Incêndio revela importância do Mercado Público de Porto Alegre para crenças de matriz africana
As chamas que consumiram parte
do prédio do Mercado Público não queimaram apenas paredes, mercadorias,
histórias. Também queimaram fé.
Considerado um dos mais importantes templos
do sul do país, o local faz parte dos rituais cumpridos pelos praticantes das religiões
afro-brasileiras, que acreditam estar ali um ponto de convergência de energias,
além de ser a morada permanente da divindade máxima, um orixá.
Sem o Mercado,
não é possível performar as cerimônias religiosas que têm lugar ali todos os
dias, desde a fundação. Com as portas fechadas, a religiosidade perde seu
principal ponto de contemplação, reverência e prática espiritual.
Eventos como um grande incêndio
suscitam a imaginação de quem crê em misticismo. Mais ainda se o
local em questão tiver a importância e a representatividade do Mercado Público
de Porto Alegre para as religiões de matriz africana. Segundo o presidente do
Conselho Estadual de Umbanda e dos Cultos Afro-brasileiros do Rio Grande do
Sul, Clóvis Alberto Oliveira de Souza, o local concentra energias, o que
aumentaria a suscetibilidade a tragédias como a que ocorreu sábado.
"Esse incêndio é um alerta, pois
nos mostrou o quanto tudo poderia ter sido pior. É um aviso não apenas aos
governantes, mas à sociedade, para que se envolva na segurança e na
fiscalização", comentou.
Para o presidente da Federação
das Religiões Afro-brasileiras, Jorge Verardi, o Mercado é o local de maior axé
da cidade, ou seja, de maior emanação de energia, força e poder. Isso porque
concentra valores importantes como os alimentos, o dinheiro e a fartura. Também
sedia lojas que, mais do que comercializar artigos religiosos, são
representantes da cultura e da religiosidade de herança africana. A
encruzilhada perfeita, segundo os religiosos, também está no ponto central. Por
tudo isso, ali está a união do sagrado e do profano, ao alcance dos fiéis.
"Queremos a reconstrução
imediata. Não fazemos os ritos enquanto as portas estiverem fechadas", afirmou.
A iniciação em muitas religiões
deve começar com o ritual do passeio, nas ruas do Mercado. Caminha-se atirando
moedas e balas de mel pelo chão, como oferenda. Para não deixar de cumprir com
as obrigações religiosas, muitos, como os praticantes do Batuque do Rio Grande do
Sul, farão os rituais em uma das quatro portas de entrada do Mercado.
A lenda da casa do Bará
É conhecida e reverenciada pelos
devotos de praticamente todas as religiões a lenda de que uma divindade teria
sua morada permanente no centro do Mercado Público, na encruzilhada que resulta
da confluência das quatro ruas.
O Orixá Bará, que abre os caminhos, guarda
casas e cidades e representa a fartura estaria assentado, ou seja, fixado em um
objeto por meio de um ritual. Este objeto, chamado de ocutá, teria sido
enterrado no centro do complexo, podendo ser visitado e reverenciado pelos
religiosos.
Há duas versões para a lenda. Uma
delas diz que o Bará foi assentado no objeto e enterrado no coração do Mercado
pelos negros que construíram o prédio, prática comum, feita para atrair
prosperidade.
Outra versão diz que o ritual foi conduzido pelo príncipe
Custódio Joaquim de Almeida, ou Osuanlele Okizi Erupê, nascido na Nigéria, em
1831. Ele seria o filho de um rei africano destronado pelos ingleses que teria
vindo para o Brasil com o título de nobreza e vivido em Rio Grande e Bagé. Aos
70 anos, passou a viver em para Porto Alegre.
O fato é que a crença na
existência de um Bará no coração do Mercado Público atrai os praticantes das
religiões afro para o prédio. Durante a restauração mais recente, um mosaico
foi montado no chão como um monumento para marcar a localização do objeto
sagrado. Em busca do axé deste Bará, os devotos iniciam-se na vida religiosa no
local. Também acreditam que, comprando os produtos com os quais cumprem seus
rituais nas lojas (chamadas por eles de floras) do Mercado, carregam nas
compras a energia do Bará.
Curiosidades:
A encruzilhada perfeita
Está ali, segundo os devotos das
religiões afro-brasileiras, a encruzilhada mais perfeita da cidade, formada
pela confluência das quatro ruas que cortam o Mercado Público. Bem ali no
centro estaria concentrada a maior quantidade de energia. A encruzilhada é o
ponto de encontro para a oferta de sacrifícios, para os pactos e o contato com
as divindades.
O ano de Xangô
Para as religiões de matriz
africana, 2013 é o Ano de Xangô, o orixá dos raios, trovões e, principalmente,
do fogo. Por isso, eventos como o incêndio ocorrido no Mercado Público são
compreendidos pelos praticantes como obra desta divindade.
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