Religião e saúde - Por Ivone Gebara

O desenvolvimento da ciência médica, especialmente a partir do último século, tentou mostrar que a razão conseguia explicar a maioria das doenças e os seus processos de possível cura. 

A fé na ciência e em especial nas diferentes tecnologias da medicina passou a representar uma das expressões da fé do mundo moderno. 

Muito embora esta fé não esteja de forma alguma abalada, há, entretanto, uma volta considerável para os chamados processos alternativos ou processos naturais de cura. Medicina natural, pajelança, pêndulos, cristais, aromas, massagens com barro, chás das mais variadas ervas passam a ser mais um cardápio para os acometidos por diferentes males. E a medicina alternativa se afirma também com preços alternativos, conforme as diferentes classes sociais. 

Mas, não ficamos apenas por aí. Por incrível que pareça, as curas através de milagres voltam a estar na ordem do dia, e agora não mais limitadas ao âmbito da Igreja Católica Romana, outrora única especialista em devoções, aparições e milagres. Passou a entrar em diferentes igrejas de corte pentecostal ou autônomo.

Os programas de televisão e as grandes assembleias religiosas em diferentes localidades dão testemunho do desenvolvimento de novas devoções e da realização de milagres. São multidões que se dizem curadas de dores, de tumores, de cegueira, de paralisia e outros males ocultos que não podem ser revelados publicamente. Como entender este fenômeno que parece à primeira vista não se coadunar com os grandes avanços da ciência e da tecnologia?

Muito embora algumas pessoas considerem estes fenômenos e especialmente os milagres como sendo charlatanismo, há um número crescente de fiéis que os busca e acredita na sua eficácia. E entre estes fiéis estão igualmente pessoas de formação universitária, e até médicos, que fortalecem a convicção de que há forças atuantes nas pessoas para além da medicina corrente. Frequentam as igrejas e dão testemunho da cura de seus pacientes. Mais uma vez ficamos meio desnorteados diante de suas afirmações e posturas consideradas menos científicas.

A enfermidade parece inundar o país. Não só há multidões nas filas dos hospitais pedindo atendimento, mas agora também nos templos. Estes, apesar de ocuparem grandes espaços, estão quase sempre abarrotados de pessoas. Elas percorrem distâncias enormes carregando seus males na esperança de se livrarem deles. 

E a voz dos pastores recordando as palavras de Jesus nos evangelhos ressoa forte ordenando à doença, quase considerada possessão demoníaca, a deixar aquele corpo. Em meio a muita emoção, algo acontece. O fiel treme, chora, ajoelha-se, agradece e testemunha sua cura. Apesar disso, ainda muitas pessoas continuam afirmando que as curas são enganos, armadilhas para os pobres, roubo, corrupção, teatro barato. Outras, talvez mais crédulas creem de fato numa intervenção divina. As interpretações podem ser múltiplas e variadas. Verdades e mentiras podem igualmente coexistir. 

Mas a pergunta que fica em todas estas dramáticas situações é sobre o porquê da acentuação da velha conexão entre religião e saúde. Por que exatamente agora que a ciência já faz clonagens, transplantes e conhece o DNA de tantos seres esses fenômenos parecem se multiplicar? Por que agora, quando a razão parece dominar mais o conhecimento sobre o humano e até sobre a galáxia onde vivemos, comportamentos tão primários e, às vezes até retrógrados, parecem estar se multiplicando?

Algo acontece...  Mas, o fato é que apenas podemos lançar hipóteses, apenas podemos entender algo do sombrio universo da dor humana e da busca de cura.

Para além dos avanços da ciência e para além da crise da saúde que assola tantas regiões do Brasil, para além das más condições de atendimento e da falta de remédios necessários para a maioria da população algo fica incomodando nossa reflexão diante do quadro da busca de milagres e das curas. A falta de condições da saúde pública não explica essa espécie de concentração na busca do milagre. Algo parece desafiar-nos como se uma peça estivesse faltando num quebra-cabeça.

Observando através da televisão algumas pessoas curadas de males diversos percebo como que uma fuga delas da ciência médica. Emigram para outros lugares, os lugares da fé, como se essa multidão quisesse afirmar que a ciência não pode tudo. Há outros poderes que podem mais. A dor humana, a enfermidade, os diferentes estados de doença da alma, as doenças psíquicas não têm possibilidade de receber cura com a tecnologia e a ciência médica. Algo escapa dela e este algo está querendo ser afirmado como uma espécie de nova convicção sobre a finitude humana. 

A finitude da ciência médica reafirma a finitude humana. E com ela revela os próprios limites da ciência médica, sobretudo no reducionismo da complexidade do ser humano a técnicas curativas chamadas científicas. Atestam que a enfermidade não é apenas em uma parte do corpo, mas é todo o nosso ser e nosso mundo que está enfermo. Há algo maior presente na dor das pernas ou na dor de garganta resistente aos remédios de laboratórios. O que seria?

Dentro disso, não haveria algo como a busca de transcendência? Algo que encha de encantamento a vida, que leve a uma experiência do sublime, de gratidão contínua, de sentir-se num mundo mais protegido e mais familiar. Não haveria uma necessidade de apostar no desconhecido, de talvez testar os meus méritos e a resposta do amor divino em relação a mim mesmo? Creio que há uma necessidade de reafirmar que Deus ou o Mistério Maior ainda existe e que ele/ela não me esqueceu. Basta pedir com fé e ter esperança para ser atendido.

Hoje, como no passado as multidões recuperam a saúde, os cegos vêem, os surdos ouvem, os coxos são curados, os paralíticos voltam a andar de muitas maneiras. As ambiguidades, manipulações e mentiras continuam presentes, mas não há como sair delas.

A razão teológica moderna quis interpretar os milagres de Jesus e de seus discípulos de forma simbólica. Fizemos vários tipos de leitura para “desmitologizar” aquilo que nos parecia um mito ingênuo ou uma narrativa que afrontava a razão. Tentamos fazer revolução social com o milagre dos sete pães e dos sete peixes, discursos solidários com a obrigação de dar a segunda túnica. Brigamos com os poderes políticos capitalistas e com os poderes religiosos como se estivéssemos brigando contra César e contra o Sumo Sacerdote. Tentamos dar razão a tudo o que parecia ir além da razão razoável. 

E hoje, muitas vezes mal lemos estes textos que nos inspiraram tanto no passado recente. Talvez a razão teológica revolucionária não esteja mais convencida de sua força. Talvez tenha esquecido que o ser humano é desejo, é sonho, é poesia, é sempre criança e é sempre um velho. Por isso, há outros que retomaram os antigos textos sagrados e deles fizeram sua profissão de fé tornando-se pregadores, curandeiros e milagreiros. Sem dúvida há entre eles ladrões, falsos profetas, assaltantes na calada da noite e em pleno dia. Há ainda os que roubam os órfãos e as viúvas, os que cobram impostos pelo grão de mostarda em meio a Babel e ao Pentecostes em que vivemos.

A doença, ausência de saúde sempre foi considerada por muitas tradições culturais e religiosas como maldição divina, como expressão do descontentamento dos deuses com o portador da enfermidade ou com algum membro de sua família. A doença era igualmente considerada como um castigo e até um corretivo mandado por Deus para educar o fiel transgressor. Ora, se é Deus que a manda ou se é Deus que permite ao demônio de apossar-se do corpo do fiel então só o poder de Deus é capaz de curar.

Hoje esta mesma lógica está presente entre nós muito embora os tempos sejam outros. O que estes comportamentos tão velhos renovados podem nos revelar sobre a humanidade que somos?

Creio que eles nos convidam a pensar que “não só de pão vive o ser humano” embora o pão seja seu sustento.  Eles nos desafiam a reinventar o ser humano para além da ciência e da tecnologia, a redescobrir nosso coração de carne e as razões não razoáveis que lhe dão vida. Enfim, nos revelam que há muita fome que não se sacia com pão industrializado e congelado. Temos fome do pão caseiro dividido no calor da amizade e do aconchego de um sentido do qual não entendemos tudo, mas que está aí simplesmente sustentando nossa vida.







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