Religiões e laicidade, a aliança possível
"Comprazer-se com a própria
neutralidade não é suficiente: as sociedades contemporâneas devem desenvolver
um saber ético e político que saiba manter unida a diversidade moral,
espiritual e cultural que as anima".
Essa tese é declarada desde a
capa pelo novo livro La scommessa del laico (Ed. Laterza, 124 páginas), dos
filósofos canadenses Jocelyn Maclure e Charles Taylor, este último conhecido
internacionalmente pelos seus estudos sobre a Era Secular (Uma era secular, Ed.
Unisinos, 2010).
Um pouco além das análise
europeias, os dois intelectuais delineiam uma superação do conflito civil entre
laicidade e religiões que, de um lado, aceita a contribuição das fés para a
construção da ética social, mas, de outro, exige "uma cooperação baseada
no acordo entre cidadãos razoáveis sobre os princípios básicos da associação
política".
E ainda: "A diversidade
religiosa é uma característica estrutural e, pelo que se pode julgar,
permanente das sociedades democráticas. Parece razoável pensar que uma ética do
diálogo que respeite as diferentes perspectivas metafísicas seja a melhor para
apoiar a moral política mínima".
Um trecho do livro foi publicado
no jornal dos bispos italianos, Avvenire, 26-02-2013. A tradução é de Moisés
Sbardelotto.
Eis o texto.
A evolução das sociedades
democráticas contemporâneas sugere que chegou o momento de repensar a laicidade
no seu sentido e nos seus fins. Embora a questão da relação entre poder
político e poder espiritual tenha sido central desde Santo Agostinho até a
idade moderna, os desafios do presente têm uma natureza diferente. Embora se
pense em primeira instância que o objeto de um regime laico é a relação
apropriada entre Estado e religiões, a sua tarefa maior e mais urgente é fazer
com que hoje os Estados democráticos se adaptem adequadamente à profunda
diversidade moral e espiritual que existe dentro das suas fronteiras.
De fato, não se veem razões de
princípio para isolar religião, relegando-a a uma categoria à parte das outras
concepções do mundo e do bem. Mas as relações entre pessoas religiosas e não
religiosas são muitas vezes marcadas por incompreensões, por desconfiança, às
vezes também por intolerância recíproca. Dificilmente ateus e agnósticos
conseguem conceber que há indivíduos que aderem ainda hoje a crenças religiosas
cuja verdade não pode ser estabelecida cientificamente.
Pessoas religiosas pensam que os
"materialistas", no sentido filosófico do termo, são incapazes de
levar uma autêntica vida moral, de abraçar causas que vão além do seu próprio
interesse egoísta e que, consequentemente, tenham uma concepção redutiva da
existência humana. Os quiproquós e os mal-entendidos referem-se às vezes a
grupos específicos. Muitos consideram o Islã intrinsecamente incompatível com
os valores democráticos e liberais. Alguns islamistas consideram a cultura
ocidental como irremediavelmente vil e corrupta.
No entanto, a diversidade moral e
religiosa é uma característica estrutural e, pelo que se pode julgar,
permanente das sociedades democráticas.
Pessoas que adotam representações
do mundo e esquemas de valores diferentes, às vezes irreconciliáveis, devem
aprender a cooperar e a resolver as próprias discordâncias. A cooperação social
nas sociedades diferenciadas encontra sua origem na possibilidade de acordo
entre cidadãos razoáveis sobre os princípios básicos da associação política.
A estabilidade e a coesão dessas
sociedades dependem assim da vontade dos cidadãos, que têm concepções do bem
divergentes, de aceitar a autoridade dos princípios comuns que fundamentam as
instituições políticas. Em certo sentido, trata-se de um desenvolvimento do
ideal de tolerância que permitiu pôr fim às guerras religiosas.
Parece razoável pensar que uma
ética do diálogo que respeite as diferentes perspectivas metafísicas e morais é
a melhor para sustentar a moral política mínima ou o "consenso por intersecção".
Mas como conciliar essa ética do diálogo com o fato de que os Estados liberais
e democráticos se definem como "sociedades abertas", ou seja,
sociedades nas quais reina a liberdade de expressão?
Como sublinhou Karl Popper, é
justamente a institucionalização da liberdade de pensamento e de expressão que
protege essas sociedades da estagnação e da tentação de se fecharem em si
mesmas. Desse modo, as pessoas religiosas são pontualmente expostas a pontos de
vista que põem em questão a validade dos seus próprios quadros de referência ou
zombam deles.
Algumas obras artísticas,
pensemos nos Versos Satânicos de Salman Rushdie, nas caricaturas de Maomé em um
jornal dinamarquês e nos filmes de Martin Scorsese e Mel Gibson sobre Cristo,
são, de fato, consideradas ofensivas pelos crentes, quando não explicitamente
blasfemas.
Devemos limitar a liberdade de
expressão em nome do respeito por aquilo que pertence, para alguns crentes, à
esfera do sagrado? Nós somos dessa opinião. Salvo alguns casos flagrantes de
difamação ou de incitação ao ódio, o Estado não pode restringir a liberdade de
expressão de alguns com a desculpa de que ideias ou representações acabem
profanando o que, para outros, é sagrado.
O Estado pluralista não pode
adotar nem a ontologia geralista, segundo a qual o universo deve ser
compreendido nos termos da díade sagrado-profano, nem uma concepção específica
do sagrado. Certamente, não se quereria viver em uma sociedade em que Rushdie e
Richard Dawkins fossem censurados.
Assim como a liberdade religiosa
não inclui o direito de não ser exposto a símbolos religiosos, o preço a pagar
para viver em uma sociedade que tutela o exercício das liberdades de
consciência e de expressão é o de aceitar ser exposto a crenças e a práticas
que consideramos falsas, ridículas ou ofensivas.
Posto isso, quando se trata da
publicação de textos ou de conteúdos artísticos, não seria desejável que se
tentasse, acima de tudo, compreender como o nosso ato será percebido pelos
outros e antecipar o seu impacto sobre o vínculo social?
Enquanto as alusões irônicas de
Rushdie nos Versos Satânicos estão no centro de uma obra que oferece um retrato
penetrante da condição humana na época da globalização, é provável que a
republicação das caricaturas de Maomé não fez nada além de reacender o
conflito.
Do mesmo modo, é possível que os
líderes religiosos forneçam orientações sobre como as religiões nos dão acesso
a uma forma única de habitar o mundo moderno, sem, por isso, subentender que
uma vida levada segundo uma visão secular do mundo e do bem seja
inevitavelmente incompleta ou corrupta.
Curiosamente, os dois filósofos
contemporâneos mais ligados à retomada do racionalismo kantiano, John Rawls e
Jürgen Habermas, chegaram à conclusão, depois de terem defendido concepções
mais restritivas, que as perspectivas religiosas são fontes morais que podem
contribuir de forma significativa para o aprofundamento da cultura democrática.
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br
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