As festas do Espírito Santo nos Açores: razões para a sua permanência e causas da decadência - 1ª parte - Por Carlos Enes

Origens

As festas do Espírito Santo têm origem no pensamento do abade cisterciense, Joaquim de Fiore, que viveu no século XII. De acordo com a sua teoria da História, o mundo teria passado pela Idade do Pai ou da Lei, pela Idade do Filho ou da submissão filial e ia entrar na Idade do Espírito Santo que correspondia a uma etapa da fraternidade entre os povos[1].


Coroação - Velas, São Jorge - anos 60


O pensamento do monge calabrês espalhou-se pela Europa e chegou à Península Ibérica através dos monges de Cluny, de Cister e dos franciscanos "espiritualistas". No século XII, já há notícias de confrarias do Espírito Santo espalhadas por várias localidades da França[2] e por outras cidades de diversos países que dispunham de casa própria para guardar oferendas de pão, vinho e outros comestíveis.

No que respeita a Portugal, embora existam notícias de uma confraria do Espírito Santo em Benavente, em 1237, todas as fontes apontam para a introdução do culto no reinado de D. Dinis. Sua mulher, Isabel de Aragão, fundou a Igreja do Espírito Santo em Alenquer, onde se realizaram os rituais da coroação do pobre, distribuindo pelos seus vizinhos o pão, a carne e o vinho.

Por acção dos franciscanos, o culto do Espírito Santo expandiu-se por todo o continente. No final do século XVI, segundo Jaime Cortesão, existiam 75 vilas e cidades onde havia templos da sua invocação, 80 hospitais e albergues com as respectivas capelas, cerca de um milhar de igrejas, conventos e ermidas que possuíam confrarias do Espírito Santo, nas quais realizavam procissões, festas e romarias alusivas ao Império e à coroa do Imperador[3]. Para os séculos XV e XVI, há notícias de festas do Espírito Santo em várias regiões do continente que forneceram os primeiros povoadores do arquipélago dos Açores. Muitas delas desapareceram ao longo dos tempos, mas outras subsistem em várias localidades[4].

Estes povoadores levaram consigo as festas do Espírito Santo e realizaram-nas, desde cedo, em diversas ilhas. Gaspar Fructuoso, que escreveu as "Saudades da Terra" nos finais do século XVI, faz referência ao culto do Espírito Santo em algumas ilhas do arquipélago. Documentos vários atestam a existência delas nos finais do século XV e o seu incremento ao longo do século XVI. Para esta divulgação das festas nas ilhas terá contribuído a acção dos franciscanos que acompanharam os primeiros povoadores.


Características gerais da festa
De acordo com o pensamento de Joaquim de Fiore, as festas do Espírito Santo revestem formas de solidariedade comunitária, numa quadra de fraternidade, de abundância e de alegria. A festa realiza-se ao longo de oito semanas que medeiam entre o Domingo de Páscoa e o Domingo da Trindade. Porém, podem realizar-se os impérios ou funções "fora de tempo", quando o número de promessas individuais excede as oito semanas. Estes impérios "fora de tempo" coincidem, geralmente, com épocas de grandes vagas emigratórias, em que os emigrantes pagavam a promessa por terem alcançado um bem desejado ou no período da guerra colonial cuja promessa era paga se o soldado regressava são e escorreito. Nos dias de hoje, já são muito raros os impérios fora da quadra tradicional.

Os elementos basilares da festa são a missa da coroação, o bodo e o jantar. O ritual que os acompanha evoluiu ao longo dos tempos, bem como as formas de organização da própria festa. Por outro lado, sempre existiu uma grande diversidade entre as ilhas e mesmo em cada ilha no que respeita à estruturação genérica do ritual, ao conteúdo e confecção da alimentação e às cerimónias religiosas. Nesta abordagem, procurámos caracterizar, apenas, a festa nas suas linhas gerais e a nossa reflexão parte de um conhecimento pessoal vivido numa freguesia rural, Vila Nova, da Ilha Terceira.

O culto do Espírito Santo exerce-se na Vila Nova por duas vias: 1) o da irmandade, em que um número de irmãos se encarrega todos os anos de organizar o bodo. Os mordomos, para além dos contributos individuais, recolhem os donativos para a aquisição do pão, vinho e carne para distribuir aos pobres, aos irmãos e, nalgumas localidades, aos próprios forasteiros. O bodo realiza-se no 7º e 8º Domingo, junto ao Império, um pequeno templo onde se venera a coroa, o ceptro e a bandeira. Estes impérios ou "triatos" até ao século XIX eram geralmente de madeira e desmontáveis. A partir de então, começaram a ser construidos em pedra em quase todas as localidades; 2) a da promessa individual, em que o imperador realiza a função, ou seja oferece um jantar a convidados e esmolas aos pobres. Durante a semana em que o Espírito Santo está em casa do Imperador, este é ajudado pelos vizinhos e todos os dias, à noite, se reza o terço e se dança na sala em frente à coroa do Espírito Santo.

Em ambos os casos, a festa é sempre de abundância, de partilha, de fraternidade, de entreajuda. A coroação exige sempre uma refeição comunitária e a distribuição de carne e pão.

Estas festas têm como mestres de cerimónia e animadores os conhecidos foliões. São indivíduos encarregados de anunciar, dirigir e orientar todos os rituais relacionados com a festa. Desapareceram nos nossos dias, mas acompanhavam a coroação, bailavam e cantavam na capela-mor enquanto se realizava a coroação dos imperadores. Usavam vestes próprias, com opas enramadas e coloridas, lenços na cabeça, e tocavam instrumentos vários, nomeadamente, tambor e pandeiro.


Censuras e proibições

 
Desde o início, a festa do Espírito Santo escapou à esfera de influência da hierarquia da Igreja. Pelos abusos, excessos e extravagâncias foram censuradas e proibidas determinadas formas exteriores do culto que não estavam de acordo com a doutrina da Igreja. Esta procurava, assim, separar o sagrado do profano e impor o domínio total do sagrado[5]. Mesmo não havendo intenção de eliminar definitivamente as festas, o facto é que as censuras e proibições parcelares contribuíram para que fossem desaparecendo na Europa e noutras zonas de Portugal.

Analisando a longa lista de proibições e censuras constata-se que há em primeiro lugar a preocupação de purificar a festa dentro da Igreja. Em 1559, n´As Constituições Diocesanas proibiu-se o costume de os imperadores pregarem no púlpito ou em qualquer lugar da Santa Igreja. Esta prática frequente nalgumas ilhas, provavelmente uma reminiscência das Festas dos Loucos em França[6], causava embaraços à estrutura da Igreja e colocava o sacerdote em posição subalterna. Em 1600, D. Jerónimo Teixeira proíbe os foliões de bailar na capela-mor das igrejas, como era hábito durante as coroações. Em 1610, proíbe-se os foliões de cantar cantigas profanas no interior do templo. Em 1678, proíbe-se a coroação do imperador antes de acabada a missa ou a sua entrada na Igreja com a cabeça coberta.

Estas proibições levam muito tempo a ser acatadas. Não se sabe quando se deixou de bailar nas igrejas, mas nos anos cinquenta do nosso século, na ilha Terceira, os foliões nalgumas freguesias ainda cantavam e tocavam dentro da Igreja e dirigiam parte da cerimónia da coroação.

A luta entre o poder espiritual e temporal também está presente numa determinação de 1645, em que se proíbe o pároco de ir a casa dos imperadores dar-lhes o ceptro e tirar-lhes a coroa da cabeça. Se a entrega do ceptro demonstra o poder do investidor, o retirar a coroa da cabeça representa o serviço que um subordinado presta ao senhor. Os impérios de mulheres, acusadas como causa e objecto de pecado, foram proibidos em 1679. Em 1894, não se permite que sejam coroadas raparigas com mais de dez anos, mas a determinação não foi acatada.

Outro tipo de proibições procura alterar a festa nos espaços públicos ou privados. Em 1636, não são permitidos jantares depois do anoitecer; em 1843, são proibidos os bailes na casa onde se encontra a coroa do Espírito Santo; em 1894, pretende-se acabar com jogos e outros divertimentos profanos em casa do imperador, bem como as mudanças da coroa à noite ou os banquetes nos impérios. Por outro lado, procurou-se também afastar os sacerdotes de todas as cerimónias que se realizassem fora da Igreja. Em 1645, não se permite que os padres "assistam à mesa dos imperadores"; em 1876 e novamente em 1894, os mesmos são proibidos de fazerem parte da administração dos impérios.

Em relação às irmandades do Espírito Santo, a Igreja nunca se pronunciou contra as mesmas, apesar de aquelas terem um estatuto autónomo, regido por leis próprias que nalguns casos se sobrepõem às da Igreja. Por exemplo, o estatuto da irmandade do império dos Quatro Cantos, ilha Terceira, determinava, em 1868, que competia à irmandade dar parte ao padre da hora em que o imperador devia coroar.

As irmandades viveram sempre à margem da Igreja, mas, em 1959, o bispo decidiu uniformizar os estatutos, colocando-os sob a alçada da Igreja. Geraram-se conflitos verbais em várias ilhas e, na Terceira, o assunto foi tema de artigo do jornal. Pela pena do dr. Valadão, autoridade civil e pessoa de prestígio local, apelava-se ao bom senso de ambas as partes, mas o autor não deixa de frisar que as autoridades eclesiásticas, ao longo da história, haviam recuado várias vezes perante a firmeza dos costumes, a força deles e a fé viva que ardia nas populares festas[7]. A Igreja, uma vez mais, cedeu perante a firmeza popular: a maioria das irmandades continuou a funcionar sem subscrever os estatutos propostos pela Igreja

Todas estas proibições ou intromissões só muito lentamente produziram alguns efeitos. A resistência a todas elas foi muito activa provocando frequentes desaguisados entre a população e os representantes da Igreja. Os açorianos sempre encararam, e encaram, estas festas como uma festa sua, "a festa do povo", nitidamente distinta de outras festas religiosas, "a festa do padre".


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Notas:

[1] Yvette Centeno, "O Evangelho Eterno e a doutrina maçónica de Lessing", in Os Impérios do Espírito Santo na Simbólica do Império, Angra do Heroísmo, 1985, p. 29

[2] Pierre Duparc, "Confréries du Saint-Esprit et comunnautés d´habitants au Moyen-Âge", Rev. Historique du Droit Français et Étranger, 4-eme série, 36.eme année, nº 3, p. 349-367, nº 4, p. 555-585, Paris, 1958.

[3] Jaime Cortesão, Os factores democráticos na formação de Portugal, Lisboa, 1974, p. 197

[4] João Leal, As festas do Espírito Santo nos Açores, Um estudo de antropologia social, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1994

[5] Maria Fernanda Enes, Reforma tridentina e religião vivida (os Açores na época moderna), Ponta Delgada, Signo, 1991, p. 129.

[6] Ver Jacques Heers, Festas de Loucos e Carnavais, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1987.

[7] Diário Insular, 19-5-1960.



NOTA Registamos que a tradição dos Foliões se mantem em São Jorge, especificamente no Concelho das Velas.

Fonte: http://ww1.rtp.pt/icmblogs/rtp

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