A sociedade atual está menos preparada para a morte – Por Umberto Eco
A "Magazine
Littéraire", uma publicação mensal da França, dedicou um número recente a
um único assunto: como a literatura trata o tema da morte.
Eu o li com
interesse, mas afinal fiquei desapontado. Alguns artigos podem ter tocado
ideias com as quais não tinha familiaridade, mas em última instância eles
apenas reiteraram uma tese bem conhecida: que além de abordar a ideia do amor a
literatura sempre lidou com o conceito de morte.
Os artigos apontavam a presença
da morte tanto nas narrativas do século passado como na literatura gótica
pré-romântica, mas também poderiam ter citado a mitologia grega, talvez a
morte de Heitor e o luto de Andrômaco, ou o sofrimento dos mártires em muitos
textos medievais. Para não falar no fato de que a história da filosofia começa
com a premissa do mais fundamental dos silogismos: "Todos os homens são
mortais".
Talvez o problema tenha origem no
fato de que as pessoas leem menos livros hoje do que nas gerações passadas.
Seja qual for a causa, porém, perdemos nossa capacidade de aceitar a morte.
A
religião, a mitologia e os antigos rituais tornavam a morte, senão menos
temível, pelo menos mais familiar para nós. Através de grandes celebrações
fúnebres, do lamento dos enlutados e das grandes missas de réquiem, nos
habituávamos ao conceito de morte. Éramos preparados para ela pelos sermões
sobre o inferno, e ainda criança fui incentivado a ler trechos do
"Companheiro da Juventude" que abordavam a morte.
Aquele texto, um manual de
orações editado pelo padre do século 19 Dom Bosco, era um lembrete de que não
sabemos onde ou quando a morte nos levará, em nossa cama, no trabalho, na rua;
com um aneurisma estourado, uma febre, um terremoto ou algo totalmente
diferente.
Naquele momento sentiremos a cabeça atordoada, os olhos doloridos, a
língua seca, as mandíbulas travadas, o peito pesado, o sangue congelado, a
carne consumida, o coração traspassado. Daí a necessidade de praticar o que Dom
Bosco chamou de Exercício para uma Morte Feliz: "Quando meus pés imóveis
me disserem que minha carreira nesta vida está prestes a terminar... Quando
minhas mãos trêmulas e insensíveis não puderem mais te segurar, oh, meu bom
Crucifixo, e a contragosto eu o deixar cair sobre meu leito de sofrimento...
Quando meus olhos estiverem enevoados e distraídos pelo horror da morte iminente...
Quando minhas faces pálidas e cinzentas despertarem compaixão e terror nos que
me virem, e meu cabelo, molhado e eriçado com o suor da morte, anunciar a
proximidade do meu fim... Quando minha imaginação, agitada pelos horrendos e
assustadores fantasmas, afundar em tristeza mortal... Quando eu tiver perdido o
uso de todos os meus sentidos... gracioso Jesus, tem piedade de mim."
Isso é puro sadismo, alguém
poderia dizer. Mas o que ensinamos a nossos contemporâneos hoje? Que a morte
ocorre longe de nós, em hospitais, que os enlutados não necessariamente
acompanham o caixão até o cemitério, que não vemos mais os mortos. Ou melhor,
nós os vemos constantemente, sendo espancados, alvo de tiros ou explosões;
caindo para o fundo de um rio com os pés metidos em concreto; deitados inertes
na calçada, com as cabeças rolando na rua. Mas esses não são nossos próximos e
queridos; são atores.
A morte é um espetáculo, certamente nos filmes e na televisão, mas também na vida real. Devoramos
reportagens na mídia sobre uma jovem que foi estuprada e assassinada, ou sobre
as vítimas de um "serial killer".
Não vemos os corpos torturados,
porque isso nos lembraria nossa própria morte. Mas vemos amigos em prantos
levarem flores a um local de crime ou montando uma vigília à luz de velas. Ou,
muito mais sádico, vemos repórteres baterem à porta de uma mãe enlutada para
perguntar como ela "se sentiu" quando soube da morte do assassino de
sua filha. A morte em si é mostrada apenas indiretamente, através de imagens de
amizade e dor materna, o que nos afeta de forma menos visceral.
A morte quase desapareceu de
nosso horizonte de experiência imediato. O resultado é que a maioria das
pessoas ficará muito mais aterrorizada quando chegar a hora de enfrentar o
acontecimento que é nosso destino desde que nascemos, um destino que homens
mais sábios passaram suas vidas inteiras tentando aceitar.
Fonte: http://noticias.uol.com.br
Comentários