Essenciais nas escolas, professores são profissionais de segunda classe
Das 20 metas estabelecidas pelo Plano Nacional de Educação (PNE) que tramita no Congresso Nacional há quatro anos, a que equipara o rendimento dos professores ao de outras categorias com escolaridade equivalente é a que terá maior impacto na melhoria do ensino público brasileiro.
A opinião é do presidente da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca), José Marcelino de Rezende Pinto, que avaliou o impacto financeiro do PNE numa perspectiva de superação do déficit de atendimento e de um ensino de qualidade.
“O grande responsável pelo aumento da qualidade da educação é o aumento da qualidade do trabalho do professor”, avalia Marcelino, que é também integrante da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e docente no campus de Ribeirão Preto da USP.
“Não é você colocar um giz na mão
do professor, que é um trabalhador essencial para o desenvolvimento do país, e
achar que isso é suficiente para que ele possa prestar um trabalho de
qualidade. É preciso que ele tenha condições para trabalhar de forma confortável
e empolgante”, diz a presidenta da União Nacional dos Estudantes (UNE),
Virgínia Barros.
Entre trabalhadores, estudantes e
analistas do setor, o consenso é que a equação depende diretamente da qualidade
das condições salariais e de trabalho de quem tem sob sua responsabilidade
ensinar a ler, escrever, fazer contas e, mais que isso, contribuir para a
formação de cidadãos e de futuros profissionais. Nobre e estratégica em
qualquer projeto de nação, porém, a profissão é cada vez mais desprestigiada no
país e também a menos atrativa, o que preocupa gestores, que temem por um
colapso. E não faltam motivos para a carência cada vez maior de mestres em sala
de aula.
De acordo com uma estimativa do
impacto financeiro do PNE, que leva em consideração dados de 2009 da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, elaborada pelo presidente
da Fineduca, um professor dos anos finais do ensino fundamental, que precisou
se graduar numa faculdade para ocupar a função, ganha menos que um profissional
que não tem a mesma exigência para exercer seu ofício.
Com salário médio mensal de R$
1.603,00 na época em que o estudo foi feito, ele ganhava menos que um caixa de
banco, profissão que dispensa nível de formação mínimo e que um técnico em
química, com nível médio de escolaridade; o equivalente a 3/4 da remuneração de
jornalistas; e menos que a metade do que ganham economistas, administradores ou
advogados.
De modo geral, segundo o Pnad, a
média salarial dos professores da educação básica no Brasil equivale a pouco mais
da metade (59%) da de outros profissionais com nível superior, como engenheiro
civil e médico. Dez anos antes, a diferença era de 49%, segundo o sindicato dos
professores da rede estadual de São Paulo, a Apeoesp.
Como acontece no resto do
país, com raríssimas exceções, no estado mais rico da federação os
professores, para compensar os baixos salários, enfrentam longas jornadas e
chegam a trabalhar em diversas escolas, a maioria delas sem infraestrutura nem
condições adequadas.
São comuns ainda salas de aula mal ventiladas e sem
conservação, falta de laboratórios, de bibliotecas, quadras para prática
esportiva e outros equipamentos necessários para a efetividade do processo de
ensino e aprendizagem.
O resultado é o adoecimento: depressão, síndrome de burnout,
cordas vocais afetadas, tendinites, problemas de coluna e outros, que os
afastam da sala de aula, prejudicam ainda mais a educação oferecida aos filhos
de quem paga proporcionalmente mais impostos no país.
Mais Médicos, Mais Professores
“No Brasil, o piso para jornada
de 40 horas no magistério é R$ 1.600”, destaca a presidenta da União Nacional
dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), Cleuza Repulho.
“Vivemos
recentemente um debate intenso em torno do programa federal Mais Médicos, que
oferece bolsa mensal de R$ 10 mil reais para 40 horas semanais de trabalho. E
para ser médico, alguém teve de alfabetizá-lo antes. Não se trata de quem é
mais importante, até porque temos necessidade de profissionais dessas duas
categorias nos municípios brasileiros.”
Para a dirigente, não têm mais
lugar discussões sobre o desejo ou não desses profissionais de ir para a sala
de aula.
“O fato é que já não há professores. As turmas dos cursos de
licenciatura em Física, por exemplo, terminam com poucos alunos formados, que
em geral vão trabalhar na área de pesquisa e não no magistério. Então nós já
temos um apagão desses profissionais; estamos a caminho de um colapso”, alerta
Cleuza, que deposita suas esperanças em recursos que deverão vir dos royalties
do petróleo, apesar das muitas dúvidas a respeito de quando finalmente
começarão a chegar à escola e, mais do que isso, até que ponto ajudarão a União
a elevar para 10% sua contribuição no financiamento à escola pública, a grande
reivindicação do PNE.
“A situação é preocupante especialmente quando as
políticas públicas seguem no caminho de incluir mais crianças no sistema de
ensino, com políticas como a obrigatoriedade da matrícula de crianças de 4 e 5
anos a partir de 2016, que vão demandar ainda mais recursos para o desenvolvimento
e a manutenção do ensino”, diz.
Reverter a situação, atrair
profissionais para o magistério e melhorar o desempenho da educação nacional,
na opinião da dirigente da Undime, depende também da oferta de plano de
carreira e de salários atrativos.
“Não podemos defender a ideia de que para ser
professor basta vocação e amor”, diz. “Vocação não paga luz, água e nem compra
comida. E professor é um profissional, que deve ser cobrado como tal e do mesmo
modo receber conforme o seu trabalho. Ninguém quer ser operado por um médico
que tem amor à profissão mas não se formou para trabalhar.”
Salto de qualidade
Pelas projeções de José
Marcelino, da Fineduca, como os salários dos professores e dos demais
trabalhadores do setor, como diretores e coordenadores pedagógicos, representam cerca de 2/3 dos gastos com educação, colocá-los no patamar de
remuneração dos profissionais com nível de formação equivalente, superior,
implica em praticamente dobrar os seus salários, o que demanda mais
investimentos do poder público no setor.
Segundo ele, a única forma de
ampliar significativamente a remuneração desses profissionais e dar um salto no
padrão de qualidade da escola pública é ampliar o valor gasto por aluno, que no
Brasil corresponde a 25% de um estudante do Chile e do México, tema de outra
reportagem desta série.
Enquanto o debate histórico se
arrasta e não são injetados novos recursos pelo governo federal, os
trabalhadores do setor seguem na busca da efetivação de direitos já
conquistados. O presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em
Educação (CNTE), Roberto Franklin de Leão, reforça a necessidade da implementação,
em todo o país, da Lei do Piso Salarial (Lei 11.738, de 2008), que estabelece
que os professores não podem receber menos de R$ 1.567,00 por uma jornada de 40
horas, das quais um terço devem ser destinadas a atividades fora da sala de
aula, como planejamento e atendimento de alunos e pais, por exemplo.
“O piso é importante porque é a
base da carreira. A situação está tão deteriorada que o piso nacional
corresponde ao teto pago em muitas localidades brasileiras. E o professor
precisa de estímulos para evoluir na carreira, com mecanismos claros para essa
evolução, que permitam perspectivas de futuro na carreira”, diz.
De acordo com o dirigente, os
salários são baixos em todo o país, com jornadas que se estendem por até mais
de 64 horas semanais, mais que o dobro do que defende a CNTE.
Uma das raras
exceções, segundo Leão, é a rede do Distrito Federal, onde os salários estão
pouco acima da média e o plano de carreira contempla padrões razoáveis de
evolução. Faltam planos de carreira com boas perspectivas de desenvolvimento,
que instiguem o professor a se aperfeiçoar, e que valorize seu trabalho com
progressões salariais que não estejam atreladas a bônus e prêmios.
Conforme destaca, os salários dos
professores no Brasil são compostos por diversos tipos de bônus e gratificações,
calculados sob os critérios mais variados. Em média chegam a representar 60% do
salário, mas há casos mais graves em que compõem 100% do que o profissional
recebe por um mês de trabalho. O problema é que, como não são incorporados aos
salários, são cortados do valor das aposentadorias.
Outro desafio é a elaboração de
planos de carreira em todo o país que considerem as especificidades dos
profissionais da educação, os do magistério e também os servidores
responsáveis por serviços administrativos, de limpeza, transporte e
alimentação, entre outros.
O setor defende um planejamento que contemple a
progressão por tempo de serviço, por titulação e aperfeiçoamento de habilidade, até mesmo por merecimento, com prazo de duração de no máximo dez anos. Isso
para considerar possíveis mudanças na legislação, na arrecadação e demandas no
atendimento.
Subemprego
Para se ter uma ideia do que
acontece no resto do país, em São Paulo, estado mais rico da federação, perto
de metade dos professores são contratados temporariamente, em situações
precárias, e sequer chegam a receber férias, conforme a CNTE, que defende a realização
de concursos assim que o número de trabalhadores da educação contratados nessas
condições corresponda de 5 a 10% do total da rede.
Leão diz que, para complicar, os
profissionais do setor não têm o direito de negociação coletiva. “Somos
obrigados a fazer greve para chamar a atenção do poder público e ser recebido
para apresentar as reivindicações. Depois, para ter resposta quanto à pauta
apresentada. Depois, outra para que o acordo seja cumprido. É um processo muito
desgastante, que leva a muitas paralisações que não interessam a ninguém e não
contribuem para melhorar a educação”, afirma.
Exame de admissão
A atual situação da educação
pública, que inspira saudosistas de uma época em que a escola mantida pelo
governo era melhor que a particular e que enche de argumentos os sempre de
plantão defensores da privatização dos serviços públicos, tem origem em
governos autoritários, preocupados com a ameaça real de um povo educado e
cidadão.
Até o começo dos anos 1970, época do chamado milagre econômico, a
escola não era para todos. Feita pela e para, a elite, tinha em sala de aula
os filhos dessa elite, ensinados por professores que vinham dessa elite.
“Havia exame de admissão para
selecionar os alunos. Tinha vaga na escola quem passava no exame. Os reprovados
iam para a escola particular ou ficavam sem estudar. A maioria não prosseguia
os estudos”, conta Roberto Leão.
“Era uma época em que apenas o primário era
obrigatório. Depois tornou-se obrigatório o ensino fundamental de 8 anos. O
problema é que a ampliação não foi acompanhada de recursos proporcionais a esse
crescimento. A brincadeira de incluir mais gente na educação resultou em
escolas sem condições, com professores sem condições de trabalhar, sem salários
decentes, que foram sendo deteriorados pela inflação e pelo arrocho salarial.”
As más condições dentro das
escolas começaram a vir a público a partir de 1978, com as primeiras e grandes
greves, como as deflagradas no estado de São Paulo, no final do governo Paulo
Egydio Martins (1975-1979) e durante a gestão de Paulo Maluf (1979-1982), que
na época cunhou a célebre frase “as professoras não ganham mal, são mal
casadas”. Segundo Leão, os professores acumulam perdas salariais desde aquela
época, que nunca foram recompostas.
Para ele, no entanto, há esforços
traduzidos em programas e aumentos, ainda tímidos, no financiamento. Como
destaca, o MEC teve orçamento triplicado de 2011 para cá e há diversas
iniciativas, inclusive para qualificação dos trabalhadores das escolas. No
entanto, dependem de convênios que muitas vezes deixam de ser assinados por
questões partidárias.
“Não existem mais que 300 municípios brasileiros que
conseguem viver às suas próprias custas, somente com os impostos que arrecadam.
Isso precisa ser resolvido, por reformas nas leis, para que a educação pública
não seja prejudicada por disputas político-partidárias.”
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