Raízes do medo: A morte na visão coletiva do Ocidente – I – Por Dhiogo José Caetano

A morte é uma certeza irrefutável, uma verdade universal, comum a toda a humanidade. O ciclo da existência acaba por igualar todos na morte, seja qual for o sexo, a condição social, o tempo histórico. O finito é irremediável para todos, como foi indispensável o próprio nascimento.

A inquietude a respeito da morte foi sempre objeto de grande reflexão do homem, na incerteza do que haveria para além dela. Esta herança milenar sofreu um rude golpe com a modernidade. A sociedade ocidental atual, cada vez mais tentada a prolongar a vida, vai se distanciando da morte, não pensando nela ou procurando esquecê-la. Com o acentuar do laicismo, afirma-se cada vez mais que após a morte nada há mais, o que modifica o comportamento humano e incentiva cada vez mais a viver a vida, a gozar dos prazeres dos sentidos corporais, sem e preocupar com a existência ou não da “alma”. (DELUMEAU, 1989, pp. 121-9)

Com o distanciamento do homem em relação á morte, cria-se um tabu, como se fosse desaconselhável ou proibido falar sobre este tema.

Ao trabalhar a morte como um fenômeno físico e mental, ajuda-nos a elaborar ideias sobre a finitude humana, provocando certo desconforto, pois damos de cara com essa mesma finitude, o inevitável, a certeza de que um dia a vida chega ao fim.

O tema morte não é uma discussão atual, pois foram muitos os filósofos, historiadores, sociólogos, biólogos, antropólogos e psicólogos que discutiram o assunto no decorrer da história.

Philippe Áries (1990) aponta que nós aprendemos na nossa cultura, evitar a dor, e a perda fugindo da morte, criando lacunas onde pensamos estar fugindo dela, deixando de crer na nossa própria finitude.

É possível abordar a relação do homem com a morte em vários aspectos: o biológico, o jurídico, o econômico, o social e religioso. Na obra, o homem diante da morte, de Philippe Áries (1990) podemos perceber o processo de domesticação da morte; ou seja, uma forma de viver com tal fenômeno como algo natural; nascido por ocasiões do trauma primitivo diante do fato inelutável da morte até a incorporação desta na vida humana.

Portanto, podemos notar que o medo é a resposta mais comum diante da morte. O medo de morrer é algo coletivo e universal e na Idade Média todos os seres humanos, independentes da idade, sexo, nível sócio econômico e religioso a temia. A morte era algo que os espreitavam, os obrigando a usar mecanismos de defesa, os quais se expressam através de fantasias inconscientes sobre a morte.   

A postura do homem perante a morte nem sempre foi assim, muito em especial na Idade Média. Com o advento da religião cristã, ao princípio influenciado pelo neoplatonismo de Santo Agostinho (1990), o mundo sensível era apenas considerado uma sombra, um caminho para se passar do sensível ao inteligível, da sombra para a luz. Em vez de procurarem na natureza o seu próprio fundamento, afirmavam que o mundo foi criado num ato de amor, e que esse amor deveria orientar os espíritos de volta para Deus, salvando-os do inferno. Passava a ser dogmático que o Inferno e o Paraíso existiam e eram inseparáveis e eternos. (AGOSTINHO, 1990, pp. 47-9)

Ao analisar a construção historiográfica podemos perceber um homem social que se utiliza de símbolos religiosos voltados para a vida espiritual, em um processo do conhecimento dos mistérios da alma. Tal processo tem por objetivo uma aspiração de uma vida plena. Aqui podemos perceber o quão importante era o fator religioso nessa formação da mentalidade do homem medieval.

A morte é um dos fatores primordiais que leva a humanidade a busca constante do mistério da alma, uma perspectiva religiosa que se formula ao longo da existência; pois a alma não pode entrar no “reino dos céus” por outro caminho se não aquele determinado pela religiosidade de cada indivíduo que se conduz pela fé.

Esta alma religiosa se separa da vida cotidiana buscando fugir dos símbolos do paganismo, tratando de uma permanência na obediência de Deus.

Deste modo, os pensamentos negativos produzido pelo medo vão ser eliminados pelo espírito religioso que busca se tornar um ser bom, domesticado pelas regras e normas da vida social religiosa. (ÁRIES, 1990, pp. 50-4)

Tal ideia se contrapõe a duas perspectivas, uma de eliminar o medo de morrer buscando as coisas do alto, do céu, praticando a fé em um Deus, e a outra se pauta da busca religiosa como um processo de preparação da alma após a morte do corpo físico. (ÁRIES, 1977, pp. 46-8)

Assim, notamos que o homem pode conseguir refrear todos os sentidos e paixões do mundo material, no entanto não poderá fugir da experiência de morrer seja ele um homem religioso ou pagão.

O homem busca negar a existência da morte, se firmando em uma figura divina construída com objetivo de levar a paz, o ensinamento e a prática de renovação da existência em um sentido plural de sociedade.

Mesmo o homem mostrando controle sobre o mundo a sua volta, tendo a inteligência de julgar tudo, e sabendo com clareza que será julgado pelo espírito de Deus, que não promove uma distinção entre etnias ou condição social.

Aqui compreendemos o que foi mencionado na primeira parte sobre o que o homem ocidental medieval entende da alteridade. Mesmo o diferente, “o outro”, não está livre disso: todos um dia terão o mesmo fim: a morte.

A inteligência do homem pauta-se em obedecer às regras que lhe foram passada como algo “justo e verdadeiro” (ÁRIES, 1990, pp. 70-6). Pois o homem constitui uma imperfeição julgada e considerada pecaminosa perante o pensamento religioso.

Deste modo, o homem tem uma visão construída á respeito da morte, algo renovado e interpretado de forma variada, mesmo em se tratando do coletivo medieval, como afirma Santo Agostinho (1990) o homem precisa enunciar tudo pelo mundo material, um abismo do mundo concreto e a cegueira da carne. (AGOSTINHO, 1990, p. 402)

Ao mesmo tempo em que crescem e multiplicam as gerações dos homens, crescem também os “números de medrosos” que utilizam de alegorias, reais que possibilitam a compreensão das práticas e normas a serem seguidas ao longo da existência, formas que também podem possibilitar a libertação da alma do corpo material.

O homem em sua tradição receberá traços de uma visão construída em sua sociedade como fonte de defesa e de entendimento coletivo dos indivíduos que se aliam para concretizar o voto á Deus ou á algum santo. Práticas pregadas como uma verdade, uma alegoria que pretende a misericórdia divina.

Assim, o homem se fundirá em meio ao medo, a paixão pela “verdade”, a busca do domínio da fé e da obediência á Deus. (DELUMEAU, 1990, p. 39)

Contudo, este homem “religioso e medroso” se equilibra na renovação, na imagem do ser divino que é construído na visão diferenciada do mundo material. Nesta perspectiva o homem busca fugir das coisas terrenas voltando para as coisas de Deus.

Portanto, os homens vivenciam o medo construído e transferido de outro homem como um mecanismo de defesa, ideias que tem por base o controle da sociedade, agindo como fatores que possibilitam a reflexão e entendimento do mistério do medo de morrer.

(Dhiogo José Caetano, professor, escritor, jornalista)



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