Teologia da Libertação e ‘capitalismo como religião’: diálogo com um ‘velho mestre’ – Por Jung Mo Sung
Aproveitando
as férias de julho, fui a Cuba dar um curso sobre "espiritualidade e
desafios do mundo contemporâneo” e passei em San José (Costa Rica) para
conversar com um dos grandes pensadores críticos do nosso tempo, Franz
Hinkelammert.
Alemão radicado na América Latina há mais de 40 anos, é autor de
dezenas de livros, entre eles, "As armas ideológicas da morte” (1976), que
Enrique Dussel considerou como o início da segunda fase da Teologia da
Libertação, a que faz uma crítica teológica à economia, "Crítica da razão
utópica” (publicado em português pela Ed. Argos, 2013), "A maldição que
pesa sobre toda a lei” (Paulus, 2012). Ele, juntamente com Hugo Assmann e Pablo
Richard formaram por décadas o núcleo central da equipe de pesquisa do Dei
(Departamento Ecuménico de Investigaciones) e organizaram nesse centro
"Encontros de cientistas sociais e teólogos” que por mais de 20 anos
reuniram pensadores como Jon Sobrino, Otto Maduro, Elsa Támez, Jorge Pixley,
Xavier Gorostiaga, Enrique Dussel, Julio de Santa Ana, Comblin e tantos outros
(entre esses, eu próprio) que, durante uma semana, dialogavam e debatiam com
entusiasmo desafios da realidade social e a teologia da libertação.
As
conversas que tive com Franz, durante três manhãs, me confirmaram que há ainda
pensadores ligados à teologia da libertação latino-americana, que continuam
produzindo pensamento crítico de alto nível. É claro que o número desses
pensadores diminuiu comparado com as décadas de 1970-80, assim como a exposição
dessas ideias nos meios de comunicação, nas redes das igrejas e editoras, mas a
TL como pensamento crítico continua fermentando e produzindo novos frutos.
A
nossa conversa teve como o tema central "o capitalismo como religião”,
sobre o qual ele e eu já escrevemos algo e pretendemos aprofundar. Falar de
capitalismo como religião está na linha da crítica feita à idolatria do mercado
e do capital pela TL desde a década de 1980 (especialmente pela "Escola
Dei”), mas há elementos novos. É uma abordagem que vai além da teologia no
sentido mais clássico e repensa a própria noção de religião. Para que o
capitalismo seja visto como uma religião, é preciso criticar a noção de
religião inventada no Ocidente e consolidada no século XIX; uma noção que reduz
religião a uma parte da vida humana e social (vida privada e a questões
"espirituais”), que a distingue e separa da esfera do "secular”, seja
a do político ou econômico.
O
nosso diálogo teve como pano de fundo um manuscrito de Walter Benjamin,
"Capitalismo como religião”, onde ele diz: "Pode-se reconhecer no
capitalismo uma religião. Isto é, o capitalismo serve essencialmente à
satisfação de preocupações, tormentos e inquietudes aos quais outrora davam
resposta as chamadas religiões”. Essa discussão pede uma reconsideração da
noção da religião, mas, acima de tudo, nos demanda uma nova compreensão do que
é a modernidade e a tal de "secularização”, que foi objeto de muitos
debates sem tocar no tema do capitalismo como religião; isto é, sem discutir o
possível deslocamento do binômio sagrado-profano das religiões tradicionais
para o sistema econômico.
Se
o capitalismo de fato funciona como uma religião ou se tomou o lugar das
religiões tradicionais, para criticá-lo é preciso entender os meandros da
religião e dos "segredos” dos conceitos teológicos como "sacrifício”,
"dívida/culpa” e "promessa” que apresentam dominação e exploração
como caminho de "salvação”. Não levar em consideração os aspectos
religiosos e teológicos do sistema capitalista é fazer uma crítica ao
capitalismo dentro da compreensão da modernidade que o próprio capitalismo
criou como parte da sua ideologia. Em outras palavras, a crítica teológica tem
um papel fundamental não somente para os "crentes”, mas para toda a
sociedade e o futuro da humanidade.
Pergunta
que surge é se estaremos à altura desse desafio teórico-prático. É claro que
não há uma resposta a priori; esta resposta será construída através de diálogos
e debates. Nesse processo uma dificuldade a ser superada é o fato de que os
livros que colocaram as bases para essa discussão, produzidos nas décadas de
1980-90 (um livro fundamental dessa época é "A luta dos deuses”), estão
fora dos catálogos das editoras e são pouco lidas ou recomendas para as novas
gerações de estudantes, seja da graduação ou do mestrado. Apesar disso, os
"velhos mestres” continuam nos iluminando e estimulando.
[Autor,
com J. Rieger e N. Míguez, de "Para além do Espírito do Império”,
Paulinas, 2012. Twitter: @jungmosung].
Fonte: http://www.adital.com.br
Comentários