A mística católica e o desafio inter-religioso – Por Maria Clara Lucchetti Bingemer
A mística inter-religiosa vai se
firmando hoje como nova e importante área dentro das ciências da religião.
E
isto certamente tem grandes e surpreendentes repercussões na experiência
mística cristã dos tempos atuais e na releitura das experiências místicas
cristãs de todos os tempos. Esperamos que, seguindo estes caminhos, possamos chegar
se não a um novo paradigma, ao menos talvez a um paradigma muito antigo e mesmo
primordial que hoje, revisitado, se levanta com nova força, novo rosto, e chega
por novas vias ao sentimento religioso nosso e de boa parcela do povo de
Deus.
Em um momento da história e da
vida da Igreja em que se encontram tantas perplexidades e muitas vezes,
inclusive, inumeráveis confusões quanto à questão da espiritualidade e da
experiência espiritual que seria própria ao cristianismo, cremos que a reflexão
que aqui fazemos poderia talvez ajudar ou pelo menos provocar um aprofundamento
desta questão hoje vital: a possibilidade da autêntica experiência de Deus em
outras tradições religiosas e a influência que tais experiências tiveram na
configuração da experiência mística cristã.
Sendo todas as experiências
autenticamente místicas distintas formas de aproximação do Mistério Fundamental
que é Deus, uma teologia cristã das religiões ou da mística inter-religiosa
implicará o reconhecimento da legitimidade destes diversos caminhos ou
percursos em direção à comunhão com o mesmo Mistério Fundamental.
A mística cristã hoje é diretamente interpelada
pelas experiências místicas e espirituais de outras religiões. Os numerosos
estudos que vão mais e mais aparecendo neste campo comprovam o que acabamos de
afirmar.
Mais: pode-se perceber nas
experiências e escritos de muitos dos maiores místicos cristãos a presença
autêntica e real de intuições, imagens e contornos encontradiços igualmente em
outras tradições. Isto não faz com que tal mística deixe de ser cristã ou perca
em autenticidade, mas demonstra que cada pessoa é situada num determinado
contexto cultural e recebe a influência deste sem disto tomar ciência a nível
consciente.
Demonstra igualmente que a experiência de Deus que se encontra no
coração mesmo da identidade da mística cristã não se torna diminuída ou difusa
ou menos consistente pela influência que recebe de alhures.
Mas, pelo contrário, dá e alcança toda a sua medida ao encontrar
elementos de sintonia provindos de seres humanos que provaram profundamente a
proximidade e o amor de Deus, ainda que oriundos e filiados a outras tradições
religiosas. Existe, sem dúvida, algo que apenas a religião do outro, na sua
diferença, pode ensinar, ou transmitir: às vezes, um ponto ou uma dimensão que
vamos descobrir na nossa experiência religiosa e do qual não nos havíamos dado
conta.
Por aí desejaríamos que se desse
nosso percurso. Queremos destacar, dentro daquilo que afirmamos, algumas interfaces que acontecem nas
experiências de alguns místicos cristãos em confronto com outras religiões monoteístas: o judaísmo e o
islã.
No centro destas três tradições
está presente um único Deus, e isso nos fornece, parece-nos, material mais
propício e terreno menos movediço para
refletir num campo onde ainda quase tudo está por fazer. A experiência mística, no fundo, não é senão
a experiência do amor que revolve as profundezas da humanidade pela presença e
a sedução da alteridade.
Quando a alteridade é a religião do outro, há todo um
caminho a ser feito em direção a uma comunhão que não suprime as diferenças,
enriquecedoras e originais, mas encontra, na sua inclusão, um “novo”, no qual
se podem experimentar coisas novas do mesmo Deus. Essa inclusão, a nosso ver,
pode ser percebida de forma mais explícita em termos do entrelaçamento das
diferentes experiências místicas das três tradições mencionadas.
Tendo em comum a crença num só
Deus e acontecendo igualmente em regiões e culturas onde a proximidade e a
convivência facilitam e mesmo convidam à intersecção, oferecem material de
grande interesse para o que aqui nos propomos refletir.
A experiência de um
Deus pessoal e imanipulável, que as três religiões monoteístas ofereceram e
oferecem como tesouro aos seus místicos, permite que entre estas três tradições
se instaurem um aprendizado fecundo, o qual, nos dias de hoje, pode enriquecer
e efetivamente enriquece não só a experiência mística cristã em si mesma como,
também, a reflexão teológica que sobre ela se faz.
* Maria Clara Lucchetti Bingemer,
professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, é autora de 'Crônicas de cá
e de lá' (editora Subiaco), que pode ser encomendado diretamente à escritora
pelo e-mail agape@puc-rio.br
Fonte: http://www.jb.com.br
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