O 'Deus Mercado' e a religião capitalista, segundo Jung Mo Sung – Por Tatiana Carlotti
Segundo especialista, a narrativa
religiosa do neoliberalismo coloca a fé no Mercado como única possibilidade de
salvação e culpa os pobres por sua pobreza.
Os aspectos religiosos do
neoliberalismo e o proselitismo na comunicação foram temas debatidos pelos
professores da Universidade Metodista, Jung Mo Sung (Ciências da Religião) e
Magali Cunha (Comunicação).
Eles participaram do seminário: “A Metafísica do
Neoliberalismo e a Crise de Valores no Mundo”, promovido pelo Fórum 21, no
último dia 2 de julho (sábado), no auditório da Fundação Escola de Sociologia e
Política (FESP).
O evento é o primeiro de uma
série de debates voltada à discussão do neoliberalismo hoje. A escolha do tema,
explica Anivaldo Padilha, presidente do Fórum 21, deve-se ao caráter sagrado
atribuído ao mercado que congrega os atributos da “onipotência, onipresença e
onisciência”. Uma espécie de “deus Mercado” que vem fracassando,
sistematicamente, “em termos de justiça social e de igualdade entre os homens”.
Daí a pergunta: por que o capitalismo atrai tanto?
Segundo o professor Jung Mo Sung,
a compreensão dos aspectos religiosos do capitalismo é fundamental para o
entendimento não apenas de sua atração, mas também do que se passa hoje no
Brasil. Mostrando, a partir de imagens, os ícones (Ferrari, bolsas Louis
Vuitton), templos (shopping centers), igrejas (institutos von Mises) e mitos do
neoliberalismo, Sung destrinchou a narrativa religiosa e sedutora, por trás do
discurso neoliberal.
“Antes, quando as pessoas se
sentiam pecadoras ou impuras, elas iam à Igreja para recuperar a humanidade e a
pureza. Hoje, quando se sentem tristes, elas vão ao shopping. Verdadeiras catedrais
modernas”, apontou.
Não é de se estranhar, portanto, a forte semelhança
arquitetônica entre as catedrais e os shopping centers (confiram a imagem
acima).
Os mitos do desenvolvimento
Ao longo das décadas de 1960 e 1970, a teoria econômica (da esquerda e da direita) foi embalada por dois mitos principais. Primeiro, a crença de que o “bom da vida era aumentar o poder de consumo”. Sung destacou que, frente a essa ideia, a modernidade promoveu uma inversão: o “bom da vida” passou a ser possível dentro da história (via consumo) e não mais restrito ao pós-morte”.
O segundo mito era que “o padrão de consumo dos países ricos poderia ser universalizado”, fortalecendo “a ideia de que todos os seres humanos têm direitos”.
Sung também mencionou que a discordância entre os economistas
marxistas e liberais capitalistas se deu aos caminhos para se atingir essa
universalização: o mercado ou a planificação estatal.
O exemplo é simples: “Quando se
privilegia o ajuste econômico no Brasil e se corta o dinheiro da Educação e da
Saúde, por exemplo, é preciso justificar essa decisão. Quando se corta o
pagamento de juros aos bancos, para privilegiar programas sociais, também é
preciso justificar. Essas duas justificativas, porém, são completamente
diferentes porque trabalham com duas estruturas míticas diferentes”.
Em 1970, porém, esses mitos caíram por terra, quando da publicação de “Os Limites do Crescimento” (1972), pelo Clube de Roma. A obra reconhecia os limites do crescimento do sistema capitalista e a impossibilidade da universalização do padrão de consumo. “A primeira reação dos capitalistas foi dizer ´isso é bobagem´. Depois não deu mais para negar”, lembra.
Em 1970, porém, esses mitos caíram por terra, quando da publicação de “Os Limites do Crescimento” (1972), pelo Clube de Roma. A obra reconhecia os limites do crescimento do sistema capitalista e a impossibilidade da universalização do padrão de consumo. “A primeira reação dos capitalistas foi dizer ´isso é bobagem´. Depois não deu mais para negar”, lembra.
A Fé no Mercado
A partir de então, novos mitos
foram construídos. Em 1974, em plena crise do petróleo, F. von Hayek, um dos
teóricos do capitalismo, ganhava o Prêmio Nobel de Economia com a obra: “A
Pretensão do Conhecimento”. Hayek sustentava que a crise do sistema tinha como
principal causa a “pretensão dos economistas de saberem como o mercado
funciona, porque toda intervenção pressupõe conhecimento”.
“A raiz de todas as crises”, explicou Sung, passou a ser a tentativa de compreensão do funcionamento do Mercado. Em termos míticos, “esse discurso neoliberal é uma reeleitura do mito da Gêneses”, que interditava a Adão e Eva os frutos da Árvore do Conhecimento. “Se não podemos conhecer as leis do Mercado, o que podemos fazer? Temos de ter fé no Mercado”.
“A raiz de todas as crises”, explicou Sung, passou a ser a tentativa de compreensão do funcionamento do Mercado. Em termos míticos, “esse discurso neoliberal é uma reeleitura do mito da Gêneses”, que interditava a Adão e Eva os frutos da Árvore do Conhecimento. “Se não podemos conhecer as leis do Mercado, o que podemos fazer? Temos de ter fé no Mercado”.
Uma fé, destacou, de que “o
mercado sempre vai produzir outros melhores resultados possíveis”. “Essa é a
base epistemológica do neoliberalismo” que apresenta uma contradição lógica:
“se você não pode intervir, porque não pode conhecer o mercado, como pode
afirmar que ele sempre vai produzir melhores resultados possíveis? O salto
lógico se tornou uma questão de fé”.
Anos depois, ou prêmio Nobel,
Milton Friedman, afirmaria: “os que são contra, no fundo, têm um problema de
falta de confiança na liberdade do mercado”. Uma narrativa, frisou Sung,
disseminada em todos os cantos do mundo, a partir da mídia e, também, da
proliferação de institutos, como os institutos von Mises.
Sobre a obra de L. von Mises, “A
Mentalidade Capitalista”, o professor avaliou: “é uma maravilha de livro de
teologia”. Nela se defende a ideia de que “todo adulto é livre para montar a
sua vida de acordo com os seus próprios planos, a partir de um conceito de
liberdade pelo qual não existe o outro: sou eu e o meu desejo. É puro
indivíduo”.
Captura do desejo
Para L. von Mises, no sistema de
mercado livre, “os consumidores são soberanos” e “desejam ser satisfeitos”.
Mas, apontou Sung, “consumidor não é qualquer indivíduo” nesta lógica. “O nível
é: todos somos humanos, mas nem todos os humanos são cidadãos, e nem todos os
cidadãos são consumidores. O desejo soberano [se restringe] aos consumidores”.
Com base na impossibilidade de
satisfação dos desejos, conforme alguns vão sendo satisfeitos, surgem novos
desejos, von Mises chega a defender a avidez como “impulso que conduz o homem
em direção ao aperfeiçoamento econômico”. Afirma, ainda, que “manter alguém
contente com o que já conseguiu ou pode facilmente conseguir, sem interesse por
melhorar suas próprias condições materiais não é uma virtude”.
“Essa é a tese teórica”,
salientou Sung, lembrando que a sociedade vem criando mecanismos para,
justamente, controlar a avidez do desejo individual. “Nós somos seres
infinitos na condição de finitude e o nosso desejo é infinito, mas, em uma
economia escassa, não há satisfação para todos”.
E se não há satisfação para
todos, então, como lidar com a frustração? “A saída neoliberal é a
criação de uma verdadeira teologia da culpa”. No capitalismo, todos somos
alimentados pela frustração”, apontou.
Teologia da Culpa
“Se você não consegue ser o rei
do chocolate, o campeão de boxe ou a estrela de cinema, você é o culpado. Essa
é a teologia da culpa: o indivíduo passa a ser culpado pela sua própria
frustração”, explicou. E trata-se de uma culpa que atinge a todos, começando
pelos mais pobres.
“Por que pobre é pobre? Porque é
culpado. Ele merece a sua pobreza”. Segundo essa lógica, “o pobre que não pode
comprar brinquedo para o filho assume a culpa duas vezes: pela pobreza e por
sentir culpa em ser pobre”. Enquanto isso, o Mercado se consolida enquanto juiz
transcendental.
“Se a culpa é de todos, por conta
da distribuição de riqueza, quem é o juiz que faz essa destruição? O Mercado.
Mas, eu posso questionar o mercado? Não. Ele é inquestionável, está além do bem
e do mal, do injusto e do justo”. Na medida em que não está sob o juízo humano,
o Mercado se torna algo sagrado. “E o sagrado é aquilo que é separado do
sistema profano, acima do juízo e do questionamento da justiça”, explicou.
Sung também alertou: para o capitalista
e para o neoliberalismo, o verdadeiro o problema “está nas pessoas que
acreditam que os seres humanos têm direitos”.
Direitos Humanos
Ele explicou que o pensamento
liberal moderno foi fundado na tradição neotestamentária. Segundo essa tradição,
primeiramente, “todos os homens são iguais perante a Deus. Depois, todos os
homens passaram a ser iguais perante as leis; e, de acordo com a razão moderna,
a essência humana traz consigo direitos implícitos”.
São justamente esses direitos
implícitos, denunciou, que estão sendo rejeitados pela teoria pós-moderna ao
defender que “tudo é cultural”, inclusive, “afirmar que a natureza humana dá
direitos é cultural”. Sob essa ótica, “o grande erro das esquerdas e dos
humanistas é acreditar que ser humano tem direito por natureza. Não tem. Quem
não conseguiu direitos no contrato do mercado, não tem direito nenhum”.
Essa é a narrativa dos que
criticam programas sociais como o Bolsa Família ou o Mais Médicos. “Se pobre
não tem direito a comer, porque não tem direito, o que é um programa social
como o Bolsa Família? Um roubo. Você tira de quem tem direito e o ganhou
justamente via Mercado - e passa para quem não tem direito”.
Daí a inversão, situou Sung, já que “os defensores dos direitos dos pobres e dos programas sociais tornam-se os grandes malfeitores da humanidade”. A violência explode: “eu estou frustrado porque esse desgraçado de esquerda continua querendo o meu imposto para dar para esses pobres desgraçados. De quem é a culpa da minha frustração? Da esquerda e dos pobres. Aí eles colocam fogo no mendigo”, destacou.
Daí a inversão, situou Sung, já que “os defensores dos direitos dos pobres e dos programas sociais tornam-se os grandes malfeitores da humanidade”. A violência explode: “eu estou frustrado porque esse desgraçado de esquerda continua querendo o meu imposto para dar para esses pobres desgraçados. De quem é a culpa da minha frustração? Da esquerda e dos pobres. Aí eles colocam fogo no mendigo”, destacou.
Deveres
Quando o então ministro Alexandre Padilha (Saúde) comemorava o sucesso do Mais Médicos, ele estava reafirmando não apenas o direito das pessoas à Saúde, mas o dever do Estado para com elas. No entanto, muitas pessoas foram contra o programa e retrucaram: “eles não têm direitos e nós não temos deveres. Isso é um roubo”. “Tratam-se de duas estruturas de pensamento diferentes. Saber isso nos ajuda a compreender a agressividade”, explicou.
Quando o então ministro Alexandre Padilha (Saúde) comemorava o sucesso do Mais Médicos, ele estava reafirmando não apenas o direito das pessoas à Saúde, mas o dever do Estado para com elas. No entanto, muitas pessoas foram contra o programa e retrucaram: “eles não têm direitos e nós não temos deveres. Isso é um roubo”. “Tratam-se de duas estruturas de pensamento diferentes. Saber isso nos ajuda a compreender a agressividade”, explicou.
Em sua avaliação, sempre
existiram egoístas exagerados, a diferença é que antes, “as pessoas tinham
vergonha de ser publicamente egoístas, porque havia uma pressão cultural. Hoje,
elas têm orgulho. Depois que passar a vergonha do Temer, vai continuar esse
orgulho e ele vai continuar enquanto esse modelo civilizatório prevalecer”.
A lógica da Responsabilidade
Segundo Sung, “nós retornamos a
um debate surgido no século XVIII: o ser humano tem direitos? Para os
defensores do neoliberalismo, esses direitos são vistos como ´coisa de
bandido´. O processo tecnológico chegou ao ponto de destruir as bases
humanistas do mundo moderno”.
A saída, apontou, “está na luta
social”. Uma luta que, em última instância, pressupõe “a descoberta dos
direitos fundamentais de todos os seres humanos”. Sung também alertou: “culpa e
humilhação não acabam quando você come. Quando você come, você mata a fome.
Isso vai aparecer em violência familiar, em neuroses, loucuras. E quem se sente
culpado não luta”.
Em sua avaliação, “para sair
desse entrave é preciso lembrar que apenas um mito combate outro mito”. Citando
a experiência do apóstolo Paulo de Tarso que, em pleno Império romano,
conseguiu criar comunidades de resistência, Sung avaliou que “Paulo tem algo a
nos ensinar”, sobretudo, quando afirma:
“Enquanto ainda éramos inimigos de Deus, Deus se reconciliou conosco” (Rom 5,10).
Essa citação, analisou, é uma “crítica radical à ideia de Deus norteadora das culturas de opressão, que pressupõem um Deus que culpa e pune. E não um Deus, não importa aqui se existe Deus ou não, que humaniza o ser humano e se reconcilia. Antes de qualquer articulação cultural, todos os seres humanos têm direito à vida”.
“Enquanto ainda éramos inimigos de Deus, Deus se reconciliou conosco” (Rom 5,10).
Essa citação, analisou, é uma “crítica radical à ideia de Deus norteadora das culturas de opressão, que pressupõem um Deus que culpa e pune. E não um Deus, não importa aqui se existe Deus ou não, que humaniza o ser humano e se reconcilia. Antes de qualquer articulação cultural, todos os seres humanos têm direito à vida”.
A proposta de Paulo, avaliou,
abre uma fenda na “lógica da culpa” e nos permite entrar em outra lógica: a da
responsabilidade. “É preciso responder aos problemas sociais. A lógica da responsabilidade
nos chama à ação. A lógica da culpabilidade apenas aponta o culpado. E apontar
culpados não resolve nada”, concluiu.
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Jung Mo Sung, autor de diversos livros, entre os quais: “Mercado, religião e desejo: o mundo de hoje na perspectiva da Teologia da Libertação” (Suhae Munjip, 2014); “Para além do espírito do Império" (Paulinas, 2012) e “Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário aos pobres" (Paulus, 2010).
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Jung Mo Sung, autor de diversos livros, entre os quais: “Mercado, religião e desejo: o mundo de hoje na perspectiva da Teologia da Libertação” (Suhae Munjip, 2014); “Para além do espírito do Império" (Paulinas, 2012) e “Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário aos pobres" (Paulus, 2010).
Fonte: http://cartamaior.com.br
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