Por uma nova moralidade sexual. Entrevista com Todd Salzman e Michael Lawler
"Dentro de relacionamentos
conjugais heterossexuais, atos sexuais férteis ou inférteis do tipo reprodutivo
e não reprodutivo podem ser unitivos e, portanto, morais”, constatam Todd
Salzman e Michael Lawler, autores do livro:
A pessoa sexual (São Leopoldo:
Unisinos, 2012)
na entrevista que concederam, por e-mail à IHU On-Line.
Segundo eles, "muitas pessoas que são gays, lésbicas, bissexuais e
transgênero (LGBT), suas famílias e seus amigos e amigas são afastadas da
Igreja Católica por causa da afirmação antropológica de que a inclinação
homossexual é ‘objetivamente desordenada’”. Os pesquisadores analisam, ainda, a
resistência e suspeita eclesiástica para com temas relacionados à sexualidade
humana. Em seu ponto de vista, essa é uma longa história nas tradições cristãs.
"Platão e Aristóteles suspeitavam profundamente do prazer sexual, e essa
suspeita era compartilhada pelos estoicos, que tiveram a maior influência sobre
a abordagem cristã da sexualidade e restringiam os atos sexuais ao matrimônio
e, mesmo no matrimônio, a atos sexuais abertos para a procriação”.
Salzman e
Lawler reivindicam uma "nova moralidade, enraizada numa antropologia
renovada, que se foca em pessoas e não em atos, em relacionamentos e não na
biologia, no real e vivencial e não na percepção de um ideal, em princípios e
virtudes (como, por exemplo, a justiça e o amor) e não em normas absolutas,
ajudaria a recuperar a credibilidade da igreja para os fiéis, para quem deixou
a igreja e para quem só tem experiências e percepções externas da igreja”.
O
livro: A pessoa sexual foi traduzido para a língua portuguesa e publicado, em
2012, pela Editora Unisinos. A entrevista foi publicada na
revista IHU On-Line, no. 399, 20-08-2012. Pela sua atualidade, a reproduzimos
novamente.
Todd Salzman é Ph.D pela
Universidade Católica de Louvain, na Bélgica. Michael Lawler é graduado em
Matemática pela Universidade de Dublin e em Teologia pela Pontifícia
Universidade Gregoriana – PUG, em Roma. É Ph.D em Teologia Sistemática pelo
Instituto Aquinas de Teologia, em Saint Louis. Ambos lecionam no departamento
de Teologia da Universidade Creighton, nos Estados Unidos.
Confira a entrevista:
IHU On-Line – Como podemos
compreender a "antropologia católica renovada” a qual vocês se propõem na
obra A pessoa sexual?
Todd Salzman e Michael Lawler – Extraindo percepções da
tradição católica, da Escritura, das disciplinas seculares do conhecimento
moral e da experiência humana, há seis dimensões fundamentais da antropologia
católica renovada no livro A pessoa sexual (The sexual person).
A primeira e mais fundamental
dimensão é a mudança de ênfase na própria tradição católica que passou da
pessoa sexual considerada primordialmente como pessoa procriadora para a pessoa
sexual considerada primordialmente como pessoa relacional.
A segunda dimensão, que extrai
percepções das ciências biológicas e sociais, é uma mudança na percepção da
orientação heterossexual como normativa e a orientação homossexual ou bissexual
como "objetivamente desordenada”, como ensina o magistério, que passou para
a concepção da orientação sexual, heterossexual, homossexual ou bissexual, como dimensão intrínseca da pessoa sexual e, portanto, "objetivamente
ordenada” para a pessoa heterossexual, homossexual ou bissexual,
respectivamente.
A terceira dimensão é uma compreensão
holística e integrada da pessoa sexual considerada em termos relacionais,
físicos, emocionais, psicológicos e espirituais.
A quarta dimensão postula um
desejo fundamental das pessoas de estarem em relacionamento, incluindo o
relacionamento sexual, com outra pessoa. Esse desejo se realiza num complexo de
relacionamentos que o magistério designa como complementaridade.
Complementaridade quer dizer que certas realidades formam uma unidade e
produzem um todo que nenhuma delas produz sozinha.
Na descrição do magistério, a
complementaridade sexual aponta para o matrimônio heterossexual como o
relacionamento sexual estável exclusivo entre um homem e uma mulher.
A quinta dimensão expande a
descrição da complementaridade sexual por parte do magistério indo além do
casamento heterossexual entre homem e mulher e postulando um desejo fundamental
de complementaridade holística na pessoa sexual ao integrar a orientação sexual
como uma dimensão intrínseca da antropologia sexual. A complementaridade
holística inclui a orientação sexual, a complementaridade pessoal e biológica e
a integração e manifestação de todas as três na pessoa sexual.
A sexta dimensão postula que
"atos sexuais verdadeiramente humanos” realizam as pessoas sexuais. Um ato
sexual verdadeiramente humano é um ato em concordância com a orientação sexual
de uma pessoa que facilita uma valorização, integração e partilha mais profunda
do si mesmo (self) corporificado da pessoa com outro si mesmo corporificado
tanto em amor como em justiça (amor justo).
A conclusão normativa que se
segue dessas seis dimensões antropológicas da pessoa sexual é a seguinte:
alguns atos homossexuais e heterossexuais, aqueles que cumprem as exigências de
complementaridade holística e amor justo, são verdadeiramente humanos e morais;
e alguns atos homossexuais e heterossexuais, aqueles que não cumprem as
exigências de complementaridade holística e amor justo, não são verdadeiramente
humanos e são imorais.
IHU On-Line – Em que aspectos é
preciso uma nova moralidade conjugal em relação à contracepção, coabitação,
homossexualidade e técnicas de reprodução artificial?
Todd Salzman e Michael Lawler –
Necessitamos de uma nova moralidade conjugal para tornar a ética sexual
católica mais positiva e digna de crédito para as pessoas modernas. Essa
moralidade terá implicações normativas para todas as dimensões antropológicas
acima mencionadas. Uma nova moralidade conjugal precisa enfatizar a pessoa
relacional mais do que a pessoa procriadora e separar a ligação intrínseca e
inseparável entre os sentidos unitivo e procriador do ato sexual sustentada
pela Humanae vitae.
A obra A pessoa sexual oferece uma
justificação metodológica e antropológica para uma nova moralidade conjugal.
Tomamos como base e desdobramos as implicações lógicas e normativas da nova
moralidade conjugal que se refletem na evolução radical do ensino moral
conjugal do catolicismo ocorrida no Concílio Vaticano II . No Concílio, Gaudium
et spes, a Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo de Hoje, eliminou a
linguagem da hierarquia das finalidades do matrimônio. Antes do Vaticano II,
declarava-se que a procriação era a finalidade primordial e a união entre os
cônjuges, a finalidade secundária do matrimônio. Na Gaudium et spes, essa
linguagem hierárquica a respeito das duas finalidades do casamento é rejeitada;
as finalidades unitiva e procriadora são vistas como finalidades iguais no
relacionamento conjugal. Em A pessoa sexual, sustentamos que a finalidade
procriadora do matrimônio, o que a Humanae vitae especifica como o sentido
procriador do ato sexual, isto é, abertura para a transmissão da vida, é
moralmente sem sentido no caso de casais férteis casados que optam por não
procriar por razões que tanto o papa Pio XII como o papa Paulo VI chamam de
"razões sérias”, mesmo durante todo o casamento, e no caso de casais,
igualmente casados, que são estéreis ou estão na pós-menopausa, que não podem
procriar durante todo o matrimônio por razões fisiológicas. Para esses casais,
a finalidade unitiva do casamento ou o sentido unitivo do ato sexual é a
finalidade primordial ou até exclusiva do matrimônio ou o sentido primordial ou
até exclusivo do ato sexual. Postular a finalidade unitiva do casamento ou o
sentido unitivo do ato sexual como a finalidade primordial ou até exclusiva do
matrimônio ou o sentido primordial ou até exclusivo do ato sexual numa nova
moralidade conjugal tem implicações profundas para as relações sexuais e as
normas que orientam essas relações.
Atos morais e imorais
Em primeiro lugar, dentro de
relacionamentos conjugais heterossexuais, atos sexuais férteis ou inférteis do
tipo reprodutivo e não reprodutivo podem ser unitivos e, portanto, morais. Essa
norma reafirma o que os casais casados já vivenciam; atos sexuais do tipo
reprodutivo e atos sexuais do tipo não reprodutivo podem ser unitivos para os
casais.
Em segundo lugar, visto que atos
sexuais heterossexuais do tipo não reprodutivo podem ser unitivos, a
complementaridade heterogenital, que é necessária para atos sexuais do tipo
reprodutivo, não é mais essencial para realizar a finalidade unitiva do
casamento ou o sentido unitivo do ato sexual. Isso quer dizer que atos sexuais
homossexuais do tipo não reprodutivo também podem ser unitivos.
Em terceiro lugar, a nova
moralidade conjugal levanta as seguintes perguntas: se a finalidade unitiva do
casamento ou o sentido unitivo do ato sexual é primordialmente fundamental para
um relacionamento conjugal, quais são as implicações desse desenvolvimento para
a moralidade conjugal? Visto que casais homossexuais podem vivenciar e
vivenciam efetivamente o sentido unitivo do ato sexual em atos sexuais não
reprodutivos, dever-se-ia permitir que eles se casem? Ou então: o casamento é
essencial para realizar o sentido unitivo em atos sexuais? Podem casais, heterossexuais, homossexuais ou bissexuais, que não são casados realizar o
sentido unitivo do ato sexual?
Em A pessoa sexual, defendemos
uma nova moralidade conjugal em que a finalidade unitiva do casamento ou o
sentido unitivo do ato sexual é o fundamento para um relacionamento conjugal.
Essa nova moralidade conjugal justifica normas que admitem a moralidade da
contracepção, da coabitação estável iniciada com o compromisso de casar-se, da
homossexualidade e da reprodução artificial, dependendo do sentido desses atos
para os relacionamentos. Repetimos nossa conclusão normativa aqui: alguns atos
homossexuais e heterossexuais, aqueles que cumprem as exigências de
complementaridade holística e amor justo, são verdadeiramente humanos e, por
conseguinte, morais; e alguns atos homossexuais e heterossexuais, aqueles que
não cumprem as exigências de complementaridade holística e amor justo, não são
verdadeiramente humanos e, por conseguinte, são imorais.
IHU On-Line – Em que sentido uma
nova moralidade nesses temas traria outros horizontes à Igreja Católica junto
aos seus fiéis?
Todd Salzman e Michael Lawler –
Acreditamos, e os dados das ciências sociais mostram, que as atuais normas
sexuais católicas, que condenam absolutamente a contracepção, o sexo
pré-matrimonial, atos homossexuais, a masturbação e a maioria das tecnologias
reprodutivas carecem de credibilidade entre a vasta maioria dos fiéis no mundo
moderno. Além disso, acreditamos que muitas pessoas que são gays, lésbicas,
bissexuais e transgênero (LGBT), suas famílias e seus amigos e amigas são
afastadas da Igreja Católica por causa da afirmação antropológica desta de que
a inclinação homossexual é "objetivamente desordenada”. Essa afirmação é
percebida como uma negação fundamental de que as pessoas LGBT sejam criadas à
imagem e semelhança de Deus. Uma nova moralidade, enraizada numa antropologia
renovada, que se foca em pessoas e não em atos, em relacionamentos e não na
biologia, no real e vivencial e não na percepção de um ideal, em princípios e
virtudes (como, por exemplo, a justiça e o amor) e não em normas absolutas,
ajudaria a recuperar a credibilidade da Igreja para os fiéis, para quem deixou
a Igreja e para quem só tem experiências e percepções externas da Igreja. Além
disso, uma nova moralidade poderia ajudar a curar indivíduos LGBT, seus pais,
famílias e amigos, e todas as pessoas que foram afastadas pelos ensinamentos
sexuais do magistério, especialmente pelos ensinamentos baseados em afirmações
antropológicas sexuais mal informadas, como o ensinamento de que a orientação
homossexual é "objetivamente desordenada”.
IHU On-Line – Por que há tanta
resistência dentro da Igreja Católica nesses temas?
Todd Salzman e Michael Lawler –
Antes de responder a essa pergunta, e tendo em vista que ela tem implicações
para perguntas subsequentes, é importante fazer uma distinção terminológica. O
termo "Igreja Católica” é usado em ao menos dois modos diferentes. Ele
pode designar o que o Vaticano II chamou de povo de Deus, os bispos, sacerdotes
e leigos em conjunto; ou pode designar uma parte muito mais estreita da igreja,
a saber, o magistério ou a igreja magisterial. A resistência em relação a esses
temas, à qual esta pergunta faz referência, vem, em grande medida, do
magistério; a vasta maioria do povo de Deus não parece ter a resistência a
esses temas que tem o magistério.
A resistência e suspeita
eclesiástica para com temas relacionados à sexualidade humana tem uma longa
história nas tradições cristãs. Platão e Aristóteles suspeitavam profundamente
do prazer sexual, e essa suspeita era compartilhada pelos estoicos, que tiveram
a maior influência sobre a abordagem cristã da sexualidade e restringiam os
atos sexuais ao matrimônio e, mesmo no matrimônio, a atos sexuais abertos para
a procriação. Suas suspeitas em relação ao prazer sexual e sua ênfase de que
todas as relações sexuais devem ser relações sexuais matrimoniais visando à
procriação foram incorporadas em concepções cristãs sobre a sexualidade humana.
Embora Agostinho, que muitas vezes é chamado de doutor do matrimônio cristão,
reafirmasse que a sexualidade e a atividade sexual são boas porque foram
criadas boas pelo Deus bondoso, também sustentava que a bondade delas é
ameaçada pelo prazer associado à relação sexual e pela concupiscência
engendrada pelo pecado. Ele afirma que a atividade sexual no matrimônio é boa
quando sua finalidade é a procriação, e constitui um pecado venial quando,
"mesmo que seja com o cônjuge, [visa] satisfazer a concupiscência”. A
aversão católica ao prazer sexual atingiu seu ápice quando o papa Gregório
Magno baniu do acesso à igreja qualquer pessoa que apenas tivesse tido uma
relação sexual prazerosa. Em nossa opinião, o juízo de Brundage a respeito do
efeito da história da patrística é acurado: "O horror cristão ao sexo
colocou, durante séculos, uma pressão enorme sobre a consciência e a autoestima
dos indivíduos no mundo ocidental.” Essa pressão enorme continua até o presente
e se evidencia no foco do magistério na "ortodoxia pélvica” na igreja.
Portanto, as razões da resistência à discussão de questões sexuais na Igreja
Católica são, em grande medida, históricas.
Um tema silenciado
Elas também são de caráter
relacional e vivencial. Um sacerdócio celibatário não tem informações
vivenciais sobre o uso moral da sexualidade humana em relações sexuais justas e
amorosas. Essa falta de vivência, mesmo sem negar inteiramente o que o
magistério diz sobre a sexualidade humana, pode afetar negativamente as
reflexões teológicas sobre a sexualidade humana, a antropologia e as normas
deduzidas dessas reflexões e a disposição de travar diálogo com as pessoas que
têm informações vivenciais sobre relações sexuais morais e cujas reflexões
teológicas discordam das do magistério.
A combinação dessas razões cria
uma suspeita e um temor profundos tanto para com a sexualidade como para com
qualquer diálogo sobre pontos de vista alternativos, científica e teologicamente
fundamentados, sobre a sexualidade humana. Basta simplesmente examinar a
história do "silenciamento”, da "repreensão” ou da emissão de
"notificações” para teólogos e teólogas que contestaram o ensino católico
oficial sobre a sexualidade para perceber que esse é um tema sobre o qual o
magistério não quer dialogar.
IHU On-Line – Em que medida essa
resistência da Igreja Católica sobre tais assuntos é, em última instância, um
cerceamento da liberdade sobre os corpos e mentes?
Todd Salzman e Michael Lawler –
Não cremos que o magistério tenha uma política explícita de restrição da
liberdade dos corpos e mentes dos fiéis resistindo ao diálogo aberto e sincero
sobre questões de ética sexual, mas a postura rígida e autoritária que ele
assume sobre essas questões pode ter esse efeito. Ao ensinar o que ensinam
sobre questões sexuais, presumimos que as pessoas que ocupam o magistério
estejam seguindo sua consciência em relação a como entendem, interpretam e
aplicam as fontes do conhecimento moral (Escritura, tradição, disciplinas
seculares do conhecimento moral e experiência humana) às questões de ética
sexual. Infelizmente, o respeito pela consciência e por sua capacidade de
discernir a verdade em questões de ética sexual que concedemos ao magistério
não é retribuído na mesma moeda pelo magistério aos teólogos e aos fiéis em
geral. Essa ausência de reciprocidade pode, sem dúvida, ter o efeito de
restringir a liberdade das mentes ou consciências dos fiéis, e é uma violação
direta do ensinamento sobre a autoridade da consciência há muito estabelecido
na tradição católica.
Concordamos com o jovem Joseph
Ratzinger, agora papa Bento XVI, que, em seu comentário sobre as reflexões da
Gaudium et spes sobre a consciência, observa o seguinte: "Acima do papa
como expressão da reivindicação vinculante da autoridade eclesiástica ainda se
encontra a consciência da própria pessoa, que deve ser obedecida antes de
qualquer outra coisa, se necessário até contra a exigência da autoridade
eclesiástica. A consciência confronta [o indivíduo] com um tribunal supremo e
último, que, em última análise, está além da reivindicação de grupos sociais
externos, até mesmo da igreja oficial.”
Uma pessoa forma e informa sua
consciência com base no discernimento orante, informada pelas fontes do
conhecimento moral (Escritura, tradição, disciplinas seculares do conhecimento
moral e experiência humana), orientada pelo Espírito Santo e, talvez, por um
aconselhador competente e faz um juízo moral com base nesse processo. A
afirmação de Ratzinger sobre a consciência, que é uma expressão acurada do
ensino tradicional da igreja sobre a autoridade final da consciência, destaca o
fato de que a resistência do magistério ao diálogo sobre questões de ética
sexual com as pessoas que formaram e informaram sua consciência e chegaram a
conclusões diferentes sobre questões sexuais é uma fundamental falta de
respeito pela autoridade da consciência. O antigo aforisma parece se aplicar
absolutamente a questões sexuais: Roma locuta est, causa finita est (Roma
falou, o caso está encerrado). Nesse sentido, poder-se-ia dizer que o
magistério tenta restringir a liberdade da consciência e definir de maneira
estreita como as pessoas se expressam em atos sexuais corporais.
IHU On-Line – Qual é a
importância de se pensar uma antropologia católica renovada frente ao
recrudescimento da intolerância em "temas tabu” como a homossexualidade e,
ainda, a ordenação de homossexuais e mulheres?
Todd Salzman e Michael Lawler –
Cremos que essas reflexões são cruciais para fazer a igreja e o magistério
avançar em sua teologia e seu ensino sobre a sexualidade humana. Há
desdobramentos incríveis nas ciências sociais e biológicas no tocante à sexualidade
humana, e os teólogos e teólogas católicos precisam ter liberdade de se
envolver no diálogo com esses desdobramentos sem temer represálias magisteriais
para fazer avançar a pesquisa católica sobre questões muito importantes.
Atualmente, e por boas razões, há uma "cultura do medo” na igreja em
relação a escrever e ensinar qualquer coisa que questione o ensino magisterial
sobre "temas tabu” na ética sexual. Professores católicos, funcionários
diocesanos e até sacerdotes e bispos perderam seu emprego ou foram censurados
por dizer ou escrever coisas que contradizem ou até simplesmente levantam
perguntas a respeito de ensinamentos magisteriais sobre essas questões. A
atmosfera é medieval, opressiva, um abuso de poder e pecaminosa. Um bom exemplo
desse clima opressivo é a Carta Apostólica Ordinatio sacerdotalis, de João
Paulo II, sobre a questão da ordenação de mulheres ao sacerdócio, onde ele
afirma, sem provas, que a questão da ordenação de mulheres foi objeto de
ensinamento definitivo e não está mais aberta para debate ou discussão. Essa
postura contraria a intuição em termos tradicionais e teológicos. Se o
ensinamento é verdadeiro, como sustenta o magistério, pensar-se-ia que o debate
e discussão contínua tornaria essa verdade mais clara e evidente ainda. Encerrar
o debate e discussão nos parece ser uma postura opressora baseada no medo e um
sinal de que os argumentos não resistem a um exame científico, como é o caso no
ensinamento que proíbe a ordenação de mulheres.
A voz dos sem voz
Entretanto, mais importante do
que a necessidade de liberdade teológica para a reflexão sobre esses
"temas tabu” é a realidade de que muitas pessoas sofreram e continuam a
sofrer por causa das normas absolutas do magistério a respeito de temas sexuais
"tabu”. Elas se sentem afastadas e isoladas de sua Igreja e de seu Deus
por causa das normas absolutas que proscrevem atos contraceptivos ou
homossexuais, por exemplo, e por causa da antropologia que classifica a
orientação homossexual como uma "desordem objetiva”. Os teólogos e teólogas
têm não apenas um direito, mas especialmente uma responsabilidade de se
manifestarem pelas pessoas que não têm voz, que estão isoladas e afastadas. A
vocação do cristão de dizer a verdade ao poder e de ser uma voz dos sem voz
também se aplica ao teólogo e teóloga católica.
IHU On-Line – Em que medida essa
nova mentalidade que vocês propõem encontra espaço para discussão dentro da
Igreja Católica?
Todd Salzman e Michael Lawler –
Mais uma vez, isso depende de como se entende o termo "Igreja Católica”.
The sexual personrecebeu o prêmio da imprensa católica americana na categoria
livro, o primeiro lugar em teologia, em 2009. Ele foi resenhado muito
positivamente por teólogos e teólogas numa série de revistas teológicas
importantes no mundo inteiro. Recebemos numerosos e-mails de apoio de colegas
teólogos e pessoas leigas que nos agradeceram pelo livro, especialmente depois
que o Comitê de Doutrina da Conferência Episcopal dos Estados Unidos
"repreendeu” o livro em 2010. Na Igreja Católica como povo de Deus há
apoio, interesse e uma fome espiritual pela nova mentalidade que estamos
propondo.
Para a Igreja Católica como
magistério, a questão se coloca de modo inteiramente diferente. O Comitê de
Doutrina da Conferência Episcopal dos Estados Unidos repreendeu nosso livro em
2010. Mais recentemente, a Congregação para a Doutrina da Fé silenciou três
sacerdotes-teólogos irlandeses e emitiu uma "notificação” referente ao
livro Just love [Amor justo], da especialista em teologia moral Margaret
Farley, publicado em 2006, dois anos antes do nosso. Não sabemos ao certo se
haverá um silenciamento ou notificação semelhante, por parte da Congregação
para a Doutrina da Fé, em relação a The sexual personou a nosso novo livro,
Sexual ethics: a theological introduction, publicado pela Georgetown University
Press em 2012. Se isso não acontecer, não será porque as concepções do
magistério sobre essas questões estejam ficando "mais brandas”. Será, mais
provavelmente, porque somos homens leigos casados que estão fora do alcance do
magistério, que pode pressionar os bispos e/ou as ordens religiosas para
"silenciar” religiosos e religiosas, mas não leigos.
Apesar da falta de abertura pura
a discussão e diálogo aberto e sincero com o magistério sobre essas questões,
temos a esperança de que, a longo prazo, à medida que mais pessoas se
manifestarem sobre essas questões, o povo de Deus transforme o clima no
magistério para permitir uma discussão e diálogo aberto e sincero.
IHU On-Line – Como podemos
discutir sexualidade no âmbito da Igreja Católica considerando que na moral
dessa religião o sexo deve ser praticado somente para fins reprodutivos? Como
entender esse paradoxo?
Todd Salzman e Michael Lawler –
Isso faz parte da desconexão (ou paradoxo) que tentamos salientar no livro A
pessoa sexual. Por um lado, houve uma mudança radical na antropologia sexual no
Concílio Vaticano II que eliminou a linguagem hierárquica sobre as finalidades
do matrimônio. As finalidades unitiva e procriadora do casamento estão em pé de
igualdade. Isso assinalou uma passagem da tradicional antropologia sexual
primordialmente procriacionista para uma antropologia sexual relacional e
primordialmente unitiva. O magistério oferece alguns belos ensinamentos e
reflexões, por exemplo na Humanae vitae, sobre a finalidade unitiva do
matrimônio e o sentido unitivo do ato sexual e da sexualidade humana. Atos
sexuais podem nos fazer crescer relacionalmente e aprofundar nosso
relacionamento com nosso cônjuge e com Deus. Agostinho tinha e tem razão: o
sexo é bom porque é criado por um Deus bondoso e amoroso. Um grupo convocado
pela Conferência Nacional dos Bispos dos Estados Unidos chega a afirmar que
atos sexuais conjugais mutuamente prazerosos são possivelmente as experiências
humanas que simbolizam do modo mais pleno a comunicação amorosa entre a
Trindade divina, o que é uma declaração que reafirma a bondade tanto da
sexualidade humana como de atos sexuais verdadeiramente humanos.
Paradoxo e desconexão
Há dois problemas quando o
magistério trata da sexualidade dentro da igreja. Em primeiro lugar, raramente
ouvimos falar da beleza positiva da sexualidade humana e de sua bondade
fundamental. Em segundo, o que se ouve com frequência é o ensino negativo do
magistério contra certos atos sexuais, especialmente atos homossexuais. O
magistério dá continuidade a uma agressiva campanha mundial contra atos
homossexuais e o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Há uma desconexão entre
a ênfase do magistério na importância e significação relacional do sentido
unitivo da sexualidade humana e a redução por ele promovida dessa importância e
significação relacional a um foco na reprodução. Esse foco fica evidente nas
normas absolutas que proíbem a contracepção, atos heterossexuais do tipo não
reprodutivo, atos homossexuais e a masturbação.
Essa desconexão salienta o
paradoxo entre o ensino efetivo do magistério sobre a importância da finalidade
unitiva do matrimônio ou o sentido unitivo do ato sexual e as normas absolutas
que enfocam primordial ou exclusivamente a reprodução. Nós propomos um foco
maior e uma priorização do sentido unitivo da sexualidade humana. Com este foco
e esta priorização, muitas das normas absolutas do magistério que enfocam e
priorizam a reprodução teriam de ser reavaliadas, reformadas ou abandonadas.
IHU On-Line – Como uma família
estruturada a partir da moralidade católica pode orientar seus filhos a
respeito da sexualidade?
Todd Salzman e Michael Lawler –
Antes de tudo, cremos que é crucial que os pais corporifiquem e enfatizem a
bondade da sexualidade e seu poder como uma forma íntima de comunicação humana.
Nos Estados Unidos, estudos indicam que só 50% dos pais falam a seus filhos a
respeito da sexualidade e que muitos dos que o fazem oferecem apenas um único
"papo sobre sexo”. As crianças não vivem num vácuo. Se elas não estão
obtendo informações boas, acuradas e positivas sobre sexualidade de seus pais
(ou mesmo que as estejam obtendo), muitas vezes elas estão recebendo
informações duvidosas e prejudiciais de seus pares, da mídia, internet e
cultura. Os dados mostram que muitos pais não falam com seus filhos sobre
sexualidade porque não se sentem à vontade com sua própria sexualidade. Os pais
precisam se informar sobre sexualidade e se sentir à vontade para discutir
assuntos ligados à sexualidade a fim de dialogar com seus filhos.
Em segundo lugar, os pais
precisam distinguir entre o ensinamento sexual católico que é proveitoso e
aquele que não é proveitoso para comunicar uma mensagem sobre a sexualidade
humana que seja positiva, sadia, moral e apropriada à idade dos filhos. Uma
mensagem proveitosa poderia consistir em enfocar o amor incondicional de Deus
pelos seres humanos, todos criados à imagem e semelhança de Deus, com uma
sexualidade que é boa. Outra mensagem é que o sexo pode ser usado de formas que
nos ajudem ou nos prejudiquem em nossos relacionamentos com Deus, o próximo e
nós mesmos, e especificar diferentes formas pelas quais ele pode ajudar ou
prejudicar. Reenfatizamos aqui um princípio importante que precisa ser
traduzido para um nível apropriado à idade das crianças com exemplos igualmente
apropriados à idade delas: atos sexuais verdadeiramente humanos, holisticamente
complementares, justos e amorosos são fundamental e moralmente bons.
Mensagens prejudiciais
Uma mensagem não proveitosa seria
ensinar, como o faz o Catecismo da Igreja Católica, a adolescentes do sexo
masculino ou feminino que a masturbação é uma "ação intrínseca e
gravemente desordenada”, sem acrescentar a advertência acerca da responsabilidade
moral ou pecaminosidade acrescentada pelo Catecismo: "Para formar um juízo
equitativo sobre a responsabilidade moral do sujeito e orientar a ação
pastoral, deve-se levar em conta a imaturidade afetiva, a força do hábito
adquirido, os quadros de ansiedade ou outros fatores psicológicos ou sociais
que diminuem, ou então reduzem a um mínimo, a culpabilidade moral.” Outra
mensagem não proveitosa, que seria bastante prejudicial em termos emocionais,
psicológicos e desenvolvimentais, seria se um pai ou mãe de um filho gay ou uma
filha lésbica informasse a ele ou ela que o magistério ensina que uma
inclinação homossexual é "objetivamente desordenada”. Os pais precisam
separar o joio do trigo do ensino magisterial sobre a sexualidade humana ao
ensinar seus filhos a respeito da sexualidade. Para fazer isso, eles precisam
se sentir à vontade com sua própria sexualidade, informar-se sobre o ensino da
igreja e os pontos fortes e fracos desse ensino e começar a conversar sobre
sexualidade com seus filhos numa idade precoce para criar uma atmosfera
confortável para o diálogo e a discussão. Não só alguns aspectos do ensino
magisterial, mas também as muitas crenças culturais de que o sexo é tabu não
contribuem para criar uma atmosfera confortável ou sadia.
Como dissemos acima, o magistério
tem efetivamente algumas coisas inspiradoras a dizer sobre o sentido unitivo da
sexualidade humana e sobre a importância de se ser responsável ao expressar a
sexualidade. Essas mensagens, e não normas "proscritoras” absolutas
fundamentadas numa antropologia sexual reprodutiva, deveriam servir de
informação aos pais católicos e ser comunicadas com abertura, sinceridade e
frequência às crianças numa idade apropriada.
IHU On-Line – Considerando a
sexualidade como um fenômeno humano, como pode ser compreendida e sustentada a
prática do celibato?
Todd Salzman e Michael Lawler –
Para pessoas de orientação homossexual ou heterossexual, o celibato "por
causa do reino” sempre pode ser uma opção livre para vivenciar a própria
sexualidade. Entretanto, se o celibato é obrigatório e a única opção para uma
pessoa – o que ele é, de acordo com o ensinamento magisterial, não só para os
sacerdotes, mas também para todas as pessoas com uma orientação homossexual –,
isso pode ser prejudicial em termos emocionais, psicológicos, relacionais e
espirituais. A opção de ser celibatário nunca deveria ser imposta; tal
imposição pode ser uma violação da consciência e destrutiva para a pessoa
sexual.
IHU On-Line – Gostaria de
acrescentar algum aspecto não questionado?
Todd Salzman e Michael Lawler –
No prólogo do livro A pessoa sexual, nós afirmamos que estamos inteiramente
abertos ao diálogo e esperamos que ele estimule o diálogo entre
teólogos/teólogas, pessoas leigas e o magistério sobre o tema muito importante
da ética sexual. Estendemos essa esperança e esse convite a nossos irmãos e
irmãs que lerem esse livro em português e esperamos que o magistério acabe se
envolvendo no diálogo construtivo e autêntico. Também esperamos que as pessoas
que se sentem afastadas, frustradas ou traídas por alguns aspectos do ensino do
magistério sobre a sexualidade humana encontrem sentido, esperança e, talvez,
até uma certa paz lendo nosso livro. Tentamos recorrer ao que há de melhor na
tradição cristã católica até o presente e defender teologicamente uma
antropologia sexual e uma ética sexual que reconheçam a sexualidade e atos
sexuais verdadeiramente humanos, holisticamente complementares, justos e
amorosos como bons em termos fundamentais e morais.
Fonte: http://www.adital.com.br
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