, ao transitar de uma sociedade para a
outra, deve passar por uma espécie de transformação criativa, a fim de ser
eficazmente posta em prática em qualquer domínio. Em segundo lugar, alguns
intelectuais apoiaram regimes despóticos, nas versões secular ou teocrática, a
pretexto de que lutavam contra a hegemonia dos Estados Unidos. O mais famoso
dos que defenderam essa posição é provavelmente Chomsky, que considera que a
credibilidade do intelectual se mede em função da sua oposição à política norte
americana.
Assim fazendo, eles iluminaram o
caminho para muitos intelectuais árabes, que assim se atiraram nos braços dos
tiranos.
Fonte: http://www.brasil247.com
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