O Estado não pode inquirir a verdade das religiões - Por Néviton Guedes
Pode o Estado questionar a
sinceridade, ou até mesmo, por assim dizer, o caráter absurdo de verdades e
revelações religiosas?
É certo que, a partir de um olhar
secular, não é difícil questionar a sinceridade de alguns credos religiosos,
sobretudo, quando não se é religioso, ou quando professamos outra religião. Na
verdade, não são poucos aqueles que não se dispensam de julgar as religiões dos
outros. Mais do que isso, vez por outra, confronto-me, na condição de professor
de Direito Constitucional, com alunos e até profissionais do Direito
(advogados, juízes e promotores) que entendem seja absolutamente legítimo ao
Estado, em determinadas situações, questionar o absurdo ou a sinceridade do
conteúdo de determinadas crenças religiosas.
Naturalmente, ninguém se põe a
possibilidade de questionar, em sua sinceridade, eventual “absurdidade” dos
dogmas das chamadas grandes igrejas institucionalizadas. A possibilidade, como
regra, é sugerida contra as pequenas igrejas, aquelas não reconhecidas
institucionalmente. Há situações em que é quase impossível não sucumbir ao
desejo de uma intervenção estatal. Mas isso seria correto?
No caso United States v. Ballard,
a Suprema Corte norte-americana teve ocasião de confrontar instigante caso
concreto, em que um dos líderes de um movimento designado “I am”, Donald
Ballard, juntamente com outros de seus representantes, afirmando-se mensageiros
de um tal Saint Germain (que supostamente teria sido Gary Ballard, pai de
Donald, quando vivo) e, por isso, portadores de poderes sobrenaturais,
inclusive o de curar doenças classificadas como incuráveis, remetiam
correspondências com mensagens divinas e ensinamentos do movimento “I am” às
pessoas mediante a contrapartida em forma de doações.
Foram, por isso mesmo,
denunciados sob a acusação de estelionato, já que, segundo o Ministério
Público, os réus sabiam perfeitamente da fraude contida nas mensagens por eles
encaminhadas, sendo que as utilizavam, pura e simplesmente, com o objetivo de
arrecadar dinheiro para a sua própria fortuna pessoal.
A Corte de primeira instância
apenas submeteu ao júri a questão de saber se os próprios réus sabiam da
falsidade de seus propósitos, enquanto a Corte de apelação reformou a decisão,
entendendo, que era necessário submeter ao júri a questão da verdade do próprio
conteúdo religioso do movimento “I am”.
Em síntese, no julgamento
inicial, o júri foi orientado para não considerar (julgar) as crenças
religiosas de Ballard, devendo determinar apenas se o réu acreditava que ele de
fato detinha a habilidade de curar outras pessoas. Já a Corte de segundo grau
conferiu o poder ao Júri (Estado) de julgar as próprias crenças da religião
professada pelos acusados.
A Suprema Corte reverteu essa
decisão para firmar a convicção de que o Estado e seus Tribunais jamais poderiam
investigar a verdade de uma determinada crença. Portanto, tudo o que importava
aos jurados era saber se os acusados acreditavam de boa-fé naquilo que
professavam. Com isso, a Suprema Corte impediu todos os júris e por eles, o
Estado de questionarem a própria sinceridade ou o caráter absurdo das crenças
religiosas (em razão de questão procedimental, quando o caso voltou à Suprema
Corte, ante o afastamento de uma mulher do Júri, o Tribunal anulou o próprio
indiciamento dos acusados) [1].
Nada obstante, aceitando-se que
Estado não possa sindicar o absurdo, ou não, de verdades religiosas, enquanto
verdades teológicas institucionalizadas, parece-me ainda problemático que o
Estado possa sindicar ou inquirir, como sugerido em United States v. Ballard, em
algum momento, a sinceridade (individual) daqueles que as professam. Como
afirmou Robert H. Jackson, em voto divergente, mesmo ali “teria vindo muito
perto de ser uma investigação sobre a verdade de uma convicção religiosa”.
De fato, apesar da tentação de
uma resposta (secular) positiva a possibilidade de, pelo menos, inquirir sobre
a verdade individual de quem, por exemplo, alcança dinheiro com religião, o
fato é que, na correta visão do justice Jackson, “processos dessa espécie
poderiam facilmente degenerar para perseguições religiosas”.
Por mais que seja difícil, o
Estado democrático e liberal tem que pressupor, como firmaram a Suprema Corte e
a doutrina norte-americanas, a sinceridade de qualquer credo ou igreja [2]. E
mais do que isso, tem que pressupor a sinceridade de seus crentes.
Desconsiderando a má impressão, o
mau gosto, a sensação de absurdo que alguns dogmas de qualquer religião, ou
credo, muitas vezes provocam nos não-crentes, o fato verdadeiro é que não tem o
Estado alternativa, se não quiser promover ódio e intolerância, que não seja a
de aceitá-los. Portanto, por mais absurda que nos seja uma manifestação
religiosa, apocalíptica, transcendente, ou dogmática, e mesmo com caráter para
muitos caricato de “uma luta eterna contra o mal ou contra os demônios”,
consubstanciada, inclusive, na liturgia de muitas igrejas, tudo isso ficaria
excluído de qualquer manifestação interventiva do Estado.
De fato, por compor aquilo que os
seus adeptos e teólogos denominariam, sem dificuldade, como o núcleo teológico
essencial de sua manifestação religiosa, todos esses dogmas, protegidos pela
liberdade religiosa e a neutralidade religiosa do Estado, por mais absurdos que
pareçam aos não-crentes, tornam duvidosa a legitimidade de o Estado intervir,
especialmente, com o recurso a uma pré-formativa (interna e imanente)
(de)limitação do que considera como legítima e verdadeira manifestação da
liberdade religiosa.
Qual a exceção a isso? Só a
enxergo na eventual colisão e desde que grave, da liberdade religiosa com
outros direitos fundamentais. De fato, exceção à possibilidade de uma concreta
manifestação de conduta, expressão ou liturgia de algum credo entrar em
colisão, de forma grave e consistente, com algum outro bem constitucional, como
seria a vida, a dignidade da pessoa humana, ou a liberdade religiosa de outras
pessoas, o Estado não tem legitimidade para julgar, aprovando ou reprovando,
conteúdo religioso de qualquer igreja ou credo. Não pode o Estado, a partir de
critérios teológicos seus, reprovar a conduta, o conteúdo, as manifestações ou
liturgias das diversas religiões.
Pior do que o Estado ter alguma
religião seria um Estado que, do alto de alguma teologia, se pusesse a julgar a
legitimidade das verdades religiosas.
Assim, a cláusula da neutralidade
do Estado impede-o, ou a qualquer de seus órgãos, de investigar a verdade ou a
falsidade, ou até mesmo a absurdidade do conteúdo de crenças e religiões,
aliás, o que parece óbvio, pois, como se sabe, todas as Igrejas e crenças, das
menores (marginais) e inorgânicas às institucionalizadas e oficialmente
aceitas, baseiam-se em revelações e verdades que, já antecipadamente colocadas
como dados da fé, e não da razão, não estão predispostas a submeter-se a
qualquer teste de verificação científica [3].
De uma forma mais prática, aliás,
parece difícil acreditar que, diante da liberdade religiosa, qualquer Estado
democrático e constitucional, nos moldes ocidentais, irá, por exemplo, impor
aos líderes de Igrejas institucionalizadas (católica, protestante, judaica,
etc.) que comprovem a sua fé na crença que professam para só, então, terem
legitimidade de solicitar contribuições de seus fiéis. Portanto, se como regra
tal questão não pode ser posta às igrejas reconhecidas como legítimas e
institucionalizadas, parece duvidoso, do ponto de vista da liberdade religiosa
e da igualdade de tratamento entre igrejas e credos, que se impõem ao Estado
pela cláusula da neutralidade religiosa, que possa sê-lo em relação às igrejas
e credos considerados marginais.
Deixo claro que, nem de longe,
essas questões me parecem de todo resolvidas. Talvez sejam questões que
permanecerão sempre sem solução definitiva. De fato, se o Estado não atuar para
intervir pode ser acusado de contemplar a anarquia. Se intervir, corre o risco
de comprometer a distância exigida pela sua condição de Estado laico e neutro.
Mas, como, certamente, intuirão
todos, sequer há grande novidade nesse paradoxo. Em 1976, em seu livro Estado,
Sociedade, Liberdade (Staat, Gesellsachaft, Freiheit, p. 60), Ernst-Wolfgang
Böckenförde, professor da Universidade de Freiburg e ex-juiz do Tribunal
Constitucional alemão, formulava assim o que ficou conhecido como o “Dilema de
Böckenförde” (Böckenförde-Diktum): “O Estado liberal (democrático) e secular
vive de pressupostos que ele mesmo não poder garantir”.
No dizer de Böckenförde, esse é o
grande dilema que o Estado democrático e sua Constituição inevitavelmente
teriam que enfrentar em nome da liberdade: de um lado, o Estado democrático de
Direito só pode existir quando a liberdade religiosa que promove e garante tem
existência a partir “de dentro”, isto é, a partir da ordem constitucional da
própria comunidade nacional; de outro, se quiser garantir essa mesma liberdade
das crenças religiosas, o Estado democrático não pode se valer dos meios de
coerção ou de intervenção de autoridade sem correr o risco de abrir mão de sua
“liberalidade” e da distância secular como Estado laico.
Por trás do dilema, a seguinte
encruzilhada: ou o Estado democrático ignora completamente a religião e corre,
com isso, o risco de perder, além do “controle” sobre o próprio exercício da
liberdade religiosa, a força inegável de coesão social que revelam as
religiões, ou passa a promover com algumas intervenções a garantia da liberdade
religiosa, correndo o risco, contudo, de comprometer sua distância e laicidade.
Uma resposta fácil ao problema
será sempre uma resposta de ingênuos. Aqui, mais uma vez a inteligência do
sábio: “Para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante
e completamente errada.”
Notas
[1] Em 322 U.S. 78 (1944), United States v.
Ballard; cfe. também J. Nowak/ R.
Rotunda. Constitutional Law, 1510/13. Geoffrey R. Stone et al. Constitutional
Law, p. 1500; ver também Frazee v. Illinois Department of Employment Security,
489 U.S. 829 (1989).
[2] Em 322 U.S. 78 (1944), United States v.
Ballard .
[3] Em 322 U.S. 78 (1944), United States v.
Ballard.
Néviton Guedes é desembargador
federal do TRF da 1ª Região e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.
Fonte: http://www.conjur.com.br
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