Entrevista com Neville D’Almeida: “A arte é a religião de Deus” – Por Gabriel Daher
Em uma época de ferrenha censura,
ele marcou seu nome na história do cinema nacional com produções debochadas e
contestadoras que exaltavam a figura da mulher como dona de suas próprias ações
e cutucavam o moralismo retrógrado da chamada “família brasileira”.
Ícone da
pornochanchada, o mineiro Neville D’Almeida detém ainda hoje a terceira maior
bilheteria do cinema brasileiro com A Dama Do Lotação (1978), clássico
inspirado na obra de Nelson Rodrigues e protagonizado pela sex symbol Sônia
Braga.
Em seu currículo estão obras
icônicas como Os Sete Gatinhos, Rio Babilônia e Navalha na Carne, todos grandes
sucessos de bilheteria e crítica. Aos 72 anos, o cineasta tem se dedicado a
criar e expor instalações de arte contemporânea, como a Tabamazônica, tenda
indígena com projeções de imagens gravadas em uma ideia do interior do Amapá.
Ele também revela a intenção de filmar um novo longa, A Dama da Internet, que,
ao contrário do que sugere o título, não será uma continuação de seu clássico
filme.
Exposta no Centro Cultural Oi
Futuro em 2009, a obra Tabamazônica deu origem ao livro “Além Cinema”, lançado
em São Paulo na noite desta quarta-feira, dia 3, durante a feira sp-arte. Em um
lounge montado pela Oi Futuro/Iguatemi, Neville autografou exemplares do livro, que reúne documentos, entrevistas, textos e curiosidades de seus mais de 40
anos de carreira e aproveitou para conversar com a Brasileiros sobre seus
projetos e questões da atualidade do País. Sem papas na língua, o lendário
diretor mostra que não foge de assuntos polêmicos e crava: “A arte é a religião
de Deus”.
Como surgiu o projeto
Tabamazônica?
A ideia desse projeto surgiu da
necessidade de criar uma relação entre a cultura indígena brasileira e a arte
contemporânea. A arte contemporânea, muito voltada para a tecnologia, tem que
ter uma relação fundamental com a cultura indígena. Nesta obra, a gente reúne
cinco mil anos de cultura indígena com a cultura digital futurística. A
primeira forma de arquitetura conhecida no mundo é a Taba, feita de palha, onde
os índios moram. Aquela é a primeira casa. E a gente fez então uma obra com
imagens dos índios, com a música dos índios, com arquitetura dos índios, e o futuro
digital, que é a projeção digital. É a primeira instalação envolvendo arte
indígena e contemporânea do séc XXI. O homem civilizado pega um quadro branco,
faz um risco vermelho e isso é arte. O índio pega a mesma coisa, constrói um
colar, e é artesanato. É um preconceito contra a arte do índio. Nós lutamos e
queremos a inclusão social do índio na sociedade brasileira e no panorama da
arte contemporânea
Qual sua opinião sobre a recente
remoção dos índios do antigo Museu do Maracanã, no Rio?
Eu acho que isso é mais um sinal
de que a sociedade não tem nenhum apreço pela cultura indígena. Se o Brasil
tivesse respeito pela cultura indígena, teria um índio dirigindo a Funai, e não
um branco. Acho que nós temos que caminhar em direção a trazer para nossa cultura
de uma forma total e absoluta a tradição indígena. É um grande tesouro que está
sendo desprezado, que está sendo jogado fora. A cultura brasileira só vai ser
totalmente resgatada na medida em que o índio ocupar o seu espaço, que ainda
não está ocupando.
Você foi pioneiro ao retratar a
mulher como responsável por seus próprios atos e dona de suas próprias ações no
cinema brasileiro. Como você vê a atual luta feminista?
Desde o primeiro filme a gente
valorizou a posição da mulher, e todos os filmes são sobre personagens
femininos, porque a mulher tem cinco mil anos de opressão, e finalmente agora,
no final do séc. XX e no principio do séc. XXI começa essa libertação. A libertação
não é uma pessoa ou duas; a libertação é um movimento social, cultural, que
começa a se desenvolver pra trazer a liberdade total e a igualdade absoluta com
os homens. O meu próximo projeto cinematográfico, A Dama da Internet, tem muito
a ver com isso. O Dama da Lotação é o principio da libertação, que vem com o
principio da libertação sexual, e agora é um estágio mais avançado. A
libertação sexual é uma consequência, mas a mulher quer mais, ela quer uma
libertação existencial, quer ocupar o seu espaço definitivamente, e isso vem
através de todo um comportamento social que está começando a mudar e a gente vê
sinais disso na literatura, na música, no cinema e no teatro, mas ainda é o
principio. Tem muito mais pra vir e muito mais pra ser feito.
Pode falar mais sobre seu próximo
filme, o Dama da Internet?
É a mulher já dentro da cultura
virtual e das novas mídias, ocupando cada vez mais o seu espaço, pois as novas
mídias são também libertadoras, não só para a mulher, mas pra todas as
minorias. O mundo virtual, ele não é só uma troca de recadinhos, ele é uma
coisa mais profunda, e é dessa forma que a gente vê. Através do mundo virtual
você pode ter acesso a todas as informações, principalmente informações sobre
você, informações sobre o seu corpo, sobre os hábitos, sobre a conduta, coisas
que você não podia falar há 50 anos porque você era preso, a mulher era
considerada uma prostituta. Hoje o acesso é pleno, é individual, e essa
libertação veio através das mídias digitais, não foi a família. Os homens também
são prisioneiros da opressão da sociedade, que é baseada em preconceitos e não
nas verdades eternas do ser humano, que começam a aparecer agora.
Qual sua opinião sobre as
recentes polêmicas envolvendo a Comissão de Direitos Humanos da Câmara e o pastor
Marco Feliciano?
Eu acho que o nome dessa triste
figura não é Feliciano, é Infeliciano. O deputado Infeliciano não representa o
Brasil, não representa o povo brasileiro, ele não representa nada a não ser um
preconceito antigo. Eu acho que é um dos aspectos mais negativos das pessoas
quererem se apropriar de um grupo e usar o voto pra disseminar o preconceito.
Ele é homofóbico, ele é preconceituoso, mas a arte é livre, a arte não
discrimina, como a religião também não. Pra mim você chega e pede a Cristo pra
abençoar sua relação: “Jesus eu estou aqui com esse homem que eu amo, nós nos
amamos, e queremos que você abençoe nosso amor”. Jesus Cristo vai falar não?
Ele vai falar sim! O verdadeiro Deus é o Deus da compreensão, do entendimento,
do amor e do perdão, e não o Deus desses caros aí, punitivos e idiotas. Eu não
vejo com preocupação, porque eu acho que esse Infeliciano é uma coisa em
extinção. O que vai valer é a liberdade plena, é o amor que essas pessoas podem
passar. Eu sou cristão e acho que Deus abençoa a todos que tem amor sincero um
pelo outro. A arte é a religião de Deus.
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