Trabalho, crise, sindicalismo e Igreja Católica
Manuel Carvalho da Silva, líder histórico da CGTP, coordenador do Observatório sobre a Crise e Alternativas, fala à Agência ECCLESIA do mundo do trabalho, da sua visão sobre a crise e os caminhos a seguir, sem esquecer a formação católica e os contactos que mantém com organismos da Igreja.
Agência ECCLESIA (AE) – Com a crise laboral que se vive ainda faz sentido comemorar o dia do trabalhador?
Manuel Carvalho da Silva (MCS) – Sempre fez sentido e, agora, ainda faz mais. O trabalho, enquanto atividade humana, é o elemento fundamental de integração e inclusão na sociedade, mas é também pelo trabalho que a afirmação do ser humano no seu pleno se obtém. A articulação entre o trabalho como direito universal e os valores da dignidade e responsabilidade humana numa sociedade que se quer cada vez mais universalista e respeitadora da multilateralidade e multiculturalidade entre os povos tem o trabalho como referência central. O 1º de maio tem uma história e foi muito importante que tenha sido instituído como dia de referência do contributo coletivo e da luta coletiva dos trabalhadores para a caminhada da conquista de um conjunto enorme de direitos sociais.
AE – Direitos que estão a desaparecer?
MCS – Exato. Se olharmos para os bloqueios que a sociedade se encontra – aquilo a que comummente se chama crise, que não está despida de conteúdo de político, mas é um conceito, profundamente, ideológico – e tentar romper esses bloqueios e encontrar caminhos de saída, o trabalho está no centro. O trabalho está no centro para o combate à pobreza – que é primordial -, no combate às desigualdades e em tudo o que se possa discutir sobre o Estado social e no garante dos direitos sociais fundamentais.
AE – Em 2012, o trabalho ainda tem essa centralidade?
MCS – Está mais do que esteve. Sempre que há uma situação de crise, a emergência do lugar e do valor do trabalho como questão central é primordial para se partir na busca de soluções.
AE – A gravidez e o parto dessas soluções estão difíceis… A crise já vigora há alguns anos.
MCS – Corremos o risco, em relação ao espaço em que vivemos (Portugal e União Europeia), de a situação se continuar a agravar. O problema não está apenas no aparecimento de soluções, mas no agravamento diário das condições.
AE – Com este cenário, faria mais sentido celebrar o dia do desempregado e não o dia do trabalhador?
MCS – É preciso celebrar o dia do trabalhador para relevar a violência do desemprego.
AE – Nunca se comemorou o 1º de maio com uma taxa de desemprego tão alta?
MCS – Em democracia não porque, em ditadura, já. Se há coisa que marcou a sociedade portuguesa durante o século XX é que existia muita ocupação, mas a sua retribuição dava para a subsistência e, muitas vezes, sem dignidade. Não havia o conceito de emprego que temos hoje. O salário foi ganhando conteúdo. A retribuição do trabalho não foi sempre feita pelo conceito de salário que, hoje, temos. A Europa que hoje existe – apesar dos bloqueios grandes – é o espaço geográfico onde os direitos do trabalho ainda estão – em termos comparados – com avanço em relação a outras zonas do mundo e onde há uma relação mais forte entre os direitos do trabalho e os direitos sociais e políticos. No entanto, não teríamos este avanço se não houvesse a luta dos trabalhadores organizada.
AE – Foi nos seus tempos de jovem, quando militante da Juventude Operária Católica (JOC), que ganhou essa consciência política, laboral e cívica?
MCS - Os primeiros sinais são daí… Recentemente, encontrei um padre mais velho do que eu, em Braga, que já não via há muitos anos, e estivemos a trocar impressões sobre esses tempos da JOC. Os primeiros despertares da observação do trabalho e do seu valor – no ponto de vista do enquadramento conceptual e a sua ligação à dignidade humana – vêm dessa fase. Não posso esquecer também a observação direta. Como era filho de pequenos agricultores, existia a perceção de quem estava sujeito à exploração ou não. Isso foi uma das coisas que os meus pais me incutiram.
AE – Outros tempos…
MCS - Quando recordo aqueles tempos, verifico que, atualmente e apesar dos bloqueios, fizemos um progresso extraordinário. Neste tempo, a capacidade de produção e distribuição de riqueza é incomparavelmente melhor do que era há umas décadas atrás. Nada justifica que se esteja - em nome da falta de dinheiro e da falta de riqueza - a eliminar direitos das pessoas e a provocar empobrecimento e sofrimento. Há produção de riqueza e dinheiro a circular…
AE – Mas essa riqueza está, apenas, na posse de alguns…
MCS – Esse é que é o problema, mas é possível continuar o progresso, embora tenhamos de alterar muita coisa no estilo de vida das pessoas. Quando olhamos para a crise, esta não é meramente financeira. Ela é económica porque a secundarização do trabalho na economia levou à desresponsabilização das pessoas a partir do trabalho. A crise é profundamente social… Não se justifica esta pobreza e desigualdades. A crise é política porque temos uma governação não credenciada, visto que os programas que nos impõem não foram sufragados. A crise é de relacionamento das instituições, de valores, de ruturas e disfunções entre gerações, energética e ambiental.
AE – Então é fundamental reagir?
MCS – Reagir, protestar e dizer: Se há riqueza reparta-se melhor. Hoje, há condições de produzir alimentação no mundo que satisfaça todos os seres humanos.
AE – Mas a fome existe…
MCS – Não faz sentido haver fome, tal como não faz sentido a irracionalidade do uso de uma série de matérias-primas.
AE – Perante um cenário tão negro é urgente alterar o estilo de vida?
MCS – Plenamente de acordo. A Europa não terá nas próximas décadas o acesso que teve às matérias-primas nas décadas do seu grande impulso de desenvolvimento. Teremos de valorizar o trabalho social muito mais do que foi valorizado. Isto, se queremos caminhar positivamente. Vamos ter de encarar a gestão da economia distanciando-nos da ideia de todos competirem contra todos numa espiral de loucura. Pode não haver crescimento económico e haver condições de viver melhor.
AE – Como se consegue dar a esse ideário uma componente prática?
MCS – Não é possível encarar os problemas nacionais sem olhar, simultaneamente, para os problemas europeus e globais. O que não se pode é ficar à espera deles e, muito menos, esperar que os outros nos façam a governação que nos interessa. Cada um de nós tem de tratar do seu projeto. Há dimensões da crise que obrigam a novas formas de agir. Os caminhos alternativos não são complexos. São difíceis de construir, mas são feitos de conteúdos muito simples. As respostas à atual situação passam mesmo por opções muito simples como o dar prioridade ao combate à pobreza…
AE – Todos os programas eleitorais colocam essa prioridade em destaque.
MCS – Mas depois fazem o contrário. É fundamental ter presente que cada medida que empobrece a sociedade amputa liberdade às pessoas. A pobreza elimina liberdade e destrói a democracia. É necessário identificar a verdade para sabermos agir e para onde caminhar. Esta inevitabilidade conduz aos medos e à resignação. As pessoas necessitam consciencializarem-se dos seus medos e da limitação que os medos lhe provocam. Depois, têm de romper essa limitação. Não se sai da crise através de uma varinha de condão. É preciso criar nas pessoas uma carga forte de responsabilização. Os processos que vivemos nas últimas décadas desresponsabilizaram. Ainda neste contexto, é urgente uma governação com ética e com responsabilização. Não se sai dos buracos atuais, enquanto o povo não reconhecer numa governação (não é apenas o governo) que tenha ética, rigor e transparência.
AE – Como contestar o atual modelo de governação?
MCS – Em primeiro lugar, a cidadania. Estamos muito distanciados… Precisamos de seres humanos interventivos porque discutir e pensar dá imenso trabalho. Estamos num tempo de apelo forte ao pensamento e à ação. É mesmo preciso pensar…
AE – Mas primeiro é fundamental cumprir o memorando da Troika?
MCS – Na governação atual apresentam-nos o memorando ou a governação da Troika como uma inevitabilidade que afinal não é tão inevitável quanto isso. Veja-se o que o FMI tem dito nas últimas semanas: «Estes programas de austeridade não têm saída e que a austeridade generalizada que eles andaram a vender como caminho não é a saída porque são necessários programas de crescimento». Temos falta de uma estrutura financeira que se volte para o apoio à economia. A banca que temos, neste momento não dá atenção nenhuma ao setor produtivo. Para se sair da crise e resolver o problema do emprego é fundamental apoiar e dinamizar as pequenas empresas. As multinacionais e os grandes grupos que dominam o mundo não estão voltadas para responder ao problema real do desemprego e da criação de atividades económicas úteis. Não se pode pegar no memorando da Troika e dizer que isto é de interesse nacional porque é uma falácia total e uma mentira do tamanho do país.
AE – Quem está a falar é o académico que fez uma tese de doutoramento sobre «Trabalho e Sindicalismo em tempo de globalização» ou o sindicalista Manuel Carvalho da Silva?
MCS – É um cidadão que aprendeu na vida, no sindicalismo e na academia.
AE – As marcas católicas dos seus tempos juvenis ainda se mantêm?
MCS – Essas mantêm-se. A nossa formação de infância e juventude tende com o caminhar da vida a reafirmar-se com alguma força.
AE – Há meia dúzia de anos, disse que era católico, mas não praticante. Já passou para a classe dos praticantes?
MCS – (Risos)… Está a confessar-me… Eu tenho as minhas práticas. Gestos e atitudes que todos os dias tomo e que estão relacionadas com a minha formação católica, mas que não se metem nos parâmetros formais com que, normalmente, é feita a leitura do que é ser praticante. O praticante é mesmo a vida vivida. Tenho estado em várias iniciativas promovidas por organismos da Igreja Católica.
AE – O contacto com o mundo do trabalho deu-lhe uma visão abrangente a realidade portuguesa?
MCS – Sou um privilegiado. Tive a sorte de fazer um percurso de vida no mundo do trabalho. Partilhando e vivendo problemas que me permitem ter grelhas de leitura.
AE – Como está o projeto do observatório sobre a crise e alternativas?
MCS – É um caminho que se está a iniciar e um projeto criado pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, mas com a colaboração da OIT (Organização Internacional do Trabalho). Através deste observatório tentaremos dar contributos ao nível da gestação de alternativas. Queremos produzir relatórios e observações regulares.
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