"A Menina Sem Qualidades" - Livro da alemã Juli Zeh inspira nova série da MTV Brasil
Em "A Menina Sem
Qualidades", diretor Felipe Hirsch leva para a televisão o livro da alemã
Juli Zeh e mostra, entre poesia e desespero, conflitos profundos e comuns entre
jovens.
A primeira cena de A Menina
Sem Qualidades mostra a protagonista Ana (Bianca Comparato). Ela se
levanta, olha para frente e diz seu nome para uma sala de aula cheia. É seu
primeiro dia na nova escola, e o professor quer saber mais sobre a nova aluna.
"Vocês adoram dizer na
internet do que gostam e do que não gostam", diz o professor. Ana responde
que não gosta di internet. "Curioso alguém da sua idade não se interessar
pela internet", rebate o adulto, com ironia.
"A internet gira em torno de
três temas: sexo, dinheiro e guerra. Eu não acho que novas ideias surjam de
discursos livres e públicos. Não tenho nada contra a liberdade. Eu tenho
preguiça da internet. Veja, clique, compre", reponde a menina, colocando o
telespectador, assim, no mundo de Ana.
O diálogo é emblemático para
apresentar a adaptação para a televisão do livro Spieltrieb (2004),
da escritora alemã Juli Zeh, que no Brasil recebeu o nome de A Menina Sem
Qualidades.
O projeto surgiu antes mesmo de o
livro ser lançado no Brasil, quando o tradutor Marcelo Backes enviou para o
diretor Felipe Hirsch uma versão em português da obra que ele acabara de
traduzir. Ele sabia que o diretor iria gostar da história.
A ideia inicial era transformar o
livro de Zeh em uma peça de teatro, mas o projeto se modificou e cresceu se
tornando uma série com 12 episódios, atualmente no ar na MTV Brasil.
A série, orçada em 3 milhões de
reais, quer surpreender a audiência falando com o público jovem sem julgamentos
e pudores. Segundo a diretora-geral da MTV Brasil, Helena Bagnoli, o programa é
um conteúdo mais sofisticado do que se encontra geralmente na TV aberta no
Brasil.
Hirsch busca inspiração no cinema
independente americano e nas modernas séries de televisão para criar um clima
de ternura, intimidade e desespero. A trilha sonora descolada e as belas cenas
falam de personagens com profundas cicatrizes sociais e morais.
Sentimento universal
No livro, a história se passa em
uma escola na pequena Bonn, capital da antiga Alemanha Ocidental. Ali, dois
adolescentes começam a desenvolver uma obsessiva dependência em uma relação de
amizade que ultrapassa fronteiras e questiona moralidade, compaixão e
previsibilidade.
Do bucolismo industrializado do
coração da Europa, a história foi transferida para o bucolismo tropical e
caótico da classe média de São Paulo. A cidade, no entanto, tem um papel
secundário na série, que foca no isolamento de Ana e em suas relações em casa e
principalmente na nova escola.
A escola é o universo social dos
adolescentes, que podem construir personalidades e lidar com conflitos
complexos em um mundo de adultos perdidos, onde os jovens são sobrecarregados
com informação e comunicação via internet.
Enquanto no gigantesco mundo as
vanguardas do que é bom ou mau se subvertem, no microcosmo da escola, tanto em
Bonn como em São Paulo, desenvolve-se uma história vibrante.
Os personagens, que receberam o
nome de Ana e Alex no Brasil, são considerados pós-niilistas: nem no
"nada" eles acreditam. Para o diretor há uma forte crença nesse
vazio, mas é algo que será revelado no decorrer da história. Eles manipulam os
colegas mais frágeis e os professores da escola particular que estudam em São
Paulo.
A série reflete sobre a falta de
moral dos personagens, questionando valores e princípios da sociedade
contemporânea, mas de maneira sutil, já que o que explode na tela são os
sentimentos e certa frieza encantadora, principalmente na atuação convincente
de Bianca Comparato como Ana.
Mesmo com 27 anos, a atriz não se
intimidou em viver uma adolescente de 16. O que causa certo estranhamento no
começo da série ganha vida no trabalho corporal da atriz, que consegue com
versatilidade mostrar a complexidade da personagem, mesmo nas cenas de nudez ou
sexo.
O livro capta uma condição
contemporânea dos jovens, que várias partes do mundo hoje encontram problemas
comuns em lidar com o dia a dia e com as pressões de um mundo contemporâneo
onde a informação suprime o tempo e muitas vezes a infância.
A sensação atual do presente foi
transferida para a televisão. A série cresce nos seus momentos de silêncio e
introspecção, ganhando força na ótima trilha sonora. No entanto, os diálogos
soam, muitas vezes, bem resolvidos demais na boca dos jovens, o que pode criar certa
artificialidade.
Processos radicais
A Menina Sem Qualidades mostra
não só a descoberta de uma nova realidade, mas o poder que a juventude tem em
adolescentes que são colocados, cedo e imaturamente, em contato com questões
complexas e adultas.
Ana é uma menina inteligente, que
parece não querer romper seu isolamento, até que Alex ingressa em sua turma. O
jovem se aproxima e confere poder à garota, o que a convence a participar de
uma perversa trama que inclui seduzir o professor Tristán, vivido pelo ator
argentino Javier Drolas.
Para o diretor, o desejo do
professor pela jovem transgride os padrões. O envolvimento dos dois quebra
convenções e crenças da jovem. O personagem de Alex tem um uma visão
extremamente pragmática do mundo, e é nesse mundo que sua crueldade funciona. O
pragmatismo se torna mais importante que a visão amorosa do mundo.
Para Hirsch, o motor da série é o
impacto que a história tem com qualquer um que entra em contato com ela. Ele
acredita que a escritora radicalizou processos como o conflito de gerações, os
juízos de valores e os padrões morais.
A trama foi adaptada para a TV
por Hirsch, Marcelo Backes e Renata Melo. “O livro da Zeh permite um sobrevoo
poético sobre essa geração. Não é algo caricatural, como são muitos programas
de televisão que têm um olhar mercadológico sobre a juventude, pois precisam
vender produtos associados a ela. Acho uma grande coragem botar outras texturas
no ar”, conclui o diretor.
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