Fé, fome, suor e sangue. Religiosidade e mística nordestina. Entrevista especial com Paulo Suess - Por Andriolli Costa

“Vida espiritual significa vigilância sobre um projeto civilizatório, capaz de alienar-nos de nós mesmos, do outro e do mundo. O tema do: 

13º Intereclesial de CEBs, Justiça e Profecia a Serviço da Vida

É expressão dessa vigilância em defesa do bem viver para todos e do discernimento crítico”, destaca o religioso.

Em janeiro deste ano a cidade de Juazeiro do Norte (CE), terra de Padre Cícero, abriu as portas para fiéis de vários outros padrinhos. As fileiras dos romeiros engrandeceram com a presença dos mais de 5 mil participantes do 13º Encontro Intereclesial das Comunidades Eclesiais de Base - CEBs, cujo tema foi: Justiça e Profecia a Serviço da Vida. 

Além das delegações, estiveram presentes bispos, padres, lideranças indígenas e membros de várias outras religiões (mesmo as não-cristãs). De acordo com o Paulo Suess, alemão radicado no Brasil, o que mais marcou o encontro foi a força da mística nordestina. 

Em uma região onde a religiosidade se mistura ao imaginário dos beatos e beatas, dos padres messiânicos e cangaceiros, a força da religiosidade popular se manifesta de maneiras únicas, ainda que em diálogo com inquietações de todo o Brasil. Assemelham-se nas lutas por justiça e lutas justiceiras, nos messianismos políticos e mesmo nas loucuras messiânicas (como no emblemático caso da Pedra do Reino). 

“Em cada um de nós, a religião pode alimentar desespero e esperança. Saber para que lado do muro se deve pular é decisão da fé. Mas a fé não é necessidade, é opção.”

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Suess destaca as mudanças na visão da religiosidade popular a partir do Concílio Vaticano II, o papel da espiritualidade na vida contemporânea, os desafios da igreja e da sociedade e a busca pelo Bem Viver (Sumak Kawday), baseado na simplicidade, na vida em comunidade, na comunicação e no equilíbrio. 

“O equilíbrio vivencial encontra-se nas relações que aparentemente são caracterizadas por oposições ou contradições: o indivíduo se desenvolve na comunidade, o trabalho integra o lazer (dança, música, arte), o jejum faz parte do comer. O equilíbrio entre essas oposições garante a vida em sua plenitude”, defende o religioso.

Paulo Suess, padre, doutor em Teologia Fundamental com um trabalho sobre Catolicismo popular no Brasil. Em 1987 fundou o curso de Pós-Graduação em Missiologia, na Pontifícia Faculdade Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo, onde foi coordenador até o fim de 2001. Recebeu o título de Doutor honoris causa das Universidades de Bamberg (Alemanha, 1993) e Frankfurt (2004). 

É assessor teológico do Conselho Indigenista Missionário – Cimi e professor no ciclo de pós-graduação em missiologia, no Instituto Teológico de São Paulo – ITESP. Entre suas publicações, citamos Dicionário de Aparecida. 40 palavras-chave para uma leitura pastoral do Documento de Aparecida (São Paulo: Paulus, 2007).

Confira a entrevista:

IHU On-Line - Uma das grandes dificuldades das confissões religiosas nos dias de hoje é vincular a espiritualidade às práticas do cotidiano. Muitos enxergam uma fratura entre o reino de Deus e a vida material, como se fossem espaços dissociados. Como as CEBs colaboram para a construção de pontes entre os "dois mundos"?

Paulo Suess – Na passagem pelos documentos doConcílio Vaticano II (1962-65) aprendemos que a “autonomia das realidades terrestres” está vinculada à responsabilidade da humanidade “perante os seus irmãos e a história”. Ao mesmo tempo, ela não está desvinculada da ordem da criação.

A autonomia se desdobra na liberdade da autodeterminação e da criatividade, e como tal é constitutiva para a dignidade humana. A criação do mundo continua nas “práticas do cotidiano” em todas as suas dimensões. Por isso não faz sentido falar em “fratura entre o reino de Deus e a vida material”, porque nem o reino de Deus está desprovido da vida material, nem “a vida material” está desprovida do espírito.

A física quântica nos esclareceu sobre o fato de que no fundo da “vida material” encontra-se energia, luz, vida, espírito, processos em mutação permanente. As CEBs vivem esses processos de encarnação na vida. Suas raízes têm asas! Aprenderam no seguimento de Jesus que a vida material nunca é o fim último nem realidade definitiva, e que a vida espiritual está embutida na terra e na água, na dor cotidiana e na morte que é passagem.

IHU On-Line - Como evangelizar sem alienar? Ou seja, é possível viver em espiritualidade mantendo um pensamento crítico?

Paulo Suess – O que é “alheio” e produz alienação, e o que é “próprio” e fortalece a identidade? A relação entre ambos é resultado de acordos, consensos e negociações históricas. Tanto “alienar” como “pensamento crítico” pressupõem um fundo de valores e normas constitutivos e assumidos em liberdade por uma determinada comunidade. Quem se “aliena”, se afasta desses valores que compõem uma visão do mundo compartilhada. O pensamento crítico aponta para esse distanciamento da visão do mundo compartilhada e reivindica a volta ao “ideal” abandonado.

A proposta comum das CEBs, seu ideal, é sua articulação entre fé e vida. Nas CEBs, a relevância da fé é permanentemente aferida a uma vida na qual o fruto do trabalho de todos é repartido igualmente entre todos e apropriado em harmonia com a natureza, tendo particularmente em vista as futuras gerações. O “pensamento” crítico, inerente ao Evangelho, fortalece a “espiritualidade”.

A vida espiritual, como as CEBs a compreendem, faz um esforço permanente para resistir contra certo “essencialismo nas nuvens” e fora dos contextos e da história. Vida espiritual significa vigilância sobre um projeto civilizatório, capaz de alienar-nos de nós mesmos, do outro e do mundo. O tema do 13º Intereclesial de CEBs “Justiça e Profecia a Serviço da Vida” é expressão dessa vigilância em defesa do bem viver para todos e do discernimento crítico.

IHU On-Line - De que forma o trabalho promovido pelas CEBs dialoga com a lógica do bem viver (sumak kawsai)?

Paulo Suess – O bem viver, como está inscrito nas Constituições da Bolívia e do Equador, é um processo de conquistas e esforços históricos permanentes contra tudo que estorva a vida de pessoas, comunidades e sociedades. No horizonte dessa luta está a transformação do Estado do Bem-Estar para poucos em um Estado do Bem Viver para todos (fim da sociedade de classes e dos privilégios) e para sempre (memória dos antepassados, projeto para hoje e para as futuras gerações).

As comunidades construídas por beatos e beatas nordestinos do século XIX foram herdeiras e construtoras do bem viver rural e precursoras das CEBs de hoje. Da afinidade entre o projeto do bem viver e o projeto das CEBs, emergem eixos comuns. Primeiramente, a simplicidade garante a dignidade da vida para todos. Essa simplicidade nos faz gastar o necessário para todos. Ela não é uma extensão da miséria ou da pobreza; pelo contrário, ela faz todos viverem melhor com menos e em equilíbrio com a vida em sua totalidade.

A simplicidade é vivida em comunidade que protege contra as tendências de apropriação privada dos bens do planeta Terra através de indivíduos isolados. As comunidades incentivadas pelo padre Cícero viviam segundo um código ecológico ainda hoje válido. O comunitarismo protege contra a emergência permanente de uma sociedade de classe. Tanto nas comunidades nordestinas do século XIX que os beatos animaram, como no paradigma do bem viver almejado pelo mundo andino e nas CEBs de hoje, a vida é marcada pelo trabalho, pela mística e pela redistribuição dos bens. O fracasso dessa redistribuição dos frutos do trabalho seria o fracasso do projeto comunitário como tal. Todos esses projetos (comunidades dos beatos, comunidades do bem viver e CEBs) desencadearam lutas contra a modernização na qual está embutida a promoção individual e concorrencial.

Sumak Kawsay

Na base do bem viver das comunidades está o equilíbrio entre os saberes ancestrais e os científicos.

O sumak kawsay faz parte daquela sabedoria que a humanidade adquiriu ancestralmente nas relações vividas e transmitidas entre gerações. A ciência é parte complementar desse saber adquirido. O equilíbrio vivencial encontra-se nas relações que aparentemente são caracterizadas por oposições ou contradições: o indivíduo se desenvolve na comunidade, o trabalho integra o lazer (dança, música, arte), o jejum faz parte do comer. O equilíbrio entre essas oposições garante a vida em sua plenitude.

Nos três tipos de comunidades (comunidades dos beatos, comunidades do bem viver e CEBs) prevalece a comunicação oral. O bem viver comunitário exige a superação dos conflitos pelo diálogo e a participação de todos e todas. Essas práticas de oralidade apontam para uma espécie de “democracia participativa” que questiona a escrita e a delegação representativa da ação.

Vai fazer 60 anos que Lévi-Strauss, em seu Tristes Trópicos, nos lembrou: a escrita “parece favorecer a exploração dos homens, antes de sua iluminação. Essa exploração, que permitia reunir milhares de trabalhadores para obrigá-los a tarefas extenuantes [...]. Se a minha hipótese for exata, é necessário admitir que a função primária da publicação escrita foi a de facilitar a servidão”.

Por fim, ao não se realizar historicamente em sua plenitude, o bem viver das comunidades tem no seu horizonte rupturas sistêmicas e conversão pessoal. Ruptura e conversão têm dimensões religiosas, sociais, políticas, éticas, econômicas e escatológicas.

IHU On-Line - Este ano o Intereclesial ocorreu em Juazeiro do Norte, terra de Padre Cícero, um religioso que por muitos anos foi recusado pela Igreja. Atualmente, o Vaticano prepara a reabilitação e a possível canonização do padre. Independentemente da decisão de Roma, no entanto, para seus milhares de fiéis espalhados pelo país, Padre Cícero já é santo. Qual a importância deste reconhecimento oficial?

Paulo Suess – A canonização do padre Cícero não acrescenta nada às curas, graças e consolos que o povo recebe de seu Padim. Mas o povo quer partilhar as suas graças recebidas com toda a Igreja em busca de sua conversão pastoral. O primeiro milagre de Juazeiro do Norte aconteceu na hora da comunhão, da eucaristia, da ação de graças.

Entre as três forças (o Estado, a Igreja e o Povo), os beatos, via de regra, foram questionados pelos seus poderes políticos e eclesiásticos. Não foi diferente com Padre Cícero, que nasceu em 1844, em Crato, no Ceará. Juazeiro do Norte, onde morreu, em 1934, originalmente pertenceu a Crato, de onde só em 1911 foi emancipado. Por 11 anos e a pedido do povo, o Padre Cícero, que desde 1872 era morador de Juazeiro, foi seu primeiro prefeito.

A partir de 1872, Cícero desenvolveu intenso trabalho pastoral, com pregações, visitas domiciliares e confissões. Os peregrinos e retirantes foram recebidos em Juazeiro com dignidade. Nunca o padre Cícero mandou alguém de volta para os territórios da fome. Todos foram assentados em comunidades de oração e trabalho.

Os milagres do Padrinho do Nordeste

Seguindo a experiência do Padre Ibiapina, Cícero recrutou mulheres solteiras e viúvas para ajudá-lo nos trabalhos pastorais. No dia 1º de março de 1889, ao participar de uma comunhão geral oficiada pelo Padre Cícero na Capela de Nossa Senhora das Dores, a beata Maria de Araújo, ao receber a hóstia consagrada, não pôde degluti-la, pois a hóstia se transformou em sangue.

O fato se repetiu várias vezes e causou perplexidade na casa episcopal de Fortaleza. Em plena época de romanização, milagres poderiam acontecer na Europa, em Lourdes (11-02-1858) e mais tarde em Fátima, mas não em Juazeiro do Norte. As censuras eclesiásticas de Fortaleza e Roma não se demoraram. O bispo de Fortaleza, D. Joaquim José Vieira, se mostrou muito irritado com o “milagre” de Juazeiro do Norte. O Padre Cícero foi suspenso de ordem. Durante toda sua vida tentou em vão revogar essa pena.

Cem anos depois, o milagre de Juazeiro passou a ser novamente estudado e as conclusões mostram que não houve embuste atribuído ao Padre Cícero. A grande mudança na abordagem do “caso Cícero” veio com a sedimentação do Vaticano II e com a atitude do atual bispo de Crato, Dom Fernando Panico, em 2001. No Concílio, a Igreja católica procurou fortalecer as Igrejas locais e superar a fase da romanização anterior; fortaleceu a voz do povo de Deus, sobretudo a dos leigos.

Os romeiros de Juazeiro do Norte tiveram confirmadas a sua voz teológica, a sua infalibilidade no ato da fé (in credendo): “O conjunto dos fiéis, ungidos que são pela unção do Santo, não pode enganar-se no ato de fé”. O povo de Deus recebeu do Espírito o “senso da fé”. O Papa Francisco, que enviou aos participantes do 13º Encontro Intereclesial das CEBs uma mensagem animadora, diria: “faro da fé”. Tudo isso foi confirmado pelo bispo de Crato, Dom Fernando, que atribuiu sua cura de um câncer, que parecia incurável, à intercessão do Padre Cícero.

A fidelidade do povo simples, que sempre se soube amparado por seu Padim, e a humildade e gratidão de Dom Fernando conseguiram abrir as portas para a reabilitação e, quem sabe, para a beatificação oficial do Padre Cícero. O “faro da fé” do povo de Deus é como um GPS que indica ruas e veredas da fé. A canonização poderá confirmar esses caminhos e veredas.

IHU On-Line - A experiência mística nordestina é marcada por beatos, padres e outros personagens emblemáticos que se envolveram em diversas lutas sociais. Como esta mística se caracteriza? De que forma ela se diferencia daquela encontrada no restante do Brasil?

Paulo Suess – A “mística nordestina” precisa ser analisada em sua grande diversidade. Comum à maioria dessas experiências é o “comunitarismo interno” e o “ceticismo externo” dispensado pela Igreja oficial, romanizada e distante do povo simples. Ao desenhar uma tipologia dessas místicas podemos elencar cinco grupos diferentes.

Fé e fome

Primeiramente, o grupo “fome-fé”, cuja organização comunitária, originalmente, acolheu os retirantes das secas e migrantes em busca de condições de uma vida digna. O Padre Ibiapina foi um dos primeiros a se dar conta de que a fome não pode ser combatida somente com fé. Ele acrescentou o que aprendeu na casa dos beneditinos, cujo lema fundacional é “reze e trabalhe” (ora et labora). Nessa casa funcionava a Faculdade de Direito, e Ibiapina ampliou o binômio “fome-fé” por dois componentes essenciais: “trabalho” e “vida em comunidade”. Seu espírito de uma mística articulada com necessidades históricas concretas percorreu todo o sertão.

O resultado de todas essas comunidades guiadas por fé, fome, trabalho e vida comunitária era a possibilidade de a festa fazer um eixo estruturante da vida. Geralmente, quando se fala da mística nordestina, pensa-se nesse grupo “fome-fé-trabalho-vida comunitária-festa”, composta pelos padres Ibiapina e Cícero, pela beata Maria de Araújo como pars pro toto para tantas outras beatas que sustentaram o trabalho comunitário e social, e pelo beato Zé Lourenço.

Messianismo

Ao lado dos grupos “fome-fé-trabalho-comunitarismo-festa” devemos lembrar o grupo da “pedra do Reino”. Durante três anos, de 1835 a 1838, em Pernambuco, uma comunidade com cerca de mil pessoas morou próximo às pedras de 30 e 33 metros de altura. Sua crença era baseada numa visão messiânica, com raízes no sebastianismo de Portugal. Dom Sebastião foi o rei português morto em 1578 quando, aos 24 anos, se lança numa Cruzada, rumo ao Marrocos. Seu corpo nunca fora encontrado e sua volta, sempre esperada.

No sertão pernambucano, o jovem João Antônio foi o primeiro a pregar a volta do rei Sebastião para consertar a precariedade da vida social. Seu sucessor, que rachou radicalmente com a Igreja Católica institucional, foi o cunhado João Ferreira. O fanático João Ferreira reunia seus seguidores em torno de um grande rochedo (a "Pedra do Reino") e dizia que, para que o rei Sebastião revivesse e pudesse realizar o milagre da riqueza, era preciso que a grande pedra ficasse totalmente tingida com sangue humano.

Quem doasse o sangue para a volta do rei seria recompensado: velhos ressuscitariam jovens; pretos voltariam brancos; e todos, além de ricos, seriam imortais na nova vida. Famílias empobrecidas de agricultores, com a última camisa da esperança, acamparam em volta da rocha e passaram a aguardar o milagre. A espera terminou com o massacre da Pedra do Reino, promovido por João Ferreira. Entre os dias 14 e 16 de maio de 1838, 53 pessoas foram sacrificadas. Uma patrulha do exército massacrou os sobreviventes.

A este leque de místicos nordestinos pertence também o movimento messiânico de Antônio Conselheiro (1830-1897), fundador da Cidade Santa de Belo Monte, destruída na “guerra santa” de Canudos (1897), e o capuchinho italiano Frei Damião, com uma mensagem de conteúdo moral, apologético e espiritualista que divulgou em Santas Missões, confissões, celebrações eucarísticas, sempre convidando à conversão. Por causa de sua mensagem estritamente religiosa, Frei Damião foi um dos poucos “beatos” do Nordeste, política e eclesiasticamente, não perseguido. Por causa de sua amabilidade e fidelidade ao seu estilo de peregrino-missionário do Nordeste, o povo o “adorou” como um santo e os governos federal e estadual declararam luto oficial no dia de sua morte.

Cangaço

Nesta ciranda de místicas nordestinas falta ainda a mística guerrilheira do grupo de Lampião. Com certa espiritualidade escatológica e com pitadas de Robin Hood, alegou defender os pobres, espalhando terror. Lampião, em certo momento de suas andanças, chegou também em Juazeiro do Norte (1926), de onde o Padre Cícero, com delicadeza e prudência, logo conseguiu afastá-lo.

Lampião atuou durante as décadas de 20 e 30 do século XX em praticamente todos os estados do Nordeste. Por parte das autoridades, Lampião simbolizava a brutalidade; para uma parte da população do sertão, ele encarnou valores como a bravura, o heroísmo e o senso da honra. Em 1938, Lampião e sua companheira Maria Bonita com mais nove cangaceiros foram assassinados por ordem do Estado Novo.

A mística de Lampião e do cangaço tem traços da mística de certos profetas do Antigo Testamento. Confirmou a experiência de que todas as religiões lutam no decorrer de sua história contra traços de violência embutidos no perfil de seus seguidores. As religiões podem ser amortecedores e articuladores de violência.

A mística nordestina

Cada um dos cinco grupos (Fome-fé, Pedra do Reino, Antônio Conselheiro/Canudos, Frei Damião, Cangaço de Lampião) mereceria uma análise profunda. A partir das respectivas opções político-religiosas, essa análise poderia mostrar as grandes diferenças dessas místicas entre si e com o “restante do Brasil” — por exemplo, com o Contestado de João Maria —, mas também semelhanças significativas: lutas por justiça e lutas justiceiras, messianismos políticos e loucuras messiânicas, pregações alienadas e alienantes, opções suicidas e opções pela vida. Em cada um de nós, a religião pode alimentar desespero e esperança. Saber para que lado do muro se deve pular é decisão da fé. Mas a fé não é necessidade, é opção.

IHU On-Line - Qual sua avaliação sobre o 13º Intereclesial de CEBs? De que forma as discussões apresentadas no evento dialogam com os desafios contemporâneos da Igreja?

Paulo Suess – Através do 13º Intereclesial de CEBs pôde-se mostrar a relevância de processos — e a irrelevância de eventos — para o diálogo com desafios contemporâneos da Igreja. A Jornada Mundial da Juventude, que ocorreu entre 23 e 28-07-2013 no Rio de Janeiro, por exemplo, foi um evento organizado em torno da visita do Papa Francisco, que conseguiu fazer passar a sua mensagem. No entanto, ao lado das belas mensagens de Francisco, o evento deixou dívidas extraordinárias que obrigaram a Igreja local a vender um prédio do hospital Quinta D’Or por R$ 46 milhões. Mesmo assim, ainda restou um rombo de R$ 90 milhões. Já do 13º Intereclesial de CEBs, organizado seis meses mais tarde em Juazeiro do Norte (07 a 11-01-2014), não constam dívidas significativas. O evento reuniu mais de 5 mil pessoas em Juazeiro do Norte (CE), deixou saudade e impulsos para a prática da justiça a serviço da vida.

A partir das experiências de Juazeiro do Norte e do Rio de Janeiro eu arriscaria a tese: “eventos” no âmbito eclesial se tornam, economicamente, cada vez mais insustentáveis e, espiritualmente, com nenhum impacto sobre ações de conjunto dos participantes. Eventos podem ser progressivamente substituídos pela mídia: videoconferências, internet, Facebook, Skype, etc. “Processos” são escolas de vida e fé, portanto, escolas políticas e religiosas, escolas de mística militante missionária, capazes de dar impulsos concretos para a transformação da realidade que oprime os pobres.

No Intereclesial, o diálogo com os desafios contemporâneos da Igreja aconteceu em vários níveis. Numa época de “vacas magras”, mostrou que a autossustentação, articulada com a solidariedade internacional, é capaz de realizar um evento desta magnitude. Além disso, já é uma longa tradição, no processo em que as CEBs se constituíram, que os Intereclesiais nacionais sejam precedidos por encontros nas regiões onde acontece o diálogo real com os desafios contemporâneos da Igreja no mundo de hoje, com seus reflexos nas Igrejas locais.

A Organização do Intereclesial

O Intereclesial Nacional é povoado por delegados que participaram do processo preparatório nas regiões. Eles são os que trazem o mosaico da realidade regional, as vitórias e derrotas, as alegrias e as dores de suas comunidades para o gran finale — em nosso caso, o 13º Intereclesial de Juazeiro do Norte. Em reuniões plenárias, em grupos e subgrupos dos participantes acontece o processo de partilha das diferentes realidades e a troca dos figurinos. Assessores ajudam a integrar as diferentes realidades numa visão global e oferecem impulsos para políticas de ação.

O conjunto do acontecimento de Juazeiro do Norte e de seus encontros preparatórios estava seguindo indicações da V Conferência de Aparecida (2007): seguir Jesus que é o caminho, testemunhar o Deus Amor, que “se mostra mais nas obras do que nas palavras”, anunciar o Reino da vida, denunciar — “como profetas da vida” — a crise civilizatória e as políticas governamentais que beneficiam as elites e não os pobres e, por fim, celebrar o dom da vida.

O processo preparatório dos Intereclesiais, a partir das comunidades e regiões, permite a intervenção permanente da realidade na caminhada. Esse processo próximo às bases permite a autossustentação dos encontros e facilita a articulação entre fé e vida.





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