A liberdade de religião precisa ser limitada pelo Estado? - Por José dos Santos Carvalho Filho
Neste ano, participei de um
curso sobre a proteção dos direitos humanos no qual tive a oportunidade de
ouvir afirmações que me levaram a refletir sobre o embate entre a
universalidade dos direitos humanos e o relativismo cultural.
Os participantes
da turma, originários de 28 países com realidades completamente diferentes
entre si, vivenciaram troca de experiências inestimável.
Ocorre que alguns
posicionamentos manifestados durante as aulas foram chocantes para quem pensa
na igualdade de todos e na proteção às liberdades como alicerces do
constitucionalismo. Entre os pensamentos
inusitados, destaco:
1) as mulheres têm dever de obediência em relação aos
maridos e são obrigadas a cumprir todas as suas obrigações conjugais, como
educar os filhos, cuidar da casa e manter relações sexuais quando o patriarca
quiser;
2) não existe lógica em legitimar a prática de certos atos que vão
contra a natureza, como o homossexualismo, mas impedir o incesto;
3) a
poligamia é também uma questão de sobrevivência da espécie humana, na medida em
que as mulheres são maioria na sociedade e representam cerca de 51% da
população; 4) os maiores problemas atualmente enfrentados por muitos Estados
são consequências do reconhecimento da família monoparental.
Essas manifestações me
impulsionaram a produzir este artigo, para refletir sobre os limites do
multiculturalismo e perquirir em que medida um Estado deve promover,
internamente, a proteção do pluralismo cultural.
Boaventura de Sousa Santos
leciona que as pessoas têm o direito a ser iguais quando a diferença as
inferioriza, assim como a ser diferentes quando a igualdade as descaracteriza.
Disso decorre a necessidade de um princípio da igualdade que reconheça as
peculiaridades de cada ser.[1] A
diversidade é um bem que precisa ser protegido.
A propósito, a Declaração
Universal de Direitos Humanos (DUDH) estatui que toda pessoa tem capacidade
para gozar os direitos e as liberdades nela estabelecidos, sem distinção de
qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política
ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou
qualquer outra condição (artigo II).
No mesmo sentido, a Constituição
brasileira estabelece, entre os objetivos fundamentais do Estado, a promoção do
bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer
outras formas de discriminação (artigo 3°, IV).
Portanto, há previsões
normativas que dispensam ampla proteção ao pluralismo, em suas diversas
ramificações. A partir dessas premissas, este artigo analisa a possibilidade de
limitar o direito à diversidade cultural, o que se propõe a examinar na
conjuntura da liberdade de crença ou de religião.
Especificamente sobre essa
liberdade, a DUDH ratifica o dever de proteção dos Estados ao pluralismo e
garante a livre manifestação religiosa ou de crença, pelo ensino, pela prática,
pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em
particular (artigo XVIII). No Brasil, a Constituição consagra igualmente o
direito à liberdade de religião (artigo 5°, VI, VII e VIII).
Nesse contexto, questiona-se
se, diante da obrigação estatal de resguardar o multiculturalismo, o direito
subjetivo fundamental à liberdade de consciência pode ser legitimamente
mitigado. Imaginem-se as hipóteses de uma estrangeira que vive no Brasil e, no
exercício de sua crença, decide encobrir o rosto, sujeitar-se ao marido e
reconhecer-se inferior aos homens; ou de um cidadão que prefere morrer a se
render a tratamento médico contrário às suas convicções; ou, ainda, de pais que
submetem os filhos menores a situações de risco por motivos religiosos.
Pergunta-se: deve o Estado brasileiro, em tais casos, respeitar e proteger
efetivamente a liberdade religiosa? A resposta não é simples.
É certo que os direitos
fundamentais não são absolutos. Favoreu [2] sustenta
que esses direitos podem ser limitados, desde que haja concomitantemente:
I) a
preponderância, no caso concreto, de outros direitos fundamentais ou de
objetivos de interesse geral;
II) a atuação da autoridade competente para fixar
a restrição; e
III) a observância do estritamente necessário, para não
desnaturar o direito fundamental mitigado.
Destarte, em teoria e
observados alguns critérios, é possível restringir a liberdade de religião,
como acontece com qualquer outro direito fundamental. Ainda assim, parece
paradoxal imaginar que um Estado pluralista como o brasileiro possa interferir
em um dos direitos mais íntimos do indivíduo, que é a liberdade de consciência.
As reflexões sobre esse tema
não são novas, pois o assunto já foi judicializado em diversos países e
apreciado, ainda, pela Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH). Tais
precedentes podem nortear diretamente o tratamento da liberdade religiosa pela
ordem jurídica brasileira, além de indicar possíveis limites da diversidade
cultural em Estados pluralistas, logo é relevante o seu conhecimento.
Nos Estados Unidos, há pelo
menos dois casos interessantes que foram julgados pela Suprema Corte. Em Capitol
Square Review and Advisory Board v. Pinette [3], o
Judiciário permitiu a construção de uma cruz nazista em local público, para
efetivar o livre exercício da liberdade de crença pelos adeptos do movimento Ku
Klux Klan; e em Church of the Lukumi Babalu Aye, Inc. v. Hialeah [4], o
Tribunal declarou inconstitucionais normas locais que impediam a realização de
rituais com sacrifício de animais.
A Suprema Corte do Canadá
também possui alguns precedentes interessantes sobre a efetivação da liberdade
de consciência. Em R.C.N.S. 2012 CSC 72[5],
a decisão reconheceu o direito de uma mulher testemunhar em processo criminal
trajando niqab, uma indumentária islâmica semelhante à burca.
Em Alberta
c. Hutterian Brethren of Wilson Colony, 2009 CSC 37 [6],
reconheceu-se que a convicção religiosa dos Huteritas, segundo a qual não se
pode ser voluntariamente fotografado, é justificativa legítima para não exigir
fotografia na permissão para conduzir veículos.
Esses casos revelam a adoção
de uma posição liberal em relação à manifestação religiosa; a função estatal
consiste em maximizar a proteção da diversidade, independentemente de valoração
moral da crença (casos do Ku Klux Klan e do sacrifício de animais) ou
dos impactos para a ordem pública (casos da autorização para habilitação
veicular sem fotografia e do testemunho com rosto encoberto). Essa concepção
pode ser definida como pluralismo liberal clássico. Ela não é, contudo,
uniformemente acolhida em todo o mundo.
Na Alemanha, o Tribunal de
Grande Instância (Landgericht) de Köln condenou a circuncisão por motivos
religiosos, por constituir afronta à integridade física das crianças. Entendeu
a Corte que o direito de os pais educarem, inclusive transmitindo preceitos
religiosos, não se sobrepõe ao desenvolvimento da personalidade individual e à
preservação corporal dos filhos. [7][8]
A França decidiu limitar a
liberdade de crença e proibir legalmente [9] o
porte de vestimentas que encobrem o rosto em locais públicos. Na exposição de
motivos para a adoção da referida lei, explica-se que a dissimulação da face
dificulta a identificação da pessoa, comprometendo a segurança pública em
ambientes como bancos e escolas, além de configurar um atentado à liberdade das
mulheres, por negar o valor republicano da igualdade.[10]
Registre-se
que o Conseil Constitutionnel decidiu que essa lei proibitiva é conforme à
Constituição francesa, na medida em que as mulheres que escondem os rostos,
voluntariamente ou não, encontram-se em situação de exclusão e de inferioridade
manifestamente incompatível com os princípios constitucionais da liberdade e da
igualdade.[11]
Em
outro julgamento, o Conselho Constitucional assentou que a cláusula de
consciência não pode ser invocada pelas autoridades francesas para recusarem a
celebração de casamento entre pessoas do mesmo sexo. [12]
Por fim, a Corte Europeia de
Direitos Humanos foi acionada para julgar suposto atentado à liberdade
religiosa de um homem que, por convicção religiosa, era obrigado a portar
turbante em tempo integral, mas foi compelido a retirar o signo durante
fiscalização de segurança de um aeroporto. Para solucionar o caso, a CEDH
invocou o artigo 9° da Convenção Europeia de Direitos Humanos, segundo o qual a
liberdade de religião pode ser restringida por medidas de segurança pública. [13]
Esses precedentes europeus
caracterizam-se pela implementação de medidas concretas que limitam a liberdade
religiosa para garantir outros valores constitucionais. Na França, existem leis
que proíbem o porte de signos religiosos em escolas e a dissimulação da face em
locais públicos, cuja finalidade é compatibilizar a diversidade cultural com os
princípios da liberdade individual e da igualdade, além de impedir o uso da
religião como mecanismo de dominação. Esse comportamento configura clara
filiação a um pluralismo intervencionista com escopo integrador (pluralismo de
integração). As decisões da Alemanha e da CEDH também demonstram, ainda que
pontualmente, uma inclinação para essa corrente, distinta do pluralismo liberal
clássico.
A experiência brasileira não
permite incluir o país, com precisão, em nenhum dos dois grupos. Por um lado, a
própria Constituição ressalva a possibilidade de prestação alternativa aos que
se recusarem a cumprir obrigações a todos imposta (artigo 5°, VIII),
respeitando a pluralidade de valores.
Por outro lado, o Judiciário local tem
sido categórico no que concerne às transfusões de sangue para testemunhas de
Jeová, ao assentar que o direito à vida é indisponível e prevalece sobre a
liberdade religiosa, motivo pelo qual a hemotransfusão deve ser realizada
contrariamente à vontade dos pacientes. Notadamente, quando a questão envolve
incapazes ou pessoas temporariamente impossibilitadas de se manifestar, a
ausência de consentimento dos responsáveis não obstaculiza a intervenção
cirúrgica.[14]
A laicidade à brasileira
comporta, ainda, algumas peculiaridades que potencializam a dificuldade de
classificar o nosso pluralismo de crenças entre liberal clássico e de
integração, a exemplo da menção a Deus no preâmbulo da Constituição[15],
do reconhecimento de efeitos civis ao casamento religioso (artigo 226,
parágrafo 2°, CF) e da utilização ostensiva de símbolos em ambientes públicos,
como a cruz no plenário do Supremo Tribunal Federal.
Posto isso, é notória a
complexidade para promover o secularismo. A questão se torna ainda mais
delicada quando o Estado adota medidas concretas que limitam o exercício da
liberdade religiosa, a fim de garantir valores objetivos como as liberdades, a
igualdade e o próprio pluralismo.
Há muitos trabalhos que
criticam certas restrições à liberdade de religião[16],
mas refletindo sobre todos os casos polêmicos apresentados, penso que essa
liberdade deve, sim, ser limitada quando o seu exercício entrar em conflito com
outros direitos fundamentais. O Estado não deve assistir passivamente a atos de
racismo, tortura, degradação da saúde e da integridade física, perturbação da
segurança pública, discriminação ou disseminação de ódio, em nome da
diversidade ou do respeito a tradições culturais.[17]
Trata-se de medida para
evitar a autodestruição do multiculturalismo. Considerando-o como um dos
fundamentos da liberdade de crença, consciência ou de religião, não se podem
admitir práticas que vão de encontro a outros valores constitucionais e se
transformem em mecanismos de segregação e/ou de dominação, corroendo o alicerce
de uma sociedade plural: a tolerância.
Nesse sentido, os
precedentes europeus examinados demonstram bem como compatibilizar a
autodeterminação com a proteção de bens jurídicos indisponíveis, em um contexto
que propicia a emancipação dos cidadãos. Repita-se, contudo, que as restrições
aos direitos fundamentais estão evidentemente condicionadas à atuação de
autoridade competente e à imposição apenas dos limites estritamente
necessários.
Sendo assim, penso que é
preciso evoluir do multiculturalismo liberal clássico para o pluralismo de
integração, que não aceita respeitar a tradição religiosa quando a intervenção
estatal é justificada pela promoção de valores objetivos igualmente dignos de
tutela e que preponderam nos casos de conflito.
[1]
SANTOS, Boaventura de Sousa. Reconhecer para libertar: os caminhos do
cosmopolitanismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003,
p. 56.
[2]
FAVOREU, Louis; ROUX, André et al. Droit constitutionnel. 16. ed. Dalloz:
Paris, 2013, p. 903-905.
[3]
Decisão disponível em:
[4]
Decisão disponível em:
[5]
Decisão disponível em:
[6]
Decisão disponível em:
[7]
FERCOT, Céline. Circoncision pour motif religieux: le prépuce de la discorde.
In: Actualités des droits-libertés du CREDOF, 13 juillet 2012.
[8] Texto
original do julgamento disponível em:
[9]
Loi n. 2010-1192 du 11 octobre 2010 interdisant la dissimulation du visage dans
l'espace public. Disponível em:
[10]
Relatórios da Assembleia Nacional da França relativos à Lei 2010-1192,
disponíveis em:
[11] Décision
n. 2010-613 DC du 7 octobre 2010. Disponível em:
[12] Décision
n. 2013-353 QPC du 18 octobre 2013. Disponível em:
[13]
Decisão disponível em:
[14]
Por todos, citam-se: Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. 6ª
Câmara Cível. Apelação Cível n. 595000373, Rel. Sérgio Gischkow Pereira,
Julgado em 28/3/1995 ; Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 18ª Câmara
de Direito Privado. Apelação com revisão n. 1234304400, Rel. Flávio Pinheiro,
julgado em 18/6/2002; e Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. 18ª
Câmara Cível. Agravo de Instrumento n. 2004.002.13229. Des. Carlos Eduardo
Passos, julgamento em 5/10/2004.
[15]
Registre-se, contudo, que o STF já decidiu que o preâmbulo da Constituição não
tem valor de norma constitucional (Cf.: Ação Direta de Inconstitucionalidade
2.076, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 8/8/2003).
[16]
Por todos, citam-se: FONSECA, Ana Carolina da Costa e. Autonomia, pluralismo e
a recusa de transfusão de sangue por Testemunhas de Jeová: uma discussão
filosófica. Revista bioética, v. 19, n. 2, 2011, p. 485-500; BARROSO,
Luís Roberto. Legitimidade da recusa de transfusão de sangue por
testemunhas de Jeová: dignidade humana, liberdade religiosa e escolhas
existenciais. Disponível em: <2013 .="" dl="" http:="" testemunhas-jeova-sangue.pdf="" www.conjur.com.br="">. Acesso em: 28
nov.; e GIACOMET, Daniela. Sobre a proibição do uso de símbolos religiosos
pelos alunos das escolas públicas francesas: uma questão de direitos humanos. Revista
da Procuradoria do Estado do Rio de Janeiro, v. 66. 2011, p. 219-236. 2013>
[17]
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional dos direitos
humanos. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 207-208.
José
dos Santos Carvalho Filho é doutorando em Direito Público pela
Sciences-PO/Aix-Marseille Université (França) e analista judiciário do Supremo
Tribunal Federal.
Zé Machado (Advogado
Autônomo - Trabalhista)
Fonte: http://www.conjur.com.br
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