Religião é única alternativa a facções, diz ex-preso que virou pastor no MA – Por João Fellet
O que sente um preso ao sair de
Pedrinhas, presídio em São Luís que está entre os mais violentos do Brasil,
palco de decapitações e de 62 mortes nos últimos 12 meses?
Marcelo Jorge Araújo Rodrigues,
que em novembro passado deixou o presídio ao encerrar sua segunda temporada
atrás das grades, surpreende na resposta: "Fiquei triste".
A explicação para o sentimento,
diz ele, tem a ver com o fato de que, pouco antes de sua captura, ele se
tornara um pastor evangélico. "Saí e senti saudades dos
irmãos que ficaram lá presos, a quem pregava, que me escutavam. Aquilo tudo foi
muito doído", conta.
Na primeira vez que deixou a
prisão, porém, Rodrigues diz ter se sentido de outra forma. Ele estava preso,
também em Pedrinhas, desde 2005 por assalto. Queria tanto sair da cadeia que,
em 2008, ao receber uma autorização judicial para passar as festas de fim de
ano com os sete filhos, não voltou mais. "Parecia que tinha nascido de
novo".
Segundo crime
Foragido, em pouco tempo
cometeria outro crime, ao esfaquear seu sogro até a morte. "Estava
drogado, só fiquei sabendo o que tinha feito no dia seguinte". Apesar
disso, não foi achado pela polícia e seguiu em liberdade. Foi só então que ele diz ter
tomado a decisão que, segundo ele, mudaria o curso da sua vida: converter-se à
Igreja Evangélica Unidos por Cristo.
E por quê? "Por cansaço da
vida do crime, por não compensar e não valer nada. E o chamado de Deus." Rodrigues logo abriria o seu
próprio templo em São Luís, uma casinha de madeira sob uma ponte que cruza o
rio Anil, na favela do bairro Jaracati.
A BBC Brasil visitou a igreja,
batizada de Fogo Puro, com capacidade para cerca de trinta pessoas. As paredes
são forradas com papel amarelo; o teto, com papel azul. As cerimônias contam com uma
banda com dois violões, teclado, bateria e outros oito instrumentos de
percussão. Para manter a casa limpa, pede-se aos fiéis que deixem os sapatos na
entrada. O capricho no templo contrasta com o entorno, onde lixo, ratos e
excrementos se acumulam sob as tábuas que conectam as casas sobre o mangue.
Rodrigues diz que, após erguer a
igreja, em 2009, pôs fim a uma trajetória iniciada aos 12 anos, quando começou
a se envolver com uma gangue por "influências". O primeiro assalto, diz ele,
ocorreu aos 15, poucos anos após largar a escola, na quinta série. Às vezes,
era pego pela polícia. As capturas, segundo Rodrigues, eram seguidas por
sessões de tortura para que confessasse os crimes e delatasse companheiros.
"Já fui levado para o mato,
amarrado, pendurado de cabeça para baixo no abismo, já fui torturado dentro do
tanque, apanhei muitas ripadas na cabeça e não podia colocar a mão, que
aumentava de dez em dez." Certa vez, diz que um policial
"arrebentou" seu céu da boca com um fuzil. Também afirma ter passado
pela "tortura do saco": "colocam um saco na tua cabeça, tu
desmaia, jogam água. E todo tempo naquela opressão, pensando que vai
morrer."
As piores lembranças, porém, são
das duas vezes em que diz ter tido unhas removidas com alicate. "É uma
sensação de arrancar um pedaço da gente estando vivo". Mesmo assim, afirma ter resistido
à violência sem abrir a boca, respeitando a regra entre os criminosos que pune
delatores com a morte. E como tampouco confessava os crimes, diz que sempre
acabava liberado por falta de provas.
Rebelião
"Invasão é choque, gás de
pimenta, tiro de borracha. Atiram nas pessoas sem nenhum respeito. Para eles a
gente não é nenhum ser humano, é bicho. Isso transforma o homem, que já está
preso como animal, e ele fica mais revoltado"
Após o assalto em 2005, no
entanto, Rodrigues foi finalmente condenado e levado a Pedrinhas pela primeira
vez. Logo de cara enfrentou uma rebelião, em que os presos cobravam melhores
condições.
Naquele momento, diz ele, "o
medo não é dos detentos: o medo é a polícia invadir e matar todo mundo, como no
Carandiru", diz Rodrigues, citando o massacre em outubro de 1992 na antiga
Casa de Detenção de São Paulo, quando 111 presos foram mortos.
Rodrigues ainda enfrentaria em
Pedrinhas muitas outras rebeliões e intervenções policiais. "Invasão é
choque, gás de pimenta, tiro de borracha. Atiram nas pessoas sem nenhum
respeito. Para eles a gente não é nenhum ser humano, é bicho." "Isso transforma o homem,
que já está preso como animal, e ele fica mais revoltado."
Após o primeiro motim, Rodrigues
diz ter sido deixado numa quadra sem cobertura por quatro dias, sob sol e
chuva. Com o tempo, adaptou-se às novas condições e incorporou o código de
conduta dos presos, inclusive atacando "jacks" (estupradores), "caguetas"
ou "X9" (delatores).
Esses detentos, segundo ele, eram
punidos com a morte. "Era a lei imposta dentro do presídio, a lei do
crime, e eu vivia na lei do crime naquele tempo."
Conversão
Depois que se tornou pastor,
porém, Rodrigues diz que passou a rejeitar todas as punições do código da
prisão.
Ele afirma que, se evangélicos
voltam ao crime, é porque não se converteram para valer. Mas sempre há uma nova
chance, diz o pastor, que cita passagens bíblicas que garantiriam o perdão
divino a convertidos a despeito de pecados prévios:
"Nenhuma condenação há
para os que estão em Jesus". "Se alguém está em Cristo, nova criatura
é; as coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo". "Fiz um voto diante de Deus
que é melhor ele me preparar e me levar logo do que eu voltar a comer o mesmo
vômito que comia no passado (em Pedrinhas)"
Em março de 2013, quando já
construíra sua igreja e atuava como pastor, Rodrigues foi capturado pela
polícia pela morte do sogro e para cumprir o resto da primeira condenação e
levado a Pedrinhas outra vez. Na época, jornais de São Luís relataram que a
polícia havia prendido um "bandido que se passava por pastor".
"Eles discriminaram minha
imagem, não acreditando no Evangelho." Ainda assim, Rodrigues recortou todas
as reportagens e as guarda numa pasta vermelha. De tempos em tempos, exibe-as
para os fiéis para mostrar "que é possível deixar o crime para trás".
Na segunda passagem por
Pedrinhas, ele diz ter convertido mais de 30 presos. E mesmo após sair em liberdade
condicional em novembro, enquanto aguarda ser julgado pela morte do sogro,
continua frequentando o presídio para celebrar cultos. Rodrigues diz que, além de
permitir que os presos passem uma borracha nos seus erros, "confessar
Cristo é o único caminho se o homem decide sair de uma facção ou outra".
Só assim, afirma ele, as cinco
gangues que dividem o controle de Pedrinhas permitem que um integrante deixe o
jogo, desde que o faça de maneira definitiva. Rodrigues se diz seguro quanto à
sua decisão.
"Fiz um voto diante de Deus que é melhor ele me preparar e me
levar logo do que eu voltar a comer o mesmo vômito que comia no passado". Ainda assim, caso seja condenado
e tenha de voltar a Pedrinhas, ele se diz "preparado para voltar como um
homem de Deus para pregar a palavra, sem medo".
'Garantia da normalidade'
A BBC Brasil pediu entrevistas
com representantes do governo maranhense para tratar das denúncias de Rodrigues
quanto à violência que teria sofrido dentro e fora de Pedrinhas.
O governo optou por responder por
e-mail, dizendo que "o trabalho da Polícia Militar é de garantir a
normalidade no sistema penitenciário maranhense, fazendo a segurança dos presos
e realizando revistas para evitar a entrada de drogas, armas e celulares nas
unidades prisionais".
Segundo o governo, todo o
trabalho dos policiais é acompanhado por órgãos de Justiça e de defesa dos
direitos humanos. O Estado não se pronunciou sobre
as acusações de tortura fora das prisões nem sobre os crimes cometidos entre os
presos.
Fonte: http://www.bbc.co.uk
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