Livro faz imersão no universo dos Mebengokre - Por José Tadeu Arantes
Compreender o “outro”, o
“diferente”, é o permanente desafio do antropólogo. Para superá-lo, além do
repertório científico, é preciso desenvolver uma atitude intensamente
receptiva, uma silenciosa capacidade de observação que possibilite ultrapassar
a superfície dos entes e fenômenos para buscar as concatenações subjacentes que
lhes conferem sentido. Tanto mais quando, como lembrou o antropólogo francês
Pierre Bourdieu, a vida social não é regida por regras explicitadas
verbalmente, mas por hábitos acumulados ao longo de incontáveis gerações.
O livro de Vanessa Rosemary Lea,
Riquezas intangíveis de pessoas partíveis, é o testemunho desse desafio. Com
suas quase 500 densas páginas, a obra é fruto de mais de três décadas de
imersão da pesquisadora no universo material e imaterial dos Mebengokre, do
Brasil central. Professora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)
da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Lea teve apoio da FAPESP na
modalidade Auxílio à Pesquisa – Publicações.
Os Mebengokre, povo indígena do
tronco Jê, que Vanessa evita chamar de Kayapó, por considerar o termo,
literalmente, “parecido com macaco”, preconceituoso e até racista, chamaram
pela primeira vez a atenção da estudiosa britânica em 1971, quando, no auge da
ditadura militar brasileira, sobressaíram-se na mídia devido à resistência à
construção da estrada BR-080, cujo traçado cruzava seu território ancestral.
“Foram suas atitudes orgulhosas que me atraíram”, afirma Lea.
A pesquisa propriamente dita foi
iniciada em 1978, na aldeia Kretire, no Mato Grosso. E, ao longo dos anos
seguintes, Vanessa visitou e hospedou-se em várias aldeias, residindo por sete
meses consecutivos em território Mebengokre no biênio 1981-1982, quando foi
adotada simbolicamente como “filha” pelo chefe Ropni Metyktire, que a mídia
celebrizou com o nome de Raoni. Somando-se as várias estadias, o tempo de
permanência da antropóloga entre o povo de sua eleição alcançou quase dois
anos.
Instalados na fronteira da
incorporação do território nacional pela formação social hegemônica, os
Mebengokre têm sido impactados por várias e sempre controvertidas iniciativas
de caráter “desenvolvimentista”: primeiro, a já mencionada construção da
BR-080; depois, a base militar do Cachimbo, com instalações subterrâneas para a
realização de testes nucleares; mais tarde, a expansão acelerada das lavouras
de soja; agora, a implantação da hidrelétrica de Belo Monte.
Vanessa testemunhou a resistência
altiva desse povo, mas também sua complexa assimilação dos valores da sociedade
envolvente, como o crescente fascínio e a dependência em relação aos bens
industrializados (nekretex), aos quais os antepassados (mekukamare) não tiveram
acesso.
Lidar com os insistentes pedidos
de “presentes” foi uma das peças do complicado quebra-cabeça que a antropóloga
dispôs-se a montar. “Essa relação com os bens, materiais e imateriais, balizou
minha pesquisa. E faz com que eu defina, resumidamente, o meu livro como uma
arqueologia do conceito de riqueza entre os Mebengokre”, diz.
“Entendi que a Casa (com inicial
maiúscula) é um elemento fundamental da sociedade Mebengokre. Ela não deve ser
confundida com a mera habitação. Pois, enquanto a habitação é um ente físico, a
Casa possui status equivalente ao de uma pessoa jurídica. Cada Casa, que pode
ser formada por uma ou algumas habitações vizinhas, ocupa um lugar fixo no
círculo que constitui a aldeia, localizado segundo a trajetória diurna do sol
de leste para oeste. Cada Casa possui um acervo distintivo de nomes pessoais e
prerrogativas hereditárias, consagrado pelos mitos. A separação física entre os
membros, com sua eventual transferência para outras aldeias, não afeta a noção
de pertencimento a uma determinada Casa”, explica Lea.
A pesquisadora enfatiza que as
mulheres de cada Casa são sempre parentes uterinas. E que a transmissão dos
nomes e prerrogativas da Casa sempre se dá por via matrilinear. É a linha
uterina (feminina), e não a agnática (masculina), que rege a transmissão.
“No centro da aldeia fica o ngà,
ou ‘casa dos homens’. No passado, o menino era retirado da Casa de sua mãe ao
completar de 8 a 10 anos e levado para o ngà, lá residindo até ser reconhecido
como adulto, ao ter seu primeiro filho, quando passava a habitar a Casa da
esposa. Essa situação se modificou um pouco, mas, até hoje, o homem só
frequenta a Casa de sua mãe ou a Casa de sua esposa. Se ele se separa, deve
abandonar a Casa da esposa”, diz a antropóloga.
Outro elemento fundamental,
relacionado com a noção de Casa, é o sistema onomástico, isto é, o conjunto
estruturado de nomes. Ao nome original da criança, outros nomes vão sendo
acrescentados à medida que ela cresce e sua herança se explicita. Há “nomes
comuns” e “nomes bonitos”. A diferença é que os segundos são confirmados
cerimonialmente.
Os nomes referem-se ao cotidiano
humano, aos elementos da natureza, à flora, à fauna, aos produtos da roça, ou
aos novos bens que estão sendo assimilados a partir do contato com a sociedade
envolvente. Uma grande quantidade de nomes designa atributos físicos ou comportamentais,
como “alto”, “magro”, “chorão”, “comilão”. Mas sua aparente simplicidade é
enganosa, pois muitos nomes suportam vários significados.
“A maioria das pessoas tem de
seis a 15 nomes. Para um adulto, é considerado indecente ter menos de cinco. Em
minha pesquisa em Kretire, havia um menino com 32 nomes. Quando a pessoa morre,
seu conjunto de nomes é desintegrado. De modo que não existem duas pessoas com
exatamente os mesmos nomes”, diz Lea.
Segundo a pesquisadora, essa
riqueza intangível, constelada na pletora de prerrogativas herdáveis, é tão
definidora para os Mebengokre que, diante do impacto provocado pela
hidrelétrica de Belo Monte, cujas obras estavam, então, prestes a se iniciar,
uma mulher de nome Kena afirmou, em 2011: “Enquanto tivermos nossos nomes, não
vamos acabar”.
Riquezas intangíveis de pessoas
partíveis
Autor: Vanessa R. Lea
Lançamento: 2012
Mais informações:
http://www.edusp.com.br/detlivro.asp?id=413278
Fonte: http://agencia.fapesp.br
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