Teologias da Libertação: aproximação global – Por Jorge Claudio Ribeiro
Em abril de 2013 realizou-se a International
Buddhist-Christian Conference1, no Union Theological Seminary - UTS, da
Columbia University em Nova York. O evento colocou em diálogo religiosos
engajados e teólogos da libertação.
A iniciativa foi do teólogo Paul
Knitter e marcou sua aposentadoria da docência no UTS. Pelo Brasil,
participaram Ivone Gebara, Nancy Cardoso, Jung Mo Sung e o
quase-brasileiro José María Vigíl.
Assisti à conferência e aproveitei para
entrevistar os teólogos Ulrich Duchrow, Joerg Rieger e Rosemary
Radford Ruether, que afirmaram a vitalidade e a diversidade da Teologia da
Libertação.
O dinheiro da avareza
Ulrich Duchrow é luterano,
professor de Teologia Sistemática e Ecumênica na Universidade de Heidelberg,
Alemanha. Ele participa de grupos de trabalho com foco em questões envolvendo
teologia, economia e sociedade. Em 1990, fundou Kairos Europa2, uma rede
descentralizada que agrega iniciativas relativas à justiça econômica e
ecológica em colaboração com igrejas, movimentos sociais, sindicatos e
organizações não-governamentais dentro e fora da Europa.
Também fundou a sessão
alemã de Attac (“Associação pela Tributação das Transações Financeiras para
Ajuda aos Cidadãos”)3. Em seus numerosos escritos, esse veterano de lutas
sociais tem sido um crítico do neoliberalismo e do capitalismo global4.
Duchrow lembra que, em 1965,
ministrou aulas no curso do Cesep em São Paulo e esteve em visita a uma CEB de
Itaim Paulista. Em 1969, participou de colóquio com Gustavo Gutierrez e Rubem
Alves.
Enfatiza que “sem libertação não há teologia. A Teologia da
Libertação consiste na redescoberta das origens do cristianismo, daí sua
afinidade com os estudos bíblicos na linha sócio-histórica. Ela só pode ser
intercultural e globalizada, sendo plural na busca de suas raízes”.
Na sua
visão, essa teologia só pode ser diversa, de acordo com os contextos em que
atua: “No Sul, ela trata de suscitar o poder dos pobres, e no Norte se esforça
por ‘abater os poderosos de seus tronos’”.
Essa percepção orienta sua
recente obra: “Transcending greedy Money, interreligious solidarity for just
relations” (“Transcendendo o dinheiro da avareza, a solidariedade
inter-religiosa em prol de relações justas”, não disponível em português), em
coautoria com Franz Hinkelammert.
A primeira afirmação do livro é que a
modernidade passa por um clímax destrutivo com raízes profundas na História.
Assim, a Era Axial, iniciada no Século 8 a.C., desenvolveu novas formas de
comércio baseadas na moeda e na propriedade privada, de política imperial e de
comportamentos baseados na avareza e egocentrismo. Desde então, a crescente
divisão do trabalho atribuiu um papel central ao dinheiro e à propriedade e a
avareza tornou-se valor supremo, tendo sido institucionalizado como juros,
tributos e escravidão, o que terminou por escavar o crescente abismo entre
ricos e pobres.
Em sentido oposto, na Era Axial e nas posteriores também
emergiram movimentos religiosos e filosóficos em direta confrontação com as
tendências de morte, exemplos dessa oposição são as tradições judeo-cristãs,
budistas, gregas clássicas e, posteriormente, as islâmicas que se inspiraram na
espiritualidade axial.
A Modernidade ocidental, fazendo
uso articulado da ciência, tecnologia, economia e política atingiu a crise
atual que põe em risco a sobrevivência da humanidade, mas, em contrapartida,
ela se engaja na busca da humanização e emancipação, contra a acumulação de
capital.
Nesse contexto, as religiões podem promover a vida em dignidade,
através de uma múltipla abordagem, que desmistifica e desafia o sistema: isso
através da promoção dos direitos humanos em todas as áreas da vida social,
inclusive (modernamente) o consumo.
Entretanto, é preciso que as religiões
reconheçam que assumiram um papel ambivalente ao longo da História e que
frequentemente abusaram de seu “tremendo poder sobre os corações e mentes das
pessoas”. Contra esse veneno, as próprias tradições produziram um antídoto:
“É
o critério de que Deus elegeu os pobres, os marginalizados e os excluídos”. E
concluem que uma nova Era Axial é necessária e possível e, se não traz o
paraíso, interrompe o inferno na Terra.
Ocupar a religião
Joerg Rieger é um dos
representantes mais atentos e produtivos da nova geração de teólogos da
libertação. Alemão de nascimento e de tradição metodista, ele é professor de
Teologia Construtiva na Perkins School of Theology, da Southern Methodist
University, Texas.
Ativo conferencista e autor de numerosos livros (dois deles
em português)5, ele propõe pensar teologicamente a economia, política e globalização
e, nesse processo, gerar alternativas concretas.
Para Rieger, no geral, a
teologia se encontra fragmentada em visões exclusivistas, não raro marcadas
pelo ressentimento. Além disso, a teologia falha ao não levar em conta a
dimensão político-econômica da realidade: “É preciso considerar como o Império
nos molda”. Por exemplo, a quem o racismo beneficia?
O racismo foi um modo de
dividir a classe trabalhadora, negros e brancos, por meio da concessão de
modestas vantagens a estes últimos. Rieger se diz perplexo com o fato
de o povo votar contra os próprios interesses, de muitos apoiarem a
ultra-direita republicana e o grupo Tea Party, que se opôs à reforma na área da
saúde.
Também aponta como poucos negros cristãos são sensíveis à Indignados
europeus, preferindo a Teologia da Prosperidade, “que é uma loteria, uma
espécie de corrente em que pouquíssimos ganham”.
Para situar as situações numa
perspectiva mais ampla, Rieger postula a reintrodução do conceito de
classe social, de que muitos estadunidenses desconfiam, devido à análise de
origem marxista. Classe social, aliás, é o tema de seu próximo livro: “Religion,
Theology, and Class: Fresh Engagements after Long Silence”, a sair em Setembro.
Ele lembra que somos uma multidão de 99%, que estamos no mesmo barco e somos
explorados por 1% de ricos. “Saber que estamos no mesmo barco é uma visão
prática que supera a ilusão do individualismo e a solidariedade paternalista.”
Para desenvolver sua Teologia
da Multidão, Rieger dialogou com Toni Negri e Michael
Hardt6 e se baseou nos protestos de massa do movimento Occupy Wall
Street. Nascido no minúsculo Zuccoti Park, esse movimento se alinhou com a Primavera
Árabe, os Fórum Social Mundial e o Fórum Social Mundial.
Tendo
começado em setembro/2011 em Nova York, Occupy espalhou-se por 952
cidades no mundo. Rieger desenvolve sua proposta no livro: “Occupy
Religion, Theology of the Multidude” (“Ocupar a Religião, Teologia da
Multidão”, sem tradução), em coautoria com Kwok Pui-Lan.
Publicado em outubro/2012, “Occupy
Religion” acabou oferecendo uma visão profética e antecipatória que pode
contribuir com o leitor brasileiro na compreensão dos movimentos populares em
curso no Brasil, bem como o papel das religiões e da teologia nesse processo.
Tal como aconteceu com as multidões com as quais Jesus interagia, é possível
ajudar os vários grupos a se verem como agentes da história.
Ele traça a
genealogia de Occupy a partir manifestações como o Social Gospel,
do século 19, e dos direitos civis dos anos 1950 e 60 nos EUA.
Afirmando que as
várias vertentes da Teologia da Libertação continuam relevantes, Rieger desenvolve
uma abordagem interdisciplinar baseada na experiência recente da multidão, ou
os 99%, com suas novas formas de aglutinação, protesto e ensaios de uma
realidade concretamente utópica.
Nesse contexto, ele relata o aprendizado
vivenciado por “protest chaplains” de várias religiões que foram oferecer apoio
espiritual aos “ocupantes” e que, imprevistamente, receberam destes uma lição
de democracia.
Esse contato com a realidade social questionou a vida eclesial
desses capelães7, bem como as representações habituais de um Deus aliado das
elites patriarcais e prisioneiro das estruturas hierárquicas. Maravilhados,
perceberam como Emanuel luta, protesta e propõe um mundo novo nas praças e
ruas, em relação com a multidão.
Deus feminino
Tal como no casório em que Jesus
começou sua vida pública, o vinho fica mais fino no final. Nascida de mãe
católica e pai episcopaliano, sacerdócio feminino atualmente é
professora convidada na Claremont Graduate University.
Ela apresenta uma
produção impressionante, que reúne qualidade e influência à quantidade. “Ela é
a inspiradora de todas nós”, segreda-me Ivone Gebara8. Escreveu 47 livros,
dentre os quais os três volumes do “Dictionary of Women and Religion in
North America”9, além de mais de 600 artigos. Seus temas prediletos são
feminismo, ecofeminismo, Bíblia e cristianismo.
Rosemary é uma
crítica constante da política de guerra, desde o conflito do Vietnã; também é
considerada pioneira na área da Teologia Feminista, mesclada à Teologia
da Libertação, especialmente na Palestina e América Latina.
Para Rosemary, “toda boa
teologia é da libertação. Se não for assim, então é da dominação”. Ela lamenta
que em muitos cursos de teologia não se explicite a conexão entre Evangelho e
justiça: no máximo, se trabalha de forma assistemática o conceito de justiça.
“É ridículo dizer que a Teologia da Libertação está morta porque a União
Soviética e o comunismo acabaram.” A teóloga afirma que, ao contrário, a
Teologia da Libertação nos EUA continua vivíssima. E acrescenta, com humor:
“Por exemplo, a prestigiosa American Accademy of Religion pode ser considerada
uma sessão da Teologia da Libertação...”.
Ela entende que essa teologia se
desenvolve a partir dos vários contextos sociais em que se enraíza e que, nos
EUA, as principais vertentes são a Teologia Negra e Ecofeminista.
Ela considera que a representação
habitual mostra Cristo duplamente masculino: enquanto Deus (masculino) e
enquanto homem (“male”). Essa imagem serve de base para uma falsa normatividade
pela qual as mulheres são consideradas seres incompletos: “Daí o Vaticano dizer
que o anseio por um sacerdócio feminino viola o sacramento”. Para
ela, “violação é o uso do poder sobre o outro, no campo social, de gênero ou raça”10.
Se pudesse, a feminista Rosemary abraçaria
o sacerdócio? Ela é taxativa: “Não quero ser sacerdotisa, imagine ter de me
submeter a diretrizes de algum bispo...”
Notas do autor:
“Enlightenment and Liberation: Engaged
Buddhists and Liberation Theologians in Dialogue” inhttps://www.utsnyc.edu/events-calendar?cid=52&ceid=2529&cerid=0&cdt=4%2F17%2F2013/
http://www.kairoseuropa.de/fix/english.html
http://www.attac.org/
http://www.amazon.com/s/ref=nb_sb_noss?url=search-alias%3Daps&field-keywords=Ulrich+Duchrow&hasWorkingJavascript=1&ajr=2
http://www.amazon.com/Joerg-Rieger/e/B001HN375Y ; http://busca.livrariacultura.com.br/?termo=Joerg%20Rieger. Destaque
para “Além do Espírito do Império”, em coautoria com o brasileiro Jung Mo Sung
e o argentino Néstor Míguez.
Toni Negri e Michael Hardt. Imperio. Rio de Janeiro: Record, 2001.
Há sítios nos vários ambientes da
internet sobre essa experiência. Um bom começo éhttp://www.occupyfaith.com/. Esses
grupos continuam ativos, desenvolvendo atividades e reflexões.
http://www.olhodagua.com.br/detalhes.php?sid=05072013105421&prod=178&friurl=_-TEOLOGIA-ECOFEMINISTA-_&kb=38#.UdbQJJzpjlU
http://www.amazon.com/Rosemary-Radford-Ruether/e/B000APOPJM
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/36109-sacerdocio-feminino-abordagens-diferentes-para-a-validade-da-ordenacao
Jorge Claudio Ribeiro, professor
livre-docente e titular do Departamento de Ciência da Religião da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP.
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br
Comentários