Do divino ao digital, como as religiões influenciam no mundo dos jogos - Por Fellipe Camarossi
Desde tempos imemoriáveis, o ser
humano possui uma conexão forte com o divino.
As razões são muitas, como a
necessidade de crer em algo maior que rege a ordem e o caos, pois a liberdade
total pode ser perturbadora para nossa índole mutável, ou simplesmente querer
acreditar que não somos apenas um amontoado de átomos racionais e fazemos parte
de algo muito maior.
Independente das razões, a crença nas divindades e a
religião já se tornou algo natural de nossa sociedade, e sendo algo tão comum,
sua discussão ainda é um tabu.
E assim como todas as culturas da nossa sociedade, a religião acabou por influenciar, diretamente e indiretamente, o mundo dos jogos, e é de uma forma tão natural que muitos de vocês podem nem ter percebido, independentemente de suas crenças ou a falta delas. É por isso que agora vamos navegar por esse tênue véu que paira entre o nosso mundo e o digital, passando agora pelas águas culturais que representam a religião.
Todas diferentes, mas todas
iguais
Antes de iniciar nossa busca, é
bom deixar claro o que é religião e o que é uma divindade em seu conceito
científico. Religião é um conjunto de crenças que conectam o ser humano com sua
espiritualidade e seus valores morais, com símbolos, narrativas e deidades que
visam dar um sentido para a vida, sua origem e o seu fim. Uma divindade seria
um desses muitos símbolos encontrados nas religiões, são seres mitológicos que
nascem espontaneamente ou são criados por outras divindades, com capacidades
únicas e poderes muito além da compreensão humana.
Resumindo em miúdos, a religião é o conjunto de dogmas provenientes de uma crença espiritual, e as divindades, ou deuses, são aqueles que regem por essas leis passadas culturalmente através dos ensinamentos religiosos. Não importa qual seja a religião, ela sempre terá esse mesmo preceito.
Talvez apenas com
essa explicação a mente do leitor já esteja correlacionando alguns jogos com
esses conceitos, então vamos continuar preparando esse terreno e nos aprofundar
mais nestes dogmas que reincidem nas religiões conhecidas.
O tripé que sustenta a fé
Algo muito comum nas religiões é
a presença de uma trindade, três símbolos que se alinham e mantém a ordem sobre
toda a existência. No cristianismo temos o Pai, o Filho e o Espírito Santo. No
olimpo, temos Zeus, Poseidon e Hades. No hinduísmo, Brama, Vixnu e Xiva. As
trindades divinas provavelmente devem-se ao conceito do equilíbrio representado
pelo triângulo, e por isso as três deidades que assumem as pontas do triângulo
tendem a se equilibrar.
om isso alguns leitores já devem imaginar aonde quero chegar: as trindades são muito presentes no mundo dos jogos. Din, Nayru e Farore, as três deusas de The Legend of Zelda, além do próprio Triforce que representa Poder, Sabedoria e Coragem. O culto as deusas é algo recorrente na série, tanto que constantemente vemos artefatos e templos dedicados à trindade, além do próprio triângulo dourado que é peça-chave de toda a franquia.
om isso alguns leitores já devem imaginar aonde quero chegar: as trindades são muito presentes no mundo dos jogos. Din, Nayru e Farore, as três deusas de The Legend of Zelda, além do próprio Triforce que representa Poder, Sabedoria e Coragem. O culto as deusas é algo recorrente na série, tanto que constantemente vemos artefatos e templos dedicados à trindade, além do próprio triângulo dourado que é peça-chave de toda a franquia.
Em Pokémon, como foi
abordado na série sobre sua Mitologia, também temos a grande recorrência
das trindades. Apenas por cima é possível citar Articuno, Zapdos e Moltres,
assim como Registeel, Regirock e Regice. Todas as gerações possuem seus três
guardiões, às vezes até duas ou mais tríplices (como foi o caso de Pokémon
Black/White (DS) e suas sequências). E, é claro, as semelhanças não
param por aí.
Além de ambos, Zelda e Pokémon,
partilharem do conceito da trindade, também temos outra grande relação aqui: a
origem de tudo. Assim como na maioria (senão todas) as religiões, as duas
séries recorrem ao criacionismo, como todas essas entidades usaram de seus
poderes astronômicos para criar a existência, a matéria e a vida.
Nas terras de Hyrule, a crença é que as três deusas deram origem a tudo. Din, a Deusa do Poder, criou a matéria. Nayru, a Deusa da Sabedoria, colocou as leis e a ordem sobre a existência. Por fim, Farore, a Deusa da Coragem, criou a vida. Depois, as três Deusas Douradas retornaram para o seu próprio plano, mas antes, deixaram uma pequena parte de seus poderes, a Triforce, nos cuidados de Hylia, uma deusa menor.
Já no mundo Pokémon, é narrada a história de Arceus, o pokémon que nasceu de um ovo antes da própria existência. Após nascer, o Pokémon Deus deu vida a Dialga, Palkia e Giratina, que deveriam reger sobre o tempo, o espaço e a antimatéria. Acredita-se que ele também criou todos os outros pokémons e, obviamente, o universo em si. Por fim, ele se recolheu em seu plano, de onde não pretendia interferir no rumo de sua criação.
Qualquer semelhança não é só
coincidência
O cristianismo, religião com mais
fiéis ao redor do mundo, foi provavelmente a maior influência na história da
humanidade. De maneira similar e óbvia, essa também foi a religião que teve
maior influência no mundo dos jogos, onde a maioria destes possui algum tipo de
conexão com a fé cristã, seja de forma direta ou indireta.
Usando de referência ainda os
monstrinhos de bolso, Arceus se mostrou em seu filme (“Arceus e a Joia da Vida”
de 2009) ser extremamente rancoroso quando traído e com uma fúria inigualável,
aspecto recorrente do Deus cristão no Antigo Testamento, bem como de muitas
outras deidades máximas ao redor do globo. Também houve o caso de Giratina, o
guardião da antimatéria, ser banido da própria realidade para um mundo paralelo
devido a sua natureza rebelde e violenta. Alguém aí disse “Lúcifer”? Foi o que
pensei.
A franquia Shin Megami
Tensei é conhecida pela sua polêmica abordagem da religião, colocando em
cheque diversas crenças do cristianismo. Devil Survivor (DS) e Devil
Survivor Overclocked (3DS) colocam os anjos e o próprio Deus como tiranos,
e mesmo querendo um mundo de paz, é uma paz governada pelo medo do criador e
não é esta a abordagem do Antigo Testamento, de um governante imponente e
impiedoso?
Mesmo os jogos que não mostram
explicitamente a religião tem o costume de colocar igrejas em seus cenários,
talvez pelo simbolismo de terra sagrada, talvez apenas por estarem habituados a
verem os templos em seu cotidiano. Silent Hill (PS) possui sua
própria igreja cristã, Balkan Church. Resident Evil 4 (PS2/GC/Wii) também
conta com sua igreja na região de El Pueblo. Talvez jogos de terror coloquem
esse tipo de cenário justamente pela ambiguidade de ver um local teoricamente
divino estar cercado e tomado pela escuridão.
Em Final Fantasy Tactics
(PS) temos a Igreja de Glabados, que foi aparentemente inspirada no
catolicismo radical. De maneira similar, temos a igreja de Yevon em Final
Fantasy X (PS2), onde uma tática semelhante das cruzadas é feita para manipular
seus fiéis de modo a acobertar os atos sinistros por trás daqueles que deveriam
ser os avatares da fé do povo.
E como não podia faltar quando se
fala de religião, diversos jogos possuem a sua própria bíblia. O livro místico
possui diversos nomes, mas sempre envolve informações sobre divindades,
profecias e é um tomo de grande importância quando são citados. Em Grand
Chase (PC) temos a Bíblia das Revelações, enquanto em Super Paper
Mario (Wii) temos duas versões do livro, Light Prognosticus e Dark
Prognosticus, servindo como antagônicos aos propósitos tanto dos heróis como
dos vilões.
Do outro lado das preces
Alguns jogos ainda permitem que o
jogador seja um deus, como é o caso de Black & White (PC) e sua
sequência, Black & White 2 (PC). Nos títulos, você deve escolher que
tipo de deus deverá ser para conquistar seus fiéis, sempre tomando cuidado para
não ser bom ou ruim demais, aprendendo a andar na linha perante a dualidade que
os atos podem ter.
Implicitamente ainda é possível citar jogos da série “Sims”, onde você pode criar a sua família, casa ou até mesmo sua cidade, controlando as coisas de modo a que tudo fique nos eixos e sua sociedade não entre em ruínas. Por vezes isso permite uma nova visão sobre as deidades, questionando-se sobre sua existência e seus meios para administrar a realidade em si.
Liberdade para questionar e crer
Apesar de tudo, é muito bom que a
religião tenha certa influência no mundo digital, pois isso dá liberdade para o
povo de quebrar tabus formados por eras. Os jogos permitem questionar certas
lógicas, dão novos pontos de vista e por vezes dão ao jogador uma nova
perspectiva sobre suas crenças, sobre sua fé ou faz repensar até mesmo o que
tem acreditado até hoje. Qualquer tipo de fé cega é prejudicial, e se tem algo
que os jogos sabem fazer é colocar aquele que os jogam para pensar.
A cultura sempre irá refletir em
todo meio de arte, e os jogos estão inclusos. As mudanças que a sociedade passa
constantemente podem ser expressadas das mais diversas formas e interpretadas
por milhares de pontos de vista, e a religião é algo que está em constante
mudança e acompanhamento pela humanidade.
Indiferente de sua crença é de
conhecimento geral que a fé é algo presente no ser humano, mesmo que seja a “fé
na ciência”, e não há problema algum em acreditar em algo. O que não se deve
fazer, e o que os jogos ensinam, é que crer cegamente sempre pode ter suas
consequências, e que mais importante do que escolher no que acreditar é o que
fazer com a sua própria fé.
Fonte: http://www.gameblast.com.br
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