Análise: a história se repete entre líderes da América do Sul - Por Miguel Ángel Bastenier
Nos últimos meses foi como se a história se repetisse. O presidente da Colômbia, Álvaro Uribe, encomendava a seus eleitores a continuidade, nomeando delfim Juan Manuel Santos, que saía devidamente eleito em julho; anteriormente, Dilma Rousseff já se havia consolidado como ungida pelo presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, e hoje é a favorita para sucedê-lo no segundo turno. O presidente venezuelano, Hugo Chávez, apresentava as legislativas de 26 de setembro como um plebiscito pessoal, o que havia estado implícito com Uribe e clamorosamente óbvio no caso brasileiro.
O líder bolivariano fez jogo nulo em sua tentativa de esmagar a oposição; o continuísmo de Santos está sendo tão matizado que mais parece um novo começo; e Rousseff ainda é uma relativa incógnita; mas todos têm algo em comum: uma arrasadora maioria de eleitores votou a favor ou contra os que não concorriam nas eleições: em Uribe em vez de Santos, em Lula no lugar de Rousseff e em Chávez suplantando sua facção. E todos eles se necessitam e explicam, como peças em um tabuleiro, pela existência dos demais.
Uribe é o guelfo clássico que buscou aliados onde devia - EUA -, alinhando sua política segundo as preferências de Washington na Ásia Central e escolhendo seus adversários com impecável ortodoxia: o chavismo. Santos, diferentemente, é o guelfo pós-moderno que proclama que todos os que não estejam contra ele estão com ele.
E Lula é o gibelino que agrada a todos os guelfos. A Uribe porque, embora fosse um incômodo com suas críticas à cessão de bases a Washington, também o valorizava diante da superpotência; e a Santos porque, criando um polo de poder na América Latina, dá maior profundidade a sua política externa; não por acaso sua primeira visita foi a Brasília.
Lula protagonizou nestes anos um número acrobático excepcional, acendendo uma vela a Deus e outra ao diabo. Representou seu país em Davos, fórum dos grandes poderes factuais, e no G-20-e-poucos junto aos líderes do planeta, sem deixar de ser por isso a estrela da reunião altermundista de Porto Alegre; assim, assinou em abril um acordo sobre defesa com os EUA, e fechou em maio um plano de rearmamento com a França que faz de seu país a primeira potência militar latino-americana e a sétima do mundo a possuir submarinos nucleares; e enquanto disputava com Chávez a liderança da ibero-esquerda apaziguava qualquer temor dos investidores ocidentais com o respeito que demonstrava pelo capitalismo globalizado.
Os gibelinos radicais disseram que Lula havia sido cooptado pelo que Gramsci chamava de "resistência passiva" das elites, cujos benefícios marginais seriam a Copa do Mundo de Futebol em 2014 e os Jogos do Rio em 2016.
Chávez é, por sua vez, o gibelino em estado natural, mas que também precisa de Lula porque não tem melhor comunicação com o Ocidente, dado que a Espanha não basta e Cuba e Irã não servem. Gibelinos só aparentes são o presidente equatoriano, Rafael Correa, e o boliviano, Evo Morales. O primeiro é um gibelino à força, que na Europa ficaria feliz em ser social-democrata, mas cujo vulcanismo confronta o mundo, transformando, como ocorreu em Quito, um motim policial em intentona golpista. E a aversão e o distanciamento que o líder indígena sente pela Europa o torna irremissivelmente alheio a tudo o que soe à Itália do século 15.
Mas o ator central é sempre Lula porque, cooptado ou sigiloso assaltante pela porta traseira do palácio de inverno, pretende alterar a precária ordem universal que ainda tem os EUA como poder imprescindível. A mobilização para isso foi impressionante. Em mais de 200 viagens ao estrangeiro em oito anos de mandato, dormiu 385 noites fora do Brasil; abriu 36 embaixadas e consulados, com o que o país está representado em uma centena de capitais por 1.400 diplomatas, e, à diferença de seus antecessores, que preferiam os EUA e a Europa, dois terços de suas viagens foram a Ásia, África e América Latina.
Lula jurou que não será o poder na sombra com Rousseff, e muito menos que renuncie a uma futura presidência. E é difícil vê-lo longe de seu país, mesmo que seja como secretário-geral da ONU. Mas se seu desígnio perdura dificilmente poderá manter seu requintado jogo gibelino. No topo, o centro não existe.
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