Livros que Clio Recomenda - Bauman, um visionário na sociedade da paranóia
Franklin Roosevelt concluiu seu discurso de posse, em 1933, dizendo: “Permitam-me afirmar minha crença inabalável de que a única coisa que devemos temer é e próprio medo.” No filme Alice nas Cidades, de Wim Wenders, a personagem principal confessa só ter medo do seu medo. O fato é que vivemos numa época de temores: difusos, dispersos e indistintos. Criamos uma parafernália de mecanismos que nos auxiliam a ter a ilusão de que controlamos o imprevisto. Carros blindados, edifícios murados, vidros escurecidos, condomínios fechados; todo esse conjunto lega a frágil certeza de que estamos protegidos. Mas o efeito final acaba sendo oposto: quanto mais nos protegemos, mais nos sentimos inseguros, com medo do que conhecemos e do que está por vir. E essa sensação não é nova. Lucien Febvre tratou da experiência de se viver na Europa do século 16 e a resumiu da seguinte maneira: “Medo sempre e em toda parte.” O historiador mostrava, em Le Problème de L’Incroyance Au XVI Siècle, os vínculos profundos que se estabeleciam entre medo e escuridão. A incerteza diante da imensidão que se configurava fora do lar gerava a constante sensação de perigo, manifesta numa série de documentos de época. Outros autores dedicaram-se ao tema, analisando seu impacto em diferentes momentos históricos. Um dos mais conhecidos é Phillipe Ariès, que escreveu sobre a morte no Ocidente, examinando as saídas rituais que foram sendo criadas, sempre no sentido de trapacear com a morte.
Mas, se parece mais fácil olhar para contextos distantes, já tratar do presente tem se revelado uma empreitada problemática: poucos foram os trabalhos que cuidaram de nossos próprios medos. Não me refiro aos estudos sobre violência, ou às análises acerca da desigualdade social. Penso nos ensaios que abordaram o medo como objeto específico de análise. É certo que relatos de genocídios ou do Holocausto exploraram facetas mais escondidas de nossa inserção no mundo. Primo Levi, por exemplo, narrou em seus livros com imensa sensibilidade e dureza a experiência de ser um prisioneiro num campo de concentração e a dificuldade de viver em um mundo que tenha “naturalizado” tal tipo de vivência e incorporado o medo. Esse não foi o caso de Levi, que denunciou enquanto pôde os monstros que existem dentro de nós. No entanto, o fato é que temos destinado um local especial a esse tipo de literatura, chamando-a de “relato de delação”, sendo que caberia a ela incorporar tais reflexões. Mais uma vez, falar das fragilidades alheias é mais fácil e confortável do que vislumbrar as nossas próprias.
É em torno desse tema atual e polêmico que se detém o sociólogo Zygmunt Bauman. Professor emérito de sociologia das universidades de Varsóvia e Leeds, Bauman teve seus livros e artigos censurados em 1968, sendo obrigado a exilar-se primeiro no Canadá, depois nos Estados Unidos, mais tarde na Austrália, fixando-se após um tempo na Inglaterra. Tal situação propiciou-lhe a condição de estrangeiro em qualquer lugar e uma visão cosmopolita e compreensiva acerca do que chama de nossa “modernidade líquida”. Famoso por seu estilo a um só tempo claro e desafiador, o sociólogo tem se revelado um grande pensador/ provocador de nossos tempos. Em sua vasta obra, tem dedicado um lugar especial a temas da contemporaneidade. Além do mais, na contramão dessa naturalização do medo, nesse seu novo livro - Medo Líquido (tradução de Carlos Alberto Medeiros) - o sociólogo analisa mais uma faceta desta castigada modernidade.O livro funciona como uma espécie de inventário de nossos medos, sem recusar os temas menos nobres. Analisa, por exemplo, o fenômeno do Big Brother e o chama de “contos morais” de nossa época. Mostra como esse tipo de programa e outros reality shows de uma maneira geral acabam por banalizar o medo e a morte, fazendo deles um grande simulacro; quando não um objeto para estetização. É fato que todas as culturas podem ser entendidas como dispositivos engenhosos destinados a adornar o medo e a morte, assim como torná-los mais contempláveis. No entanto, foi a sociedade moderna que os transformou em lucro. O medo vende e atrai público, o que faz com que o circuito torne-se ainda mais perverso. Não há quem não tema o medo, mas não há quem não queira se defrontar com ele, sobretudo quando mediados por uma tela.Medo também se associa à idéia de mal. Auschwitz, Gulag, Hiroshima gerariam metaterrores; seriam incubadores de medo gestados e difundidos por nossa percepção. Por outro lado, pensar neles implica desejar que se desvaneçam e que fiquem seguros em sua invisibilidade. Hannah Arendt descobriu nos relatórios apresentados pelos doutos psicanalistas chamados a testemunhar no julgamento de Eichmann que o “comportamento dele era normal”. Aliás, a atitude do nazista teria sido considerada não só “normal”, mas até “agradável” em relação à esposa, aos irmãos, aos filhos e aos amigos. O problema reside em pensar que, se Eichmann era “normal”, nós também podemos ser, ou, quem sabe, somos nós que nos transformamos em bárbaros, quando observados a partir dessa outra lente. Pensando sob outro prisma: se os executores podem ser “pessoas como nós”, o que mais assusta é vislumbrar a hipótese de que, quem sabe, seríamos capazes de nos transformar naquilo que tanto receamos ser: genocidas, assassinos, nazistas... todos “normais”.
Nosso temor também se dirige ao que é considerado “inadministrável”. Temos medo do tsunami, do Katrina e outros desastres naturais. Tememos erros de cálculo e a negligência humana. Medo é, pois, o outro nome que damos à nossa “falta de defesa”. E tudo isso ganha potência renovada diante desse mundo globalizado, que permite temer o que não conhecemos e, também, aquilo que jamais conheceremos. Diante dessa sociedade aberta nos tornamos ainda mais vulneráveis e nossa segurança é pouco confiável. Vivemos ameaçados por guerras de proporções universais, por conflitos econômicos, políticos e sociais; pela visão apocalíptica de um confronto entre o bem e o mal; pela regionalização da política.
Foi o filósofo Jacques Derrida quem observou como cada morte é o fim de um mundo. Numa época em que o pensamento intelectual está cada vez mais sujeito a suspeitas de toda ordem, nada como um sociólogo do calibre Bauman para nos ajudar a restituir a fé no pensamento e no poder das idéias. Adepto da noção de “iluminação”, no seu sentido filosófico, ele é quase um “profeta” de nossos tempos nervosos, mesmo negando ser. É só nesses momentos que Medo Líquido perde um pouco de seu poder de crítica e se converte numa espécie de livro de auto-ajuda, apesar de seu valor intelectual indubitável. Particularmente, prefiro quando Bauman duvida do que quando tem certeza. Afinal, estamos diante de um dos autores mais importantes a tratar da pós-modernidade; adepto de uma sociologia reflexiva e que incide sobre nós mesmos.Este livro recupera, ainda, o trajeto original de um pensador que, após dedicar-se a estudos do marxismo, passou a analisar a sociedade de consumo para chegar à nossa pós-modernidade. Já em suas análises sobre o Holocausto (e na sua concepção de “obediência cega” e de “suspensão de responsabilidade moral”) percebe-se o caminho desse sociólogo que viu na modernidade um processo acelerado de racionalização combinado com uma carga alta de mistificação e, no caso da obra que aqui comentamos, medo. Por isso, a modernidade carrega ao mesmo tempo duas lógicas: é sempre sólida, mas também líquida. O 11 de Setembro desempenhou para a modernidade papel semelhante ao que a Tomada da Bastilha representou para o período moderno. Quem não estava lá pensou que poderia ter estado e, assim, padeceu do mesmo temor. Tendo assolado o mundo dos humanos, o medo é capaz de impulsionar e de se intensificar por si mesmo. Ele é, assim, em boa parte das vezes, não a conseqüência, mas a causa de nossos males devidamente amplificados.
Fonte: http://txt.estado.com.br
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