Pequeno manual da civilidade – Por Juliana Linhares


Engana-se quem pensa que civilidade é uma matéria relacionada a senhores pomposos e mesas cobertas de talheres esquisitos. Mas é verdade que o tema foi tratado por cavalheiros com quilometragem de pelo menos alguns séculos. Tudo o que disseram, porém, sobre a necessidade de convenções sociais para promover a boa convivência e administrar conflitos permanece de urgente contemporaneidade. Quando Schopenhauer, o gigante da filosofia alemã do século XIX, dizia que as pessoas deveriam seguir o comportamento do porco-espinho - se fica muito perto de seus pares, morre espetado; se fica muito longe, morre de frio -, não estava pensando no uso do telefone celular em público, mas bem que poderia. Thomas Hobbes, um dos gênios do pensamento político produzidos pela Inglaterra, constatou no século XVII que em estado natural, sem as construções sociais, "a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta". Em outras palavras, um congestionamento em São Paulo em dia de chuva. Por isso, emergem leis necessárias, entre as quais que "os homens cumpram os pactos que celebrarem" (e não parem em fila dupla, por exemplo) e "não declarem ódio ou desprezo pelo outro por atos, palavras, atitude ou gesto" (e não façam perfis falsos na internet). Especialistas em ética, comportamento e controle dos monstros interiores fazem análises e sugestões nesse pequeno manual das virtudes da civilidade. Todo mundo pode aprender - e até lucrar com elas. "O stress é causado em grande parte por relacionamentos humanos mal resolvidos. Se melhorarmos a capacidade de nos relacionar, teremos menos brigas, menos stress e, consequentemente, menos processos e pessoas doentes", diz o italiano Piero Massimo Forni. Professor da Universidade Johns Hopkins e um dos maiores especialistas mundiais no estudo da civilidade, ele até calculou o custo da falta dela nos Estados Unidos: 30 bilhões de dólares por ano. Já pensaram se ele conhecesse o Congresso brasileiro?


1. Questão de honra

Houve um tempo em que tudo girava em torno dela: ter honra era ser um legítimo membro da tribo; não ter, preferível morrer. O conceito de honra, na sua interpretação mais tradicional, nasceu na Grécia antiga, foi remodelado em Roma e reemergiu na Idade Média. "Na época feudal, a honra era uma qualidade atribuída aos nobres, essencialmente guerreiros, cuja função social era proteger o rei, as crianças e as mulheres", diz Roberto Romano, professor de ética e filosofia da Unicamp. Hoje, a HONRADEZ pode ser mais relacionada à fidelidade aos próprios princípios ou ao próprio eu. Ou, no popular, ter vergonha na cara. É por isso que o tribunal da própria consciência continua a pesar mesmo quando se alega que "todo mundo faz", a começar dos "caras lá de cima", então "que mal tem" em levar a avozinha para passar na frente na fila de comprar ingresso, desrespeitar a precedência na hora de pegar uma vaga no estacionamento do shopping ou deixar uma toalha guardando lugar o dia inteirinho na espreguiçadeira da piscina disputada? O mal, evidentemente, está em desprezar a própria dignidade.

2. Os intransigíveis

O conceito de INTEGRIDADE tem raízes na Grécia antiga, onde o sujeito íntegro era chamado aplos, uma peça só - projetando com esse nome a imagem de inteireza, de alguém que não tem duas palavras, duas lealdades. "Não é íntegro aquele que transige em valores inegáveis de uma sociedade", diz Bolívar Lamounier. Integridade é não abusar do poder, não desmerecer os outros, não tripudiar. E também outras interdições mais prosaicas: não se esgueirar melifluamente na fila de embarque, não "deixar o carro aqui só um minutinho", não dizer que vai atender "só esta chamada" no meio da refeição compartilhada e não começar nenhuma piada dizendo "esta é politicamente incorreta" caso você não trabalhe no Casseta & Planeta.

3. Obrigado, por favor

Um dos maiores especialistas do mundo no estudo da civilidade, Piero Massimo Forni acredita que as BOAS MANEIRAS não apenas não são coisa de um passado mítico de galanteria, mas ficaram mais importantes ainda na vida contemporânea. "Até umas três gerações atrás, boa parte da sustentação emocional e material das pessoas vinha dos familiares. Hoje convivemos muito mais com amigos e desconhecidos, e, nesse caso, ser afável é uma vantagem", explica. "A cortesia melhora a autoestima da pessoa a quem ela foi dirigida e, dessa maneira, torna as relações sociais menos tensas", concorda Renato Janine Ribeiro, professor de ética e filosofia política da USP. A regra geral, e não escrita, de decência estabelece que todos devem ser tratados com os requisitos básicos de cortesia - "bom dia", "por favor", "obrigado" e "até logo" -, os quais devem ser redobrados em relação a quem ocupa posições menos destacadas. Ignorar a existência de quem presta serviços como trazer o seu carro ou limpar a sua sala é prova de insensibilidade. Ou boçalidade.

4. Desafio diário

Na hora da raiva, das bravas, qual é o primeiro xingamento que lhe vem à cabeça? Em geral, nesses momentos o ser humano não é criativo e invoca diferenças de comportamento sexual, de origem familiar ou de grupo étnico. Pois o treinamento da aceitação das diferenças deve começar exatamente por aí. De todas as virtudes do campo da civilidade, a TOLERÂNCIA é a que mais exige autoaprendizagem. Quem acha que nunca, jamais conseguirá cumprimentar um torcedor do time adversário pode começar com coisas mais simples, como não ter espasmos visíveis diante do abuso do gerúndio ou prometer a si mesmo ao sair de casa que pelo menos naquele dia não vai comparar nenhuma mulher à fêmea de uma famosa ave natalina. "Tolerância tem a ver com comportamentos diferentes daqueles que valorizamos e pelos quais temos repugnância. Exercê-la é importante não só para a convivência social como para a sanidade mental", diz Bolívar Lamounier.

5. Bateu, não levou

Levar uma fechada, ouvir uma buzinada milésimos de segundo depois que o sinal abre, esperar que o manobrista pegue o carro largado na sua frente com a maior displicência. O stress e o anonimato propiciados pelo trânsito nas grandes cidades se combinam para testar o tempo todo os limites do AUTOCONTROLE. Para não se transformar num ser desatinado em busca de vingança, só existe uma reação possível: olhar tudo aquilo de um ponto de vista distanciado - ou, se preferir, superior. "Podemos aliviar a raiva tomando distância do que está acontecendo. Alguém me xinga, por exemplo, e eu reajo como se a ofensa fosse um pacote que recebo e devolvo fechado, porque não me considero o destinatário. O ato de grosseria está relacionado com o estado mental do agressor, não com o do agredido", ensina Piero Forni. Quem acha que tem temperamento forte, sangue quente ou pavio curto, e usa essas expressões para justificar comportamentos agressivos, deve considerar a hipótese oposta. "A pessoa que não controla a agressividade no fundo tem ego fraco", explica a psicóloga Lidia Aratangy.

6. Respeito é bom

O termo CIVILIDADE vem da palavra civitas, que quer dizer cidade. Tem civilidade, portanto, aquele que sabe viver em sociedade, um sistema refinado ao longo dos tempos. No século XVI, por exemplo, o filósofo holandês Erasmo escreveu uma espécie de manual de comportamento. "Ele explicava que não devemos cuspir à mesa nem na mesa, nem beber a sopa direto da sopeira, nem colocar as botas em cima da mesa. Soaria estranho fazer isso hoje, mas houve um tempo em que os nobres precisaram ser educados para melhorar seus modos", diz Renato Janine Ribeiro. Na construção da sociedade ocidental, o mesmo conceito que abrange algo aparentemente acessório, como os bons modos à mesa, inclui o complexo mecanismo do respeito entre as pessoas, base das relações civilizadas. "Hoje, o que entendemos como a ideia central da civilidade é justamente o respeito pelos outros. Os bons modos mostram a nosso próximo que temos estima por ele", diz Ribeiro. Roberto Romano propõe uma pergunta simples para aplicar o conceito de civilidade em diferentes situações da vida cotidiana: o que posso fazer pelo outro para que a vida de todos seja suportável?

7. Fora, trapaceiros

Todo mundo quer se dar bem, mas, se fizer qualquer coisa para conseguir isso, o mundo todo vai acabar mal. Não é preciso nem voltar ao estado natural, ou hobbesiano, da guerra de todos contra todos para entender a necessidade de um conjunto de regras comumente aceitas e, dentre elas, a importância da HONESTIDADE. Seja pagar pelo gabarito da prova do Enem, seja levar comissão em obras públicas, quem faz trapaça está roubando um pouco de cada um, não só em termos materiais, mas principalmente pela infração ao pacto social através do qual contemos nossos instintos mais selvagens em troca das garantias da civilização. "Na sociedade ocidental cristã, a figura do trapaceiro é uma das mais odiadas. A trapaça fere várias convenções sociais, entre elas a obediência às regras e a honradez", diz Roberto Romano.

8. Dobre a língua

A cultura da permissividade tem enormes vantagens - a começar, naturalmente, pelo abrandamento dos costumes repressivos. A contrapartida também é evidente: a ideia disseminada de que cada um pode, e até deve, fazer e falar o que quiser, mesmo que isso invada o espaço alheio, incluindo os ouvidos. Não dizer o que dá na bola é diferente de contar mentiras. No primeiro caso, quem usa da CONTENÇÃO VERBAL está obedecendo ao mecanismo de freios sociais pelo qual as opiniões próprias são atenuadas de forma a não ofender os sentimentos alheios. No segundo, a verdade é falsificada para tirar algum proveito, nem que seja promover a própria e engrandecida imagem. Quem acha que tem de "pôr para fora" tudo o que pensa e até invoca o pensamento mágico ("Assim não vou ter infarto") na verdade não está no comando de si mesmo. "Viver em sociedade implica abrir mão de certas selvagerias para obter a proteção social que vem da vida em conjunto", diz Roberto Romano. "Nesse contexto, a má-educação, a ganância desmedida, a negligência ao outro, são todos fatores de desagregação social."

9. Sinto muito, mesmo

Pressa, pressão, prazos - tudo na vida contemporânea conspira para que o tratamento civilizado seja atropelado mais cedo ou mais tarde. Para isso existe um remédio universal: PEDIR DESCULPAS. O arrependimento sincero, aquele cuja intenção seja menos aliviar a consciência do ofensor e mais dar uma satisfação moral a quem foi ofendido, é um lenitivo de eficácia comprovada através dos tempos. Só os seres altamente evoluídos se desculpam com classe e naturalidade, mas os demais - ou seja, todos nós - também podem desfrutar o sentimento de paz interior que essa atitude desencadeia. É só treinar direitinho. Quanto ao momento e ao método corretos para pedir desculpas, gente com os mecanismos psíquicos em estado de bom funcionamento tem um "vergonhômetro" infalível. "É aquele sangue que sobe ao rosto quando fazemos algo errado, e que sinaliza o respeito pelo outro", diz Roberto Romano. "Sem isso, o pedido de desculpas não vale."

10. A casa comum

O comportamento decoroso surgiu na Igreja Católica, a partir da vestimenta dos padres e das freiras, sempre igual em qualquer ambiente e feita para cobrir tudo de forma a não atentar contra o pudor próprio ou alheio. "Com o tempo, o DECORO das vestimentas passou para a linguagem e as atitudes. A fala decorosa é aquela que diz o que tem de dizer sem adular ou ferir. O comportamento decoroso é aquele que não ofende os outros, que não agride, que não é exibicionista ou apelativo", explica Roberto Romano. Pequenos atentados cotidianos ao decoro incluem urrar ao celular em ambientes confinados, ignorar solenemente aquilo que seu cãozinho faz na calçada e ouvir música nas alturas porque "a casa é minha". Ter decoro é entender que a casa é um pouco de todos.



Fonte: : http://veja.abril.com.br [com adaptações]

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