Materialismo das Lacunas

Se os instrumentos da ciência não conseguem detectar um estado de consciência, será que isso significa que a consciência não existe? 

B. ALAN WALLACE examina essa lacuna do entendimento científico. Praticamente todos os cientistas cognitivos hoje assumem que a consciência e todos os processos mentais subjetivos são funções do cérebro e, portanto, propriedades emergentes ou funções da matéria.

Essa é a principal visão científica da consciência e, aqueles que rejeitam essa hipótese são normalmente vistos por muitos cientistas como estando sob influência de tendências metafísicas ou fé religiosa.

Para avaliar essa perspectiva cientifica, vamos primeiro rever alguns fatos simples e incontestáveis: Cientistas tem (1) uma definição não consensual da consciência, (2) falta de meios para medir a consciência ou seus correlatos neurais, e (3) conhecimento incompleto das causas necessárias e suficient es para a existência da consciência.

O fato de nenhum estado de consciência, na verdade, nenhum tipo de fenômeno mental subjetivo, ser detectável usando-se instrumentos científicos significa que, estritamente falando, não há evidência científica, ou empírica, para a existência da consciência ou da mente. A única evidência experimental que temos para a existência de fenômenos mentais consiste em relatos em primeira pessoa, observação introspectiva de um indivíduo de seus próprios estados mentais. Mas tais relatos não são objetivos, não estão sujeitos à corroboração de uma terceira pessoa e são geralmente apresentados por indivíduos que não possuem treinamento formal em observar e relatar seus próprios processos mentais.

Entretanto, sem essa evidência da existência de fenômenos mentais, cientistas não teriam conhecimento dos correlatos mentais dos processos neurais e comportamentais que eles estudam com tal precisão e sofisticação. Em outras palavras, todo o conhecimento científico dos processos mentais que surgem dependentemente das funções cerebrais está baseado em evidências provenientes de observação pessoal e não científica.

Ironicamente, a consciência metacognitiva dos cientistas em relação a seus próprios processos de pensamento é em si não objetiva e, portanto, não científica. Mas sem essa consciência reflexiva, fica difícil imaginar que o conhecimento científico conseguirá progredir.

Na falta de conhecimento científico sobre a natureza da consciência e suas causas necessárias e suficientes, os principais cientistas cognitivos insistem que deve haver uma explicação física para a natureza da consciência e todas as suas causas. No que diz respeito à consciência e toda a experiência subjetiva, existe uma lacuna no conhecimento científico, e esse vácuo é rapidamente preenchido com suposições materialistas; uma vez que cientistas abominam tal vácuo. Esse problema foi abordado de diferentes maneiras ao longo do século passado.

Quando os behavioristas começaram a dominar a psicologia acadêmica, no começo do século XX, eles reconheceram o fato óbvio de que os processos mentais subjetivos e os estados de consciência não poderiam ser medidos com os instrumentos da ciência. Ao invés de desenvolverem o único meio de se observar tais fenômenos mentais, ou seja, a introspecção, eles optaram pela alternativa surpreendente de simplesmente negar que a experiência subjetiva exista! Em 1913, John B. Watson, um pioneiro do behaviorismo, chegou a ponto de atribuir a crença na existência da consciência a antigas superstições e magia. E quarenta anos depois, B. F. Skinner concluiu que a mente e as ideias são entidades não existentes "Inventadas para o único propósito de fornecer explicações espúrias...

Uma vez que é sabido que faltam as dimensões da ciência física aos eventos mentais ou psíquicos, temos uma razão adicional para rejeitá-los." Em vez de reconhecer que havia uma lacuna na compreensão científica da mente, duas gerações de behavioristas negaram que tal lacuna sequer existisse. Como eles sabiam que acreditavam nisso continua a ser um mistério pois, se eles realmente acreditavam no que escreveram, eles não saberiam que tinham tais crenças, até que as escrevessem-nas ou expressassem-nas em algum outro comportamento!

Mesmo hoje em dia, materialistas eliminativos, como Paul e Patricia Churchland, mantém essa tradição da negação, declarando que toda a experiência subjetiva é ilusória, uma vez que não é detectável por uma terceira pessoa, o modo de observação científica. Tais cientistas e filósofos estão tão firmemente agarrados a sua fé materialista que negam até que exista uma lacuna no conhecimento científico no que diz respeito a experiências subjetivas.

O apogeu do behaviorismo passou, e ele foi substituído pela neurociência, que geralmente reconhece que os processos mentais existem e ainda não são compreendidos cientificamente. Isso é uma indicação de progresso, uma vez que agora a lacuna científica pelo menos é reconhecida. A única evidência empírica que temos para os fenômenos mentais continua a ser relatos instrospectivos em primeira pessoa, mas mesmo assim neurocientistas continuam a marginalizar esse modo de observação como não sendo científica. De certo modo estão certos. Os indivíduos que eles estudam em seus laboratórios, e com cujos relatos em primeira pessoa eles contam, não são profissionais. Normalmente são estudantes universitários (ou pacientes com doenças mentais ou danos cerebrais) sem treinamento formal em observação de suas próprias mentes ou relato de suas experiências. Portanto, toda a ciência de identificar correlatos neurais dos processos mentais está baseada em evidências não cientificas, empíricas e relatos em primeira pessoa.

Alguns neurocientistas declaram observarem “indiretamente” processos mentais quando medem os correlatos neurais, como os físicos de partículas observam indiretamente as partículas elementares medindo seu rastro em uma câmara de bolhas. Mas essa analogia é falsa. As características das partículas elementares são inferidas tendo como base seus efeitos macroscópicos gerados por aceleradores lineares e outros sistemas de mensuração. Não há como observar diretamente as partículas, exceto por seus rastros em câmaras de bolhas e assim por diante.

Portanto, tudo o que sabemos sobre tais partículas é baseado nesses efeitos físicos observáveis. Mas no que diz respeito à mente, nós temos acesso experimental para observarmos diretamente certos fenômenos como pensamentos, imagens mentais, sonhos e outros estados mentais. E quando os observamos diretamente, percebemos que eles não têm qualquer tipo de característica física. Não possuem massa observável ou localização espacial, também não têm qualquer estrutura atômica ou característica física. Embora surjam na dependência de processos específicos do cérebro, isso de modo algum implica, pela lógica, que eles estão localizados no mesmo lugar que os eventos causais neurais. Em suma, a única evidência empírica que temos sobre os fenômenos mentais, ou seja, experiência em primeira pessoa, indica que eles não são físicos.No entanto, os principais cientistas cognitivos insistem que eles devem ser de natureza física. Em outras palavras, eles compulsivamente preenchem essa lacuna do conhecimento com a crença de que todos os fenômenos tem uma explicação física.

Podemos ver um paralelo desse tipo de atitude na história da física. Desde os tempos de Galileu até o final do século XIX, físicos têm sido extremamente bem sucedidos na elaboração de explicações mecânicas para todos os tipos de fenômenos naturais. A mecânica clássica parecia ser a chave para a compreensão de toda a natureza. Mas havia uma lacuna explicativa no que diz respeito ao entendimento da propagação de campos eletromagnéticos no espaço vazio. Esta lacuna foi preenchida pressupondo-se a existência de um éter luminoso, para o qual não houve qualquer evidência empírica. Mas em 1887, uma experiência decisiva foi realizada e demonstrou claramente que o éter não existe. Isto implicava no fato de que não havia explicação mecânica para o eletromagnetismo.

O desenvolvimento posterior da física quântica demonstrou ainda que as explicações mecânicas são inaplicáveis quando se trata de não-localidade e outros aspectos do mundo quântico. Explicações mecânicas ainda são úteis para uma gama limitada de fenômenos naturais, mas não para toda a natureza.

Os cientistas sabem ainda menos sobre os fenômenos mentais do que sobre os campos eletromagnéticos, que eles podem pelo menos medir. Mas os termos "mecanismos neurais" que "sustentam" os processos mentais é de uso comum, como se os neurocientistas já estivessem formulando explicações mecânicas para a geração de fenômenos mentais. Mas nada poderia estar mais longe da verdade. Os cientistas não sabem o que há nos processos neurais que lhes permitem gerar ou influenciar os eventos mentais. Isto é comumente conhecido como a "lacuna explicativa" sobre o problema mente/corpo, mas essa diferença é rapidamente preenchida com as pressuposições materialistas, apesar do fato de as observações introspectivas sugerirem que os fenômenos mentais não tem atributos físicos.

A lacuna na compreensão científica da influência do cérebro sobre a mente é acompanhada por um vácuo ainda maior de conhecimento quando se trata de compreender como processos mentais vivenciados subjetivamente influenciam cérebro e o resto do corpo. Muitos, mas não todos, os neurocientistas insistem que a mente é um epifenômeno passivo do cérebro e, portanto, não tem eficácia causal.

No entanto, a comunidade científica gasta milhões de dólares todo ano, procurando eliminar o "efeito placebo" para determinar, por exemplo, a eficácia de fármacos no corpo. Este eufemismo, “o efeito placebo", naturalmente sugere que o efeito em questão é criado pelo placebo. Mas, se a substância física do placebo efetivamente exercesse tais efeitos, por definição, não poderia ser um placebo! As verdadeiras causas do chamado efeito do placebo são os processos mentais subjetivamente experimentados, tais como esperanças, expectativas e desejos. Mas, em vez de chamar esses efeitos pelo seu nome exato, "efeitos mentais", eles são atribuídos justamente àquilo que, por definição, não produz efeitos ou seja, o placebo. Mas pelo menos ele tem a vantagem de ser físico! Tal linguagem enganadora indica até que ponto o compromisso ideológico com o materialismo distorce a investigação científica.

Assim como ingênuos crentes religiosos propõem explicações divinas ou sobrenaturais para lacunas no conhecimento científico, aqueles que estão nas garras de sua fé no materialismo científico propõem explicações materialistas para preencher essas lacunas. Se os cientistas não tivessem nenhuma outra maneira de estudar os fenômenos mentais que não fosse seus familiares sistemas de medição em terceira pessoa, a sua insistência em encontrar explicações físicas para tudo que estudam seria compreensível. Mas quando eles marginalizam a introspecção, o único meio de observação de fenômenos mentais, em vez de desenvolvê-lo como um meio rigorosos de observação científica, substituem o espírito do empirismo por uma adesão dogmática a suposições não corroboradas, o que sempre foi a maldição do progresso científico.


Talvez uma explicação física para a consciência seja formulada algum dia. Ou talvez, quando os cientistas finalmente entenderem a natureza e as origens dos fenômenos mentais, eles vão descobrir que explicações físicas são tão inaplicáveis à consciência quanto explicações mecânicas são a campos eletromagnéticos. Nós não sabemos o que o futuro trará, mas em vez de insistir em que a consciência esteja de acordo com os suas suposições metafísicas, os cientistas deveriam ser igualmente abertos a explicações físicas e não físicas para a mente. E já que eles têm feito tão pouco progresso no refinamento da introspecção como meio de investigação científica, podem se beneficiar da colaboração com outras disciplinas de investigação, tais como a tradição contemplativa do budismo, que têm uma longa história em desenvolver métodos de primeira pessoa para observar e transformar a mente.



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