O Tempo da Grande Transformação e da Corrupção Geral - Por Leonardo Boff
Normalmente as sociedades se
assentam sobre o seguinte tripé: na economia que garante a base material da
vida humana para que seja boa e decente; na política pela qual se
distribui o poder e se montam as instituições que fazem funcionar a convivência
social; a ética que estabelece os valores e normas que regem os comportamentos
humanos para que haja justiça e paz e que se resolvam os conflitos sem recurso
à violência.
Geralmente a ética vem acompanhada por uma aura espiritual que
responde pelo sentido último da vida e do universo, exigências sempre presentes
na agenda humana. Estas instâncias se entrelaçam numa sociedade funcional, mas sempre nesta
ordem: a economia obedece a política e a política se submete à ética.
Mas a partir da revolução
industrial no século XIX, precisamente, a partir de 1834, a economia começou na
Inglaterra a se descolar da política e a soterrar a ética. Surgiu uma economia
de mercado de forma que todo o sistema econômico fosse dirigido e
controlado apenas pelo mercado livre de qualquer controle ou de um
limite ético.
A marca registrada deste mercado
não é a cooperação, mas a competição, que vai além da economia e impregna todas
as relações humanas. Mais ainda criou-se, no dizer de Karl Polanyi, ”um
novo credo totalmente materialista que acreditava que todos os problemas
poderiam ser resolvidos por uma quantidade ilimitada de bens materiais” (A
Grande Transformação, Campus 2000, p. 58). Esse credo é ainda hoje assumido com
fervor religioso pela maioria dos economistas do sistema imperante e, em geral,
pelas políticas públicas.
A partir de agora, a
economia funcionará como o único eixo articulador de todas as instâncias
sociais. Tudo passará pela economia, concretamente, pelo PIB. Quem estudou em
detalhe esse processo foi o filósofo e historiador da economia já referido,
Karl Polanyi (1866-1964), de ascendência húngara e judia e mais tarde
convertida ao cristianismo de vertente calvinista.
Nascido em Viena, atuou na
Inglaterra e depois, sob a pressão macarthista, entre Toronto e Canadá e a Universidade de Columbia nos EUA. Ele demonstrou que “em vez de a
economia estar embutida nas relações sociais, são as relações sociais que estão
embutidas no sistema econômico”(p. 77). Então ocorreu o que ele chamou A Grande
Transformação: de uma economia de mercado se passou a uma sociedade de mercado.
Em consequência nasceu um novo
sistema social, nunca antes havido, onde a sociedade não existe apenas os
indivíduos competindo entre si, coisa que Reagan e Thatcher irão repetir à
saciedade. Tudo mudou, pois tudo, tudo mesmo, vira mercadoria.
Qualquer bem
será levado ao mercado para ser negociado em vista do lucro individual:
produtos naturais, manufaturados, coisas sagradas ligadas diretamente à vida
como água potável, sementes, solos, órgãos humanos. Polanyi não deixa de anotar
que tudo isso é “contrário à substância humana e natural das sociedades”. Mas
foi o que triunfou especialmente no após-guerra. O mercado é “um elemento útil,
mas subordinado à uma comunidade democrática” diz Polanyi. O pensador está na
base da “democracia econômica”.
Aqui cabe recordar as
palavras proféticas de Karl Marx em 1847 Na miséria da filosofia: ”Chegou,
enfim, um tempo em que tudo o que os homens haviam considerado inalienável se
tornou objeto de troca, de tráfico e podia vender-se. O tempo em que as
próprias coisas que até então eram coparticipadas, mas jamais trocadas; dadas,
mas jamais vendidas; adquiridas, mas jamais compradas, virtude, amor, opinião,
ciência, consciência etc., em que tudo passou para o comércio. O tempo da
corrupção geral, da venalidade universal ou, para falar em termos de economia
política, o tempo em que qualquer coisa, moral ou física, uma vez tornada valor
venal é levada ao mercado para receber um preço, no seu mais justo
valor”.
Os efeitos socioambientais
desastrosos dessa mercantilização de tudo os estão sentindo hoje pelo caos
ecológico da Terra. Temos que repensar o lugar da economia no conjunto da vida
humana, especialmente face aos limites da Terra.
O individualismo mais feroz, a
acumulação obsessiva e ilimitada enfraquece aqueles valores sem os quais
nenhuma sociedade pode se considerar humana: a cooperação, o cuidado de uns
para com os outros, o amor e a veneração pela Mãe Terra e a escuta da
consciência que nos incita para bem de todos.
Quando uma sociedade se
entorpeceu como a nossa e por seu crasso materialismo se fez incapaz de sentir
o outro como outro, somente enquanto eventual produtor e consumidor, ela está
cavando seu próprio abismo. O que disse Chomski há dias na Grécia (22/12/2013)
vale como um alerta:
”aqueles que lideram a corrida para o precipício são as
sociedades mais ricas e poderosas, com vantagens incomparáveis como os USA e o
Canadá. Esta é a louca racionalidade da ‘democracia capitalista’ realmente
existente.”
Agora cabe a retorção ao There
is no Alternative (TINA): Não há alternativa: ou mudamos ou pereceremos
porque os nossos bens materiais não nos salvarão. É o preço letal por termos
entregue nosso destino à ditadura da economia transformada num “deus salvador”
de todos os problemas.
Com o economista e educador Marcos
Arruda escrevemos: Globalização: desafios socioeconômicos, éticos e
educacionais, Vozes, 2001.
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