Uma ONU em casa - Entrevista: Kwame Anthony Appiah - Por Diogo Schelp


Quando o assunto é diversidade cultural, o filósofo Kwame Anthony Appiah, 51 anos, fala de sua própria família. 

Nos anos 50, sua mãe, aristocrata e filha de um ministro inglês, desafiou as convenções para se casar com um estudante africano. Appiah nasceu na Inglaterra, mas passou parte da infância e da juventude em Kumasi, capital do povo de seu pai, os ashantis, em Gana. Como vive e trabalha nos Estados Unidos, adotou também a nacionalidade americana. 

Tem primos indianos, libaneses, franceses e quenianos. "Nas reuniões de família, falam-se oito línguas e há representantes das três grandes religiões monoteístas", diz. Ph.D. pela universidade inglesa de Cambridge e ex-professor em Harvard, Appiah critica quem tenta isolar o Terceiro Mundo da influência ocidental. 

Em Cosmopolitanismo: Ética em um Mundo de Estranhos, publicado neste ano nos Estados Unidos, o filósofo sustenta que a globalização faz bem às culturas regionais. Appiah falou a VEJA de seu escritório na Universidade Princeton, onde leciona há quatro anos.  

Veja – A ONU aprovou uma convenção para proteger a diversidade cultural no mundo. Que efeitos práticos esse documento pode ter? 

Appiah – A convenção baseia-se no temor de que a cultura de massa ocidental ocupe o espaço das diferentes formas culturais de outras partes do globo. Esse é o argumento para que os países defendam suas expressões artísticas e costumes nacionais ou locais. É, no mínimo, uma contradição. A própria ONU defende a livre circulação de idéias, a liberdade de pensamento e de expressão e os direitos humanos. A convenção para proteção cultural pode ser usada para desrespeitar esses valores. O que, aliás, já vem acontecendo. Na China, o governo utiliza a convenção da ONU como justificativa para impedir que a população tenha livre acesso à internet. Os burocratas chineses estão preocupados em preservar a cultura local? Claro que não. Apenas querem impedir os cidadãos de ter contato com idéias e informações que os levem a desafiar o governo.  

Veja – Não há fundamento na preocupação de governos, ONGs e políticos de que a globalização ameaça a diversidade cultural? 

Appiah – Entendo quando governos se preocupam com o desaparecimento de formas tradicionais de arte. Devemos apoiar manifestações artísticas tradicionais porque elas são valiosas não apenas para quem as faz, mas para toda a humanidade. É preciso, por exemplo, gravar as canções tradicionais maoris, da Nova Zelândia, ou a história oral dos povos amazônicos, para que não se percam. Mas é errado tentar barrar trabalhos artísticos vindos de outras partes do mundo. A população deve ter liberdade para escolher quais produtos culturais deseja consumir. Na verdade, a questão é outra. Boa parte da humanidade não tem dinheiro para seguir o estilo de vida que gostaria ou para consumir o tipo de arte que desejaria. A razão pela qual os moradores de uma pequena comunidade na África preferem usar camisetas em lugar de roupas tradicionais é simples: as roupas ocidentais custam menos. O que há de errado com as camisetas? Elas são baratas e cobrem o corpo. Ou seja, cumprem a função de uma roupa. É isso que importa. Podemos deixar as vestes tradicionais para os dias de festa.  

Veja – Alguns países temem a força da indústria cultural americana, cujo exemplo mais vistoso são os filmes de Hollywood. Esse temor se justifica? 

Appiah – Ninguém obriga os brasileiros ou os franceses a assistir aos filmes de Hollywood. Não há tropas americanas nas ruas de Paris obrigando os parisienses a entrar nos cinemas. Eles assistem aos enlatados americanos porque querem. Eu me preocuparia mais em estimular os americanos a ver filmes franceses, porque são bons e merecem ser vistos, do que em restringir a exibição de obras americanas nos cinemas da França. O mesmo, por sinal, vale para o Brasil. Os indivíduos e suas escolhas são mais importantes do que a cultura que se quer preservar. Isso vale para tudo, desde o estilo de vida que se segue até o tipo de arte que se consome.  

Veja – Como assim? 

Appiah – Uma cultura só tem importância se for boa para os indivíduos. Imagine uma comunidade que tem um costume que nós consideramos inaceitável. Obrigar as mulheres a ficar em casa e só sair na rua com o corpo e o rosto cobertos, por exemplo. Alguém dessa comunidade pode defender esse abuso sob o argumento de que faz parte de sua cultura. Eu discordo. Se o costume é ruim para o bem-estar de uma grande parcela daquela população, o fato de fazer parte da cultura não é motivo para insistir no erro. O foco de nossa preocupação deve ser o indivíduo, não a tribo ou a nação. Antes de qualquer consideração, precisamos definir o que vem primeiro, se os direitos humanos ou os costumes estabelecidos. Os preservacionistas culturais certamente não concordam com a discriminação sofrida pelas mulheres, mas são capazes de tolerar esse absurdo sob o argumento de que se trata de um valor cultural. Isso é errado. Há formas boas e ruins de diversidade cultural.  

Veja – O que são preservacionistas culturais? 

Appiah – Os preservacionistas culturais, geralmente gente com bom padrão de vida em algum país ocidental, olham para a cultura de outras regiões ou países e dizem: "Que bonito, eles deveriam ser assim para sempre. Devemos fazer com que eles permaneçam com seu estilo de vida autêntico, protegido da nossa cultura ocidental e comercial". É esse tipo de gente que acha ruim que a população de Gana use camisetas e não aquelas típicas roupas coloridas. Ora, cada um deve ter o direito de vestir o que quiser. Se não pode pagar por isso, é um problema de pobreza, não de autenticidade. Ninguém estranha que um cidadão de um país rico viva em uma bela casa do século XVIII com aquecimento central. Nada menos autêntico do que isso, mas quem se importa? Por que outros povos não podem querer modernizar-se também? Uma cultura totalmente preservada, impedida de sofrer influências externas, está morta. Não há sentido em querer congelar um povo no passado.  

Veja – A globalização deixou o mundo mais homogêneo culturalmente? 

Appiah – A globalização tem como centro as megacidades, como a Cidade do México, São Paulo, Calcutá ou Hong Kong. Esses são lugares absolutamente heterogêneos. São Paulo tem a maior população japonesa fora do Japão, mas também tem habitantes de muitos outros lugares do mundo. Nova York tem a maior população judia fora de Israel. Os meios de transporte modernos e as trocas culturais através da mídia eletrônica permitem uma grande diversidade cultural nesses lugares. A homogeneização é mais visível em pequenos povoados de países pobres. É lá que alguns se chocam em ver Coca-Cola, aparelhos de rádio ou outros indícios da cultura externa. Não há nada de errado na homogeneização global. É ela que permite que mais comunidades tenham água tratada e encanada. Os serviços básicos de saúde se expandiram. Não há como ser contra esse fenômeno.  

Veja – Que parcela de uma sociedade resiste mais à influência de culturas externas? 

Appiah – Em geral é aquela que tem alguma forma de poder a preservar. Muitas das idéias, informações e hábitos que vêm de fora desafiam a autoridade dos homens sobre as mulheres, de governantes ou de religiões tradicionais. Por isso é tão comum ver chefes políticos fazendo leis para impedir mudanças culturais. Eles temem perder os meios de que dispõem para controlar a população. É uma espécie de fundamentalismo político, que resiste à globalização.  

Veja – Há países que exigem que as rádios toquem músicas nacionais boa parte do tempo. Muitos líderes políticos em algumas nações latino-americanas defendem o uso do Estado para proteger a identidade cultural dos indígenas. Essas idéias fazem sentido no mundo atual? 

Appiah – É surpreendente, mas esse tipo de gesto nacionalista é muito comum no mundo moderno. Estou certo de que as pessoas sabem muito bem julgar o que querem ouvir. Ninguém precisa do Estado ditando escolhas musicais. A vida cultural do país não vai melhorar com a obrigatoriedade de certo tipo de exibição, porque ela pode ser cumprida enchendo as ondas de rádio com música nacional da pior qualidade. Por outro lado, em casos como o da Bolívia, onde um presidente de origem indígena acaba de ser eleito, eu entendo que a maioria da população tenha se sentido desrespeitada em sua cultura nas últimas décadas. Ao focar em medidas para devolver o reconhecimento que os indígenas não tiveram no passado, no entanto, o governo boliviano corre o risco de se desviar da questão material mais urgente, que é a solução do problema da pobreza. Não há melhor maneira de garantir respeito cultural a um povo do que lhe dar empregos bem pagos.  

Veja – A política indigenista brasileira preocupa-se em preservar o modo de vida dos índios em sua forma original. É possível ter sociedades monoculturais em um mundo globalizado? 

Appiah – Difícil é encontrar uma sociedade que seja monocultural. As culturas são feitas tanto de continuidade quanto de mudanças. E as transformações não significam o fim de sua sobrevivência. As culturas estão o tempo todo emprestando elementos umas das outras e isso é bom. Nada parece mais monocultural do que um monastério tibetano e, no entanto, o budismo veio de fora, da Índia. Quem visita as aldeias ao redor da cidade em que vivi em Gana pensa que está diante de comunidades monoculturais. Como, se quase todos os moradores são cristãos? O cristianismo chegou à região no século XIX, trazido pelos europeus. É, portanto, um aspecto recente da cultura local. Os exemplos são infindáveis. Culturas que não se transformam morrem.

Veja – O Brasil criou cotas para a população negra nas universidades. Muitos críticos consideram essa medida uma forma de criar uma identidade racial de cima para baixo. O senhor concorda? 

Appiah – Não se pode forçar a diversidade criando, entre os indivíduos, diferenças das quais eles sempre quiseram escapar. É uma péssima idéia adotar no Brasil medidas contra o racismo criadas para o contexto dos Estados Unidos, como o sistema de cotas. A realidade racial brasileira é muito diferente. Há duas diferenças básicas. A primeira é que no Brasil a classificação racial é feita com base na aparência do indivíduo. Nos Estados Unidos, é a ancestralidade que conta. Aqui, alguém com a aparência do presidente Bill Clinton pode ser considerado negro. Já no Brasil, alguém que se pareça com Clinton será ridicularizado caso se identifique como negro. A segunda diferença é que, desde a abolição da escravatura, no Brasil nunca mais houve segregação racial oficial. Nos Estados Unidos, em muitos estados, os negros eram proibidos por lei de entrar em determinados lugares e de exercer determinadas funções até os anos 60. Por isso, não é uma boa idéia repetir a experiência recente americana sem levar em conta as peculiaridades brasileiras. O problema das cotas é que a universidade não terá utilidade alguma para o aluno se ele não estiver preparado.  

Veja – O fundamentalismo islâmico pode ser considerado um tipo de preservacionismo cultural? 

Appiah – O curioso a respeito dos verdadeiros fundamentalistas muçulmanos é que eles não são nada preservacionistas. Eles são, sim, hostis às culturas tradicionais de seus lugares de origem. Os fanáticos que participam de atentados terroristas acreditam ter encontrado a versão verdadeira de sua religião. Para eles, os seus pais, para quem o Islã está ligado a um estilo de vida tradicional, não são bons muçulmanos. Muitas práticas tradicionais em países muçulmanos não são aceitas pelos fundamentalistas porque não são, na sua visão, fiéis ao Corão. Os fundamentalistas são reformadores radicais do Islã. Eles tentam criar uma forma moderna e simplificada da religião, não uma repetição de algo que existiu no passado. Querem o Islã tirado de seu contexto cultural. São perigosos não porque querem preservar uma cultura, mas porque querem destruir a existente.  

Veja – Que tipo de mundo os fundamentalistas muçulmanos querem criar? 

Appiah – Eles querem que todos sejam como eles. É isso que os distingue de quem tem uma visão cosmopolita do mundo. Os fundamentalistas acreditam que, para dar sentido e dignidade à vida das pessoas, todas devem ser iguais a eles. Já os cosmopolitas acham que isso só será atingido se cada um puder fazer as escolhas que quiser. O objetivo de fundamentalistas e cosmopolitas é o mesmo, mas os meios mudam. Para os cosmopolitas, a verdade está distribuída ao redor do planeta. Nem todo mundo tem a mesma idéia de qual é a melhor maneira de ser feliz. É uma visão pluralista do mundo e é a que eu defendo.

Fonte: http://veja.abril.com.br

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