Livros que Clio Recomenda VI
A pesquisadora Alessandra Meleiro fala sobre a coleção: "Cinema no Mundo: Indústria, Política e Mercado", que disseca em cinco volumes contextos econômicos da produção audiovisual em diversas regiões mundiais
por
Marcelo Miranda
Pós-doutoranda na Universidade de Londres e especialista em políticas culturais e cinematográficas, a paulista Alessandra Meleiro é organizadora da já fundamental coleção "Cinema no Mundo: Indústria, Política e Mercado", da editora: “Escrituras”. Em cinco volumes e com artigos de dezenas de estudiosos, os livros abordam as características e os contextos econômicos e políticos do mercado de cinema na Ásia, Europa, América Latina, África e EUA. Na entrevista ao Magazine, Alessandra fala sobre a proposta da coleção e expõe a situação de cada um dos mercados abordados na série.
O TEMPO - Como surgiu a idéia e a oportunidade de organizar a coleção "Cinema no Mundo"?
Alessandra Meleiro - A idéia foi a partir do meu pós-doutorado, um estudo sobre a dinâmica e circulação de produtos cinematográficos pelo mundo. Tive contato com autores especializados em mercados específicos, como Ásia e África. Então ganhei um prêmio da secretaria de governo do Estado de São Paulo destinado a coleção de livros, e o patrocínio da Sony. Era um projeto caro, em cinco livros, e envolvia mais de 30 autores internacionais, sendo apenas dois brasileiros, além de mim. São autores dos cinco continentes abordados, busquei acadêmicos de cada região. Jamais encontraria esses especialistas aqui no Brasil, pois há pouquíssimos estudos de mercado de cinema aqui. Fiz toda a pesquisa em 2006 e trabalhei na organização dos volumes de janeiro a setembro de 2007.
O conceito básico da coleção, segundo prefácio escrito por você, é a economia política da cultura. O que exatamente significa esse conceito?
Quando falo de economia política, é diferente de economia do audiovisual, que é mais focada em aspectos tecnicistas e não levam em conta justiça social, diversidade cultural e outros temas da educação e da cultura. A economia de cultura aborda aspectos da política cultural. Buscamos dados de empregabilidade e lucratividade das empresas, e simultaneamente os autores consideram aspectos propriamente ligados à cultura e o cinema ligado a aspectos culturais e sociais. Essa é uma abordagem nova no mundo. No Brasil, por exemplo, ninguém faz.
Você afirma que a diferença maior dessa economia da cultura em relação às outras é o foco na comercialização e a idéia dos filmes como commodities (produtos de grande importância econômica internacional) em seus países de produção. Gostaria que falasse um pouco disso.
Quando você fala de um bem cultural como commodity, esta não é uma idéia nova. Já existia nas teorias da indústria cultural. Mas estamos passando por um novo patamar de como entender as indústrias criativas, que é de onde a cultura faz parte. Dessa nova perspectiva mais abrangente, o foco é na cadeia produtiva dos bens culturais, e não propriamente nas suas particularidades simbólicas (o entendimento do próprio filme de forma crítica e estética). É entender como funciona a produção, a comercialização, toda a cadeia desse bem produtivo, que por acaso é um bem cultural. É colocá-lo num contexto industrial, mas vale a ressalva: nem todos os mercados abordados nos livros têm indústria consolidada. Em alguns há a tentativa de indústria, mas só é possível analisar essa tentativa, principalmente em países do hemisfério sul, se você parte de um modelo comparativo, que são as políticas culturais do hemisfério norte.
O cinema sempre foi uma economia estratégica?
Sempre foi, desde o surgimento. A indústria norte-americana se desenvolveu bastante e percebeu a importância desse setor para a economia do país. Os EUA sentiram que o crescimento dessa fatia econômica não se daria apenas em território nacional e, nos últimos dez anos, partiram agressivamente na conquista de mercados pouco explorados. Como não há como expandir mais dentro do próprio território, busca-se a globalização. No Brasil, ainda que não tenhamos uma indústria consolidada, pois somente agora os dados estão começando a ser sistematizado, como na pesquisa do IBGE sobre indicadores culturais, em que inseriram setores da economia da cultura, a gente sabe que o cinema é parte de uma economia mainstream. O cinema gera empregos, movimenta milhões de reais por ano, mas ainda carece de estudos no setor. O cinema só será estratégico no Brasil e na América Latina quando ele for conhecido, aferir que é relevante e ser incorporado às políticas oficiais do governo federal, municipal e estadual. Isso não concerne apenas na questão do público e da presença no mercado. Compilando e analisando dados, é possível intervir no setor, no sentido de detectar as lacunas e os problemas. Se você faz hoje uma análise superficial no relatório da Agência Nacional do Cinema (Ancine), o maior nó é da distribuição. O problema está lá, constatado: o cinema está na lata, mas não chega ao consumidor. Precisamos adotar algum tipo de política. Nos outros países, essa identificação do problema acontece, como na indústria norte-americana. A Ásia tem relatórios do governo, da indústria, dos sindicatos. A África e a América Latina fazem pouca coisa nesse sentido.
De que forma a predominância crescente de Hollywood sobre os cinemas nacionais ameaça o desenvolvimento desses mesmos cinemas?
Claro. Fiz uma tabela de participação dos filmes nacionais no próprio mercado em 18 países. Nos EUA há 99% do produto norte-americano nas telas, o mesmo que no Irã em relação aos filmes produzidos no país. A Índia tem 95%. A partir do quinto da lista, essa relação começa a cair. A Coréia do Sul tem 64% de ocupação local, e a China, 55%. O Brasil está em 20º lugar, com apenas 11%. Com isso é possível observar em todos os países do mundo, especialmente a Europa, tentativas de resistir a essa entrada do produto estrangeiro, através de incentivos fiscais, fortes políticas de fomento estatal, cotas de tela. São perceptíveis as políticas de resistência ao predomínio de Hollywood, mas o que é interessante notar é que os países que mais conseguem ser bem-sucedidos nessa luta são dotados de políticas totalitárias e fundamentalistas, como China e Irã, ou com forte predominância religiosa, como alguns países de governo muçulmano, em que são reunidas política e religião.
Gostaria que você, como organizadora da coleção "Cinema no Mundo", sintetizasse as principais características dos cinemas abordados em cada volume. Pela ordem, comecemos na África.
A atividade cinematográfica é um desafio para as nações periféricas que, após a descolonização política e cultural, esforçam- se para conquistar a apropriação da tecnologia da imagem. Egito e África do Sul têm estruturas cinematográficas há um século, mas a produção fílmica do restante da África subsaariana continua embrionária. As políticas culturais neste continente são vistas como secundárias e o envolvimento da iniciativa privada com os cinemas africanos é ainda inexistente para chegar a constituir uma alternativa à renúncia dos Estados no apoio às suas cinematografias. A produção dos cineastas africanos tem uma exibição restrita aos festivais que ocorrem nos países do norte (principalmente Europa). Diferentemente da África do Sul, onde a atividade cinematográfica tem uma base histórica e semi-industrial, os demais países africanos continuam à mercê da ajuda proveniente da cooperação cultural com a França e União Européia. A indústria do vídeo na Nigéria e em Gana acelerou a demanda e o consumo de filmes africanos por um público local, rompendo assim com a prática de produzir filmes africanos para um público ocidental.
Depois vem a América Latina.
Dentre os cerca de 12.500 filmes produzidos de 1930 a 2000 na América Latina, 5.500 correspondem ao México (45%), 3.000 ao Brasil (25%) e 2.500 à Argentina (20%). Deste modo, 90% da produção de filmes da região concentraram- se em apenas três nações, correspondendo os 10% restantes a mais de 20 países. Nos países da América Latina onde não foi implantada uma legislação protecionista específica, não houve produção local, salvo como fato isolado ou excepcional. O desafio maior é enfrentado pelas pequenas empresas, que correspondem por mais de 80% dos filmes realizados na América Latina, e sua dificuldade maior não é a produção de filmes, mas a amortização, devido à limitação dos mercados locais e à concorrência desigual com os oligopólios da comercialização internacional. Acordos de integração regional, como o Caaci e a Recam, colocam o cinema no lugar mais desenvolvido da escala latino-americana quanto a processos de intercâmbio e integração industrial e cultural.
E a crescente indústria da Ásia?
O modelo nacional ainda é a estrutura organizacional dominante na indústria cinematográfica da região, e os Estados continuam sendo os protagonistas no controle do conteúdo dos filmes (como na Índia e China), assim como no incentivo ou captação de investimento privado para as indústrias cinematográficas locais. Os laços que unem os falantes de chinês na China, Hong Kong e sudeste asiático exercem tradicionalmente forte influência sobre os filmes locais. Apesar da reputação mundial de Hollywood, na Índia, a modernização do setor foi apenas recentemente reconhecida pelo governo indiano como uma indústria em seu pleno direito. A infra-estrutura industrial taiwanesa tem sido prejudicada pelo grande volume de filmes importados de Hollywood, desde que a proteção comercial da indústria cinematográfica foi "abandonada" para que indústrias economicamente "mais importantes" pudessem beneficiar-se das relações de livre comércio com os EUA. A Coréia do Sul ocupa a posição de líder regional ao demonstrar como uma política de Estado inovadora e um público doméstico receptivo a filmes locais podem impulsionar a presença na bilheteria local significativamente.
Estados Unidos, o todo-poderoso...
Fatores como desregulamentação, privatização, desenvolvimento tecnológico e abertura de novos mercados internacionais contribuíram para o crescimento unificado das empresas de Hollywood. Embora os filmes independentes continuem sendo produzidos, a distribuição é em geral problemática sem a participação de uma grande empresa: esta realidade coloca em xeque a existência dos "independentes". Grandes corporações passaram a controlar, além da indústria cinematográfica, boa parcela de outros setores midiáticos (produtos e serviços de informação e entretenimento), passando a exercer controle sobre a produção, distribuição e veiculação. Apesar do mercado doméstico para filmes norte-americanos ser significativo, Hollywood tornou-se dependente da distribuição externa de seus produtos. E a pirataria continua sendo uma forma de resistência às atividades exportadoras de Hollywood.
Por fim, a Europa.
No decorrer dos últimos dez anos, a Europa testemunhou um nível surpreendente de atividades, em que investimentos e produção dispararam, e indústria e Estado uniram forças para promover os filmes europeus de forma mais incisiva do que nunca. As barreiras culturais e lingüísticas dificultam o trânsito livre e regular dos filmes europeus. Somente 20%dos 500 filmes produzidos anualmente na Europa são distribuídos fora do país onde foram produzidos. Faltam investimentos em custos de distribuição e de marketing. Um percentual significativo de filmes europeus leva um ano para ser exibido em seu próprio território depois de concluídos (entre 50% e 60% dos filmes britânicos, 30% dos filmes alemães e italianos e 25% dos filmes espanhóis e franceses). Somente um terço dos filmes europeus dão lucro, e apenas 2 de 5 cobrem seus custos de produção. Dezoito das 50 produtoras européias pertencem a grandes companhias de Hollywood, que controlam entre 60% e 65% do mercado distribuidor europeu.
Livro: Cinema no Mundo: Industria, Política e Mercado
Autora: Alessandra Meleiro
Editora: Escrituras
Número de páginas: 216
Edição: 2007
Fonte: http://www.otempo.com.br/otempo/noticias
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