Escolas empobrecidas: sem História nem Geografia – Por Maria Amélia Santoro Franco e Valéria Belletati
A escola vive uma profunda crise
de legitimidade. O mundo mudou, ficou complexo, novas demandas surgiram. Os estudantes
na escola também são outros, diversos na origem e nos interesses.
Os
professores carecem de condições para um trabalho digno. A sociedade alterou
suas expectativas referentes à escola e, assim, criou-se um complicado jogo de
múltiplas contradições e, para essa complexidade, não cabem respostas e
políticas simplistas.
Afinal, para que a escola existe?
Para formar adequadamente as gerações futuras ou para preparar os estudantes
para avaliações externas como Enem, Saresp, Prova Brasil, Pisa etc.?
A que se destinariam os
conhecimentos? Deveriam eles compor um mosaico para criar curiosidades, desejos
e perguntas nos estudantes ou só serviriam para produzir informações para uso
em testes de avaliação?
Nós, pesquisadoras de educação,
ficamos mais uma vez perplexas ao nos depararmos com a nova proposta curricular
do ensino público do Estado de São Paulo. Para bem aprender o Português e a
Matemática, sugere-se excluir os conhecimentos de História, Geografia e
Ciências do 1º ao 3º ano e manter 10% dessas disciplinas no 4º e 5º anos do
currículo básico.
Por essa nova proposta, ficou assim decretado: doravante, por
meio desse novo currículo básico, as crianças de escolas públicas estaduais só
receberão, até o 3º ano, aulas de Português e Matemática! Partindo do
pressuposto evidentemente errôneo de que um conhecimento atrapalha o outro, as
aulas de História, Geografia e Ciências serão eliminadas do currículo desses
estudantes.
Como consequência dessa política,
nas escolas de tempo integral, o aluno terá aulas em um período e, no outro,
oficinas temáticas das diferentes áreas do conhecimento, algumas obrigatórias e
outras eletivas escolhidas de acordo com o projeto pedagógico da escola.
À primeira vista, esse currículo
está “rico” e diversificado; no entanto, pelo olhar sério e comprometido, ele
estará fatalmente fragmentado. Primeiramente porque verificamos que as oficinas
obrigatórias também não objetivam, do mesmo modo, um trabalho com História,
Ciências e Geografia; pelo contrário, voltam-se novamente para a Matemática e
para o Português.
Além disso, como trabalhar a
oficina optativa, por exemplo, de Saúde e Qualidade de Vida sem os fundamentos
das ciências? Intriga a essa altura saber: por que oficinas e não estudo
contínuo? O que se ganha com isso? Vários equívocos nos saltam aos olhos! O
primeiro deles é considerar que o conhecimento de algumas áreas é acessório,
ocupa espaço e ainda impede o bom aprendizado do Português e da Matemática!
As concepções de escrita e
leitura, por exemplo, acabariam por ser responsabilidade exclusiva de uma única
disciplina do currículo. Não seria essa uma visão muito simplista de
aprendizagem, pois parece supor que o estudante não desenvolve processos de
escrita e leitura também em outras disciplinas?
Outro equívoco é a suposição de
que para estudantes de escola pública o mínimo basta! Para que sofisticar com
lições da história, da natureza e do lugar do nosso povo? Conhecimento
científico seria enfim útil para quê?
A aprendizagem não ocorre por
partes. O aprendizado é todo ele integrado e sistêmico. Um bom ensino de
História expande o pensamento e as referências e o estudante, assim, tem
condições para perceber relações de fatos, tempo e espaço, tão necessárias à
aprendizagem matemática.
A Geografia leva nossos
pensamentos para viajar em outros espaços; possibilita compreender a
diversidade das sociedades, conhecer e apreciar a natureza, aprender a observar
e a estabelecer conexões entre lugares e culturas. Mergulhados, assim, nesses
novos referenciais, os estudantes podem compreender melhor a própria realidade
e encarar suas circunstâncias com pleno envolvimento. Isso certamente
repercutirá na sua vida e no seu aprendizado, com consequência, por exemplo, em
estudos simbólicos e gráficos.
Como deixar de aproveitar a
natural curiosidade das crianças, seu espírito exploratório, suas perguntas
intrigantes acerca dos fenômenos da natureza e, dessa forma, tecer as bases de
um fundamental espírito científico, que por certo ajudará a compreender a
Matemática e a recriar o Português?
Será que a estratégia de
oficinas, ao invés do estudo contínuo, dará conta de captar tal complexidade e
também de tornar possível um processo de ensino-aprendizagem que seja capaz de
construir os conhecimentos de Geografia, História e Ciências que ficaram tão
diminuídos no currículo básico?
De nosso ponto de vista
entendemos que a questão não é separar para empobrecer. O que vale é
democratizar as possibilidades de ser e de estar melhor no mundo. E para que
isso aconteça precisamos da integração total de saberes e práticas.
As crianças de classe social mais
favorecida possuem, antes já de chegar à escola, uma gama infindável de
vivências. As crianças de classe popular, em sua maioria, chegam já à escola
destituídas desse capital cultural. Possuem outras ricas e profícuas
experiências que, nem sempre, são valorizadas e transformadas na escola. No
entanto, o importante é trabalhar pedagogicamente com essas experiências de
modo a transformá-las em vivências socialmente válidas. Pensamos que o
fundamental é ampliar as oportunidades ao invés de restringi-las; para tanto, a
experiência com as diferentes áreas do conhecimento é essencial.
Preocupa-nos o risco de a função
da escola, para as crianças dos anos iniciais, limitar-se, a partir da reforma
proposta, ao ensino das habilidades mínimas de leitura e escrita e de cálculo,
retirando-se as cores e os sabores das descobertas que se fazem no contínuo do
seu desenvolvimento. Preocupa-nos que esse projeto ganhe força e se concretize
em outros níveis de ensino e em outros Estados.
Preocupa-nos que as oficinas
contribuam mais para o esvaziamento dos conteúdos do que para a construção de
conhecimentos. O que será da nossa escola pública, então? Um reducionismo dos
conhecimentos, um estreitamento das concepções de ensino-aprendizagem? O
objetivo final será a quantificação em detrimento da qualidade? E, se atingir
índices é o foco dos processos de ensino-aprendizagem, o que isso realmente
significa? Qual é a verdadeira motivação da política educacional implícita
nesse movimento?
As autoras Maria Amélia Santoro
Franco (Unisantos), Valéria Belletati (Instituto Federal de São Paulo),
Cristina Pedroso (USP/FFCLRP) são doutoras em Educação e Ligia Paula Couto
(Universidade Estadual de Ponta Grossa) é doutoranda em Educação. Todas são
pesquisadoras do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre a Formação do Educador
(GEPEFE) – FEUSP.
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