A ciência matou Deus? Para muitos cientistas, a resposta é não – Por Gabriella Pacheco

O Saúde Plena conversou com especialistas de áreas diferentes para tentar jogar luz à polêmica questão da relação entre fé e ciência. 

Deus existe? Darwin era um mentiroso? Podemos acreditar que viemos de macacos e também em Deus?

O físico britânico Peter Higgs foi premiado com o Nobel da Física por sua descoberta da 'partícula de deus'. O apelido dado ao bóson de Higgs, que são as partículas de matéria mais elementares, presentes em tudo no planeta, desde plantas à pedras e nós, decepcionou o cientista ateu, defensor de que de divino o universo não tem nada. Contudo, independentemente de sua opinião sobre os diferentes tipos de religião, o britânico criticou publicamente a reincidente postura radical do consagrado biólogo Richard Dawkins contra religiosos. 

Quem também recentemente provocou criacionistas foi o roqueiro Jimmy London, vocalista do Matanza, ao falar, ao vivo no Rock in Rio 2013, sobre o último álbum da banda Alice in Chains, 'The devil put dinosaurs here'. Ao comentar o porquê do título, London afirma que criacionistas acreditam que o diabo criou os dinossauros para destruírem os bichinhos criados por Deus. 

Assim como eles, formadores de opinião de diversas áreas do conhecimento têm há muito tempo disputado um cabo de guerra no que diz respeito a possibilidade ou não da coexistência pacífica de ciência e religião. A disputa ficou mais acirrada, especialmente, com o aparecimento do Criacionismo, doutrina que lê a Bíblia literalmente, incluindo os dois primeiros capítulos de Gênesis, que narram a criação do mundo em sete dias por Deus. 

Mito, fato ou poesia, a discussão causa frisson no meio intelectual, filosófico e teológico. Em meio a tudo isso, resta ao censo popular o sentimento de que se posicionar a favor de uma teoria necessariamente nos faz contrários à outra. Mas afinal de contas, é possível ter fé e, ao mesmo tempo, acreditar no que a ciência nos ensina sobre a vida?

 Em entrevista ao jornal espanhol El Mundo, Higgs afirmou que acredita, apesar de não ser religioso, que ciência e fé não são incompatíveis. 

“O crescimento da nossa compreensão do mundo por meio da ciência enfraquece a motivação que faz de algumas pessoas religiosas. Mas isso não é a mesma coisa que dizer que religião e ciência são incompatíveis. Eu simplesmente penso que algumas das razões tradicionais para a fé estão bem minadas. Contudo, isso não encerra a questão. Qualquer um que é convencido, mas não é um crente dogmático, pode continuar com suas crenças. Isso significa que eu acho que você tem de ser mais cuidadoso sobre todo o debate entre ciência e religião do que algumas pessoas foram no passado”, disse Higgs ao El Mundo.

A premissa indica que não é impossível para uma pessoa acreditar em ambas as coisas. No entanto, muitos especialistas pontuam que não há como contestar o que uma diz, com base na outra, como seria possível entre outras áreas do conhecimento.

Para o historiador e professor do Departamento de Ciências da Religião da PUC Minas, Rodrigo Coppe Caldeira há uma incomensurabilidade entre ciência e religião. “Cada uma tem o seu lugar como fenômeno humano", afirma. 

Assim como defendem outros teóricos, Coppe acredita que essas áreas do conhecimento não se anulam, mas buscam responder perguntas diferentes da psiquê humana: o "como" e o "por quê". "A ciência busca conhecer e explicar como a vida existe, já a religião fala sobre o sentido da vida", comenta.

Coppe ainda ressalta que as origens do pensamento científico estão intrinsecamente ligadas a pensadores religiosos. “Na verdade, quem buscou os avanços físicos e filósofos, no século XVII, eram de religiosos, como René Descartes, Isaac Newton, entre outros nomes, que contribuíram de maneira muito importante para a ciência e não por isso deixaram de se considerar crentes”.

Entender que desde a epistemologia da palavra religião já tem definições diferentes é, na opinião do professor emérito da Universidade de Brasília, Jorge Ponciano Ribeiro, um dos primeiros passos para a discussão. Segundo ele, os grupos religiosos se dividem, assim como os significados da palavra. 

Religare, vem de ligar, e segundo Ponciano, designa o grupo que tem Deus a priori. Relegere, vem de reler, e é associado a um grupo que busca Deus, mesmo que não intencionalmente.

O primeiro, que usa de rituais religiosos para se aproximar desse Deus, é composto por pessoas, em sua maioria, mais simples, de religiosidade natural e tradicional. “Elas podem ser um pouco alienadas mesmo e acabam colocando a religião acima da realidade”, afirma. 

Do outro lado temos pessoas como Sartre e Einstein, que tiveram a impressão de terem descoberto ser possível sim a existência de Deus. São pessoas que tem Deus à sua imagem e semelhança e têm uma profunda relação de intimidade e cumplicidade com ele”.

Contudo, ele destaca: “dizer que Deus não existe porque não conseguimos o provar é uma infantilidade acadêmica e querer dizer que o cientista não pode acreditar em Deus é uma ignorância absoluta”. 

A ideia de que o conhecimento científico e a fé no sobrenatural podem coexistir é reforçada por renomados estudiosos de diversas áreas. No livro e documentário: 'O teste da fé', lançado em Setembro no Brasil, cientistas de algumas das principais universidades do mundo falam sobre seu relacionamento com religião e explicam como, para eles, fé e ciência caminham lado a lado. 

Entre os defensores do 'casamento' estão a coordenadora do Centro de Voos Espaciais da NASA, Jennifer Wiseman e Francis Collins, ex-diretor do Projeto Genoma Humano. Complementam os depoimentos, neurobiólogos, físicos, astrônomos, matemáticos e doutores em teologia, de universidades como Cambrigde, Oxford e o Massachusetts Institute of Tecnology (MIT).

A organizadora do livro e idealizadora do projeto, Ruth Bancewicz (veja a entrevista no final desse texto) conta que a principal proposta do trabalho era mostrar como a fé e a ciência de alguns cientistas caminham juntas sem problemas. Doutora em genética, ela trabalha atualmente no Faraday Institute, na Inglaterra, diretamente em contato com outros pesquisadores crédulos. 

“Essas pessoas realmente pensaram sobre isso e não vêem como um problema ter fé e trabalhar como cientistas. Na verdade, a maioria deles diz que a fé deles os ajuda a apreciar mais suas descobertas cientificas”, comenta. 

“Esse projeto também mostra às pessoas o que realmente acontece na comunidade científica. É fácil ouvir o Richard Dawkings e achar que o que ele diz deve ser o caso para todos os cientistas”, completa.

Ao contrário dos cristãos que lêem a Bíblia literalmente, Bancewicz defende uma leitura mais crítica, ciente que ela não é um livro científico e de que foi escrita antes do advento da ciência. Para ela, a estória contada em Gênesis 1 e 2 usa descrição geral para dizer que Deus fez tudo que há no mundo. A interpretação literal seria como afirmar que "às 9h Deus fez um arbusto, às 9h15 ele fez uma árvore". 

A pesquisadora brinca que, cientificamente, não haveriam minutos o suficiente para todo o trabalho. Curiosamente, a doutrina que propõe a leitura literal da Bíblia é relativamente jovem e antes disso, a maioria das comunidades cristãs no mundo acreditavam em uma leitura mais poética dos primeiros livros de Gênesis. 

"Em meados do século XIX as pessoas não achavam que os livros eram mitos, achavam que era verdade, mas colocada de forma poética e metafórica", explica o teólogo e diretor do projeto 'O teste da fé' no Brasil, Guilherme de Carvalho. Antes disso, Santo Agostinho já defendia a ideia, dizendo que o processo de criação do mundo foi gradual e que Gênesis não deveria ser lido em detalhes.

A linha de pensamento, conhecida no Brasil como criacionismo evolucionário, aceita a explicação da teoria da evolução sobre o desenvolvimento da vida na Terra, mas não tira de Deus a autoria das coisas. O termo é novo e antes seus pensadores eram identificados como evolucionistas teístas. “A adição da palavra criacionismo é mais uma confissão de fé que qualquer outra coisa”, destaca.

O criacionismo evolucionário é um dos melhores exemplos atuais de como ciência e fé podem caminhar juntas em harmonia, o que implica que as limitações de cada uma não são ignoradas. Apesar de acreditar na evolução proposta por Darwin, esses pensadores refutam a ideia de que a teoria seja válida para explicar tudo. 

A experiência moral humana, por exemplo, não é considerada algo passível de explicação biológica. “Para eles, a ciência não pode responder o significado do cosmos, mas sim como as coisas acontecem dentro do tempo e espaço”, pontua.

Paralelo a esse modelo de pensamento também está o criacionismo progressivo, defendido por um outro grupo de pessoas que acreditam que Deus criou o universo e em algumas explicações que a ciência dá para a maneira como ele fez isso. 

“Os evolucionários enfatizam a soberania da ciência em seu próprio campo. Talvez o ponto de diferença entre os dois seja a maneira de interpretar a Bíblia”, afirma.  

No best-seller: 'Deus, um delírio', Richard Dawkins, considerado o líder do pós-ateísmo e um dos intelectuais mais influentes do mundo, deixa claro que despreza a ideia de que qualquer forma de religião mereça respeito e compara a educação religiosa à crianças ao abuso infantil. Centro de várias polêmicas, recentemente o autor chegou a dizer, via Twitter, que uma das faculdades da Universidade de Cambridge tem mais ganhadores do Nobel que todo o mundo mulçumano.

Ao contrário dos ataques midiáticos que faz à religiosos, em seu livro, Dawkins traz argumentos para sua tese. Mesmo assim, ele provoca convictos e também aqueles que chama de religiosos "por inércia", aqueles que desconhecem a possibilidade de crer em algo mais, levando-os a pensar racionalmente e trocar sua crença na religião pela crença na ciência. 

Para ele, "espíritos livres como esses devem precisar só de um pequeno incentivo para se libertar de vez do vício da religião".

Nem todos os ateus são tão radicais quanto Dawkins, contudo, eles concordam que o método da ciência não combina com a crença em um ser sobrenatural. O médico e professor aposentado Luiz Oswaldo Carneiro Rodrigues, coordenador clínico do Centro de Referência em Neurofibromatose do Hospital das Clínicas da UFMG, é categórico ao dizer que considera a crença em qualquer religião ou Deus incompatível com a postura científica.

Considerando que tecnologia e postura científica são coisas diferentes, ele ressalta que é incoerente filosoficamente acreditar nas duas possibilidades. “Tecnologia é o que você faz com o conhecimento científico, é colocá-lo em prática. Ter uma postura científica é acreditar e confiar somente naquilo que você pode medir, comprovar ou que tenha uma base racional”, pontua. 

“O que acho incompatível é acreditar em qualquer coisa metafísica e todas as religiões têm perspectivas metafísicas, acreditando que existem inteligências não comprovadas materialmente”, explica.

Para ele, as teorias que unem ciência e fé são tentativas de se continuar sendo religioso e 'engolir' as demonstrações científicas. “É muito difícil conviver com a realidade que a ciência nos mostra”, comenta. A dificuldade de se achar o sentido da vida e das coisas também é, para ele, um dos motivos que tem levado mais pessoas a aderirem pontos de vista 'em cima do muro'.

“Quanto mais individualista nossa sociedade for, mais difícil fica de encarar esse medo da própria morte e do desconhecido. Entendo a dificuldade que as pessoas têm, mas isso não me faz abandonar a coerência que acho na outra proposta e continuo achando que as duas não são compatíveis”, ressalta.


Já o jornalista e mestre em teologia, Michelson Borges, apesar de firme defensor do criacionismo, argumenta que a prerrogativa é possível sim. Na opinião dele, a religião entra onde a ciência não vai. “Quem disse que a realidade se compõe apenas daquilo que podemos mensurar e que faz parte do chamado 'mundo natural'?”, questiona.

Para ele, o fato de muitos cientistas crerem em Deus mostra que o método científico é limitado no que diz respeito às questões relacionadas com o sobrenatural. “Se a ciência provasse por a mais b que Deus não existe, todos os cientistas seriam ateus. De igual modo, se provasse que Deus existe, todos os cientistas seriam crentes. Mas não é isso o que acontece, justamente porque a ciência, quando bem empregada, trabalha dentro de suas limitações óbvias”, afirma.

Leitura literal da Bíblia é ponto principal de polêmica

Um dos principais motivos de divergência é a leitura literal ou não da Bíblia. Borges considera que partes das escrituras devem ser vistas sim como metáforas e alegorias, contudo, ele sustenta que os livros também contém narrativas históricas factuais. O principal e mais polêmico é o livro de Gênesis, que relata a criação do mundo. 

Para a Teoria do Criacionismo, que surgiu em meados dos anos 1950 nos EUA, a leitura literal do texto dizendo que Deus criou o mundo em sete dias é a verdade sobre o surgimento da vida no planeta e a criação do universo.

Contudo, as provas científicas mostram o contrário. Na versão de criacionistas fundamentalistas, a Terra tem cerca de quatro mil anos de existência, enquanto que a ciência estima que nosso planeta tenha mais de 4,5 bilhões de anos. 

Borges afirma que “a história da criação em Gênesis é um dos relatos factuais que alguns querem que seja mitológico”. “Mitologizar as narrativas bíblicas se tornou muito conveniente para aqueles que não querem se divorciar totalmente da religião ao mesmo tempo em que querem viver como bem entendem. Se a história da criação e da queda (pecado) se tratasse de um mito, toda a teologia bíblica seria jogada por terra”, ressalta.

Ignorância intelectual?

Ao contrário do senso comum que tem postulado muitos religiosos de 'ignorantes intelectuais', Luiz Oswaldo Rodrigues discorda da relação direta entre fé e ignorância. Para ele, o fato de uma pessoa acreditar e ter uma postura filosófica científica ou religiosa não tem nada a ver com a sua capacidade intelectual. 

“Tem a ver com estrutura da personalidade da pessoa, não do caráter dela. Minha impressão é de que a estrutura e criação é que faz a pessoa ter uma menor ansiedade diante da morte e do desconhecido”. 
Já o mestre em teologia Michelson Borges acredita que ciência e fé podem estar caminhando para a intolerância total. Segundo ele, a culpa é da mídia, que estaria, cada vez mais, aplicando aos criacionistas o termo de fundamentalistas, o que para ele, se tornou grandemente pejorativo. 

“Esse estereótipo faz com as pessoas mal informadas vejam os criacionistas como pessoas de mente estreita e até perigosas”, afirma.

O argumento é de que em ambos os lados existem radicalismo e ignorância. “Não podemos tomar o todo pela parte. Há ateus, evolucionistas e religiosos educados, razoáveis e honestos. Esses deveriam lutar para promover o diálogo e o respeito. Só teríamos a ganhar com isso”, destaca.



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