Recuperar a humanidade- Por Adelino Francisco de Oliveira
"Antes da vocação dos pais, a
natureza chama-o para a vida humana. Viver é o ofício que lhe quero ensinar.
Saindo de minhas mãos, ele não será, concordo, nem magistrado, nem soldado, nem
padre; será primeiramente um homem"
Jean-Jacques Rousseau, Emílio.
Os dramas que afligem nossa
humanidade desfilam todos os dias no noticiário, a projetar uma espécie de
documentário niilista, abordando múltiplas misérias, expressões de uma forma
desencontrada, equivocada de se viver. Os temas da violência, da desigualdade
social, da pobreza extrema, da ausência de perspectivas existenciais, do
preconceito etc alcançam repercussão, audiência, em uma mídia sensacionalista.
Com a consciência inquieta, visualizam-se cenas de uma crueldade, brutalidade
sem limites, evidenciando os rastros, tropeços de um homem perdido, apartado,
alienado de sua humanidade.
A banalização do mal alcança o
seu nível mais nefasto, sua expressão mais perversa no mal radical,
representado na violência que toma, define o próprio cotidiano, alcançando a
todos, indiscriminadamente, ceifando vidas, existências singulares, sem piedade
alguma. Mas é preciso atenção, pois a violência visível, midiaticamente
repercutida, compõe-se apenas como uma das facetas de uma realidade bem mais
perversa e injusta.
A perplexidade diante de tal
realidade acaba por suscitar ideologias equivocadas, não menos perversas,
fascistas, reacionárias. A sociedade, em seu desespero, passa a ser conduzida
para alternativas simplistas, avançando na direção de culpabilizar tão somente
o agressor, o ator da violência, concentrando todas às saídas na questão da
idade penal e na implacabilidade da pena, sem discutir, debater as causas
primeiras da violência banalizada.
O mal radical, que marcha
pesadamente sobre os indivíduos, devastando o tecido social, deve ser
considerado desde suas raízes mais profundas. É preciso antes mergulhar fundo
no problema, buscar as causas da violência brutal, a compor um quadro caótico
de desintegração social, e não apenas se restringir à ação sobre seus terríveis
efeitos e consequências.
Há muitos outros culpados, que
escondidos na omissão, na indiferença, na hipocrisia, na desfaçatez da
incompetência se apresentam como inocentes, quando na verdade são os mais
terríveis criminosos. Antes de culpar o agressor, especialmente o jovem
violento, é preciso indagar sobre as chances, as oportunidades que lhe foram
dadas para que se humanizasse. Situações de extrema miséria, de total ausência
de perspectivas, sem as mínimas condições básicas para o afloramento das potencialidades
humanas compõem-se como eficazes celeiros a cultivarem e perpetuarem a
barbárie.
A propagação de um estilo de vida
vazio, estéril, pautado no consumo, no sucesso, no poder, na concorrência e
competição, no individualismo exacerbado, na indiferença e insensibilidade, no
status, deve ser urgentemente repensada. É fundamental que se resgate outras
perspectivas de existência, mais condizentes com os apelos, possibilidades de
nossa humanidade. Torna-se cada vez mais evidente que o abandono de princípios
fundamentais, basilares, a ressaltarem as dimensões do amor e do serviço ao
próximo, do perdão e da misericórdia, da justiça e da ética, tem conduzido a
vida humana e a convivência social para uma situação trágica, insuportável.
Alguém, eventualmente, sempre
poderá objetar que todos têm escolhas e que cada um é responsável, em última
instância, por seus atos. Mas toda escolha pressupõe antes liberdade,
alternativas, possibilidades. Sem as condições fundamentais, que são de ordem
tanto material quanto espiritual, a existência humana não tem como alcançar sua
plenitude. O desenvolvimento humano, a vida em abundância, compõe-se como um
processo complexo, a exigir determinadas estruturas de proteção e cuidado
imprescindíveis. A existência humana precisa de uma rede de proteção,
consubstanciada no núcleo familiar, no vínculo com a comunidade, na ação do
Estado. O descuido para com um único jovem, indivíduo, cidadão representa o
fracasso de todo o sistema.
O fato é que o contemporâneo se
depara com a falência da política, a direcionar, definir as bases do construto
social. Sofre-se hoje com a lacuna, total ausência de projetos societários. A
política, desde os seus fundadores gregos, passando também pelos pensadores
iluministas, consiste na arte de se organizar a sociedade visando o bem
coletivo. Por meio da ciência política, estrutura-se a sociedade para que todos
os indivíduos, revestidos da dimensão da cidadania, desfrutem dos bens sociais,
alcançando, na vida coletiva, a realização humana, a própria felicidade.
A concepção de uma política que
seja capaz de compor uma nova ordem social, a suplantar os dramas de uma
humanidade cindida, passa pelo enfrentamento e articulação de todos os temas, a
envolverem o tecido social. As dimensões da segurança pública, da educação, da
moradia, da democratização dos espaços de cultura e arte, da mobilidade urbana,
dos direitos sociais etc são aspectos de uma única e mesma realidade complexa.
É preciso que a atuação política contemple, abarque todas as dimensões da vida
em sociedade, promovendo processos de equidade social e protegendo,
principalmente, os mais fragilizados socialmente.
A política desvela-se como a via
para a construção do bem comum, de uma sociedade que possibilite o pleno
desenvolvimento das potencialidades humanas. É preciso, então, o delineamento
de um novo contrato social, capaz de promover a democratização, a partilha dos
bens materiais e espirituais, incluindo todos os indivíduos em um vasto
movimento de reconstrução, redescoberta da própria identidade humana.
A sociedade, o Estado, as
igrejas, as famílias devem garantir a todos os indivíduos, cidadãos, sobretudo
para aos jovens mais fragilizados, a realização de um projeto primeiro: ser
homem, viver a essencialidade do humano. Promovendo-se um único sujeito,
lapidando-se sua formação, protege-se a todos, ninguém será a vítima: esta é a
grande questão e o ganho de uma sociedade a zelar, sabiamente, pelos seus.
Adelino Francisco de Oliveira é
doutor em Filosofia pela Universidade Católica de Braga-Portugal.
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