Na contramão do mercado – Por Pe. Alfredo J. Gonçalves
Deus não usa balança para
equilibrar falhas e pecados, de um lado, perdão e graça, do outro. Também
parece não conhecer certas novidades modernas, tais como o relógio, o preço, o
metro, o cálculo.
Definitivamente, como assegura Antonietta Potente (La
religiosità della vita – una proposta alternativa per abitare la storia), Deus
não é um matemático, no sentido popular do termo. No exercício da justiça, não
trabalha com o adjetivo "distributivista”. Prevalecem antes a compaixão, a
misericórdia e a bondade.
"Transborda um poema do meu coração”, diz o
salmo (Sl 44/45). Tudo transborda em grau infinito, gratuito e incomensurável
na justiça de Deus. Trata-se de algo incompreensível para a inteligência
humana, finita por natureza.
Na travessia histórica do ser
humano pela face da terra, em especial no ocidente modernizado, industrializado
e urbanizado, as marcas da ciência e do iluminismo deixaram rastros de um
conceito de tempo e espaço contados, respectivamente, em milímetros e segundos.
Semelhante visão de mundo, onde os sinais cadenciados da natureza cedem lugar
ao ritmo preciso da máquina, a linguagem cotidiana se converte em números,
porcentagens, estatísticas, pesquisas, quadros comparativos, e assim por
diante. O som ritmado do motor, o tic-tac do relógio e a luz elétrica dão as
coordenadas dos batimentos cardíacos da história.
Não há lugar para acompanhar a
trajetória do sol, as fases da lua ou os desenhos das estrelas. Menos ainda
para admirar o milagre do plantio e da colheita, que faz a vida se renovar a
partir dos segredos ocultos no ventre da terra. Tampouco para levantar de manhã
ao som do galo, dos pássaros ou do sino da Igreja mais próxima.
As últimas
frases trazem embutido o ranço de um saudosismo bucólico, é bem verdade, mas
também alertam para uma aceleração vertiginosa do tempo, para o estreitamento
do espaço e para a abolição da noite. Impõe-se velocidade sem precedentes que,
em não poucos casos, atropela sentimentos, lágrimas e risos, além de inibir a
capacidade do êxtase e da contemplação. Como um carro desenfreado que semeia
feridos sem conta à beira da estrada.
Impulsionado pelos avanços
científicos e tecnológicos, o mercado gerou um imperativo que a tudo e a todos
subjuga. É preciso investigar, conhecer, dissecar. Instalou-se uma sofreguidão
inédita para desvendar as leis que regem a natureza, o universo, a história e o
corpo humano. O conhecimento adquire status de permanente inovação.
Na
hierarquia de valores, "a sede de novidades” suplantou e fez submergir o
legado da tradição, para utilizar a frase de abertura da carta encíclica Rerum
Novarum, publicada em maio de 1891, pelo papa Leão XIII. Logo adiante, o texto
do pontífice refere-se ainda à "agitação febril” que domina os tempos
atuais, no auge da Revolução Industrial.
Agitação febril em dupla dimensão:
surgimento progressivo de chaminés em cidades como Manchester, Liverpool e
Londres, na Grã-Bretanha, mas também em Paris, Berlim e Milão, no continente
europeu, e ainda em Detroit, Chicago e Nova York, no outro lado do Atlântico;
e, por outro lado, a febre insaciável dos produtos inovadores. Nesse cenário
marcado pelo turbilhão do progresso científico-tecnológico, mais que uma sábia
e prudente continuidade com a herança deixada pelas gerações e épocas
anteriores, prevalece muitas vezes uma pura e simples ruptura.
Ruptura que se atenua ou se
acentua de acordo com a história dos diferentes países, com as exigências do
modelo capitalista de produção ou com os anseios do ter em detrimento do ser. O
ciclo incansável da produção-comercialização-consumo adquire graus e ritmos
diversos. O novo "latifúndio do conhecimento”, hoje acrescido pela
revolução da informática, se encarrega de difundir as novidades e os modismos,
revestidos sempre de imagens e embalagens, sons e luzes extraordinariamente
sedutoras. Mas não só: além da difusão de produtos inéditos, os especialistas
do marketing, da propaganda e da publicidade, expandem, aprofundam, multiplicam
e criam necessidades.
A realização pessoal e
profissional passa a depender do que temos, usamos, aparentamos, compramos... A
capacidade de consumo, quase que de forma mecânica e automática, converte-se no
caminho mais curto para a felicidade. Ou infelicidade, no caso da falta de
recursos.
Eis a contradição: o mercado e os governos, seus capatazes,
incentivam a compra, mas o desemprego, subemprego e baixos salários limitam o acesso.
Socializa-se o fascínio pelas novidades da última moda, mas privatiza-se a o
alcance às mesmas. Frente à avalanche interminável de produtos, desencadeia-se,
ao mesmo tempo, a expectativa e a frustração de chegar até eles.
Daí que, para
a população de baixa renda, os shopping-centers tornam-se muitas vezes lugares
de passeio, para encher os olhos e sair de mãos vazias. Tarde nos damos conta
de que poucas coisas são realmente necessárias para uma vida feliz!
Evidentemente, não podemos
desconhecer a popularização e democratização dos benefícios do progresso
científico e tecnológico. Basta elencar os avanços na área do conforto pessoal
e familiar, no interior das casas; no campo da medicina, destaca-se o aumento
da expectativa de vida, bem como o acesso gradual à melhor qualidade da mesma;
na esfera das relações humanas, é notório o melhoramento das comunicações, dos
transportes e da inclusão digital.
Tudo isso, entretanto, carrega um estigma
difícil de extirpar. Se é verdade que alarga o horizonte da cultura e da
civilização, também é certo que gera uma contradição interna, ao reproduzir,
simultaneamente, acúmulo e concentração de um lado, escassez e exclusão do
outro.
Além do mais, alguns exemplos são
eloquentes. O automóvel foi inventado para facilitar a mobilidade humana, mas
atualmente, em muitas metrópoles, seu uso exagerado vem conduzindo ao
imobilismo de gigantescos congestionamentos. Os meios de comunicação surgiram
com o objetivo de aproximar pessoas, fatos e culturas, mas o acesso
indiscriminado aos mesmos tende a criar curtos-circuitos de incomunicação,
especialmente nos contatos pessoa-a-pessoa, cara-a-cara, olho-no-olho.
Os
remédios aliviam dores, curam infecções regulam enfermidades, mas são
conhecidas as mortes por overdose, o que revela a linha estreita entre remédio
e droga. Fala-se hoje em dia em produtos ecológicos, economia verde, proteção
do meio ambiente, mas tudo isso não passa de uma roupagem nova sobre velhos
estratagemas do mercado para maquiar e envernizar bens já conhecidos.
Enfim, os
sistemas de segurança, cada vez mais numerosos, diversificados e sofisticados,
acabam saturando e gerando o efeito colateral do medo e do cárcere no interior
da própria casa. Como desatar tais nós? Aqui os desafios são grandes e
complexos.
O fato conclusivo é que a
civilização ocidental, fortemente alicerçada na economia de mercado, deixa
pouca margem à gratuidade. Do ponto de vista material, a busca do lucro, da
ascensão social e do acúmulo mutila qualquer projeto de voluntariado. Já de um
ponto de vista cultural e espiritual, a atitude de contemplação, meditação,
reflexão e oração são facilmente substituídas por uma ansiedade mórbida do
fazer e do produzir, numa correria e num ritmo alucinados. As obras sociais,
por exemplo, parecem depender mais de nossos esforços e méritos (quando não
unicamente deles) do que da ação de Espírito na vida e na história.
Em lugar da
serenidade do camponês que, após preparar o terreno e lançar a semente, dorme
tranquilo esperando que a natureza faça o resto, nós tendemos a plantar e
esperar logo a colheita. Acumulamos uma dupla tarefa que, em geral, levará ao
estresse e ao cansaço físico, emocional e psíquico.
Na base dessa visão capitalista e
ocidentalizada está o conceito amplamente divulgado de que "time is money”
(Benjamin Franklin). Segundos e milímetros se convertem em centavos, horas e
metros em dólares, dias e quilômetros em milhões. O cifrão, o sobe-e-desce da
bolsa de valores, a taxa de juros e a cotação da moeda tomam o lugar da fé, da
esperança e da caridade.
O olhar fixo nos indicadores econômicos encobre a
inquietude de corações sedentos, desejosos de repousar na paz da Casa de Deus.
De fato, o Deus da misericórdia e da gratuidade cede o posto ao deus
lucro-capital. O afã do acúmulo impede a serenidade e a confiança. Esquecemos a
sabedoria oculta na frase do escritor francês Alexandre Dumas, em O Conde de
Montecristo: "para todos os males há dois remédios: o tempo e o silêncio”.
Fonte: http://www.adital.com.br
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