Igrejas, golpes e ditaduras no Brasil – Por José Lisboa Moreira de Oliveira
No
último artigo abordei a questão dos golpes e das ditaduras no Brasil.
Esforcei-me para mostrar que essa é uma prática comum há mais de quinhentos
anos, desde que esse lugar, que hoje se chama Brasil, foi invadido pelos
portugueses.
Neste artigo quero refletir sobre a atitude das Igrejas diante
desses golpes. Chamo a atenção para o plural, pois aqui quero falar de todas as
Igrejas e não apenas da Igreja Católica Romana.
Até
o final do Império, a Igreja Católica Apostólica Romana era a religião oficial
do Brasil. Por essa razão ela detinha também a hegemonia e, com isso, impedia
ostensivamente o ingresso e o avanço de outras Igrejas no país.
Somente no
final do Império e no início da República as Igrejas protestantes históricas
começaram a ganhar visibilidade por meio dos imigrantes europeus que se
estabeleceram no sul do Brasil, particularmente os alemães. Por esse motivo
podemos afirmar que a Igreja Católica Romana foi a única Igreja a presenciar e
a apoiar os golpes aplicados nesse período.
Sabemos
que durante o período da colonização e do Império a Igreja Católica Romana foi
totalmente conivente com o que aconteceu. Naquele período era normal a política
da boa convivência entre a cruz e a espada.
A Igreja Católica Romana
simplesmente ratificava o que o Estado e a elite realizavam. Algumas vozes se
levantaram contra os abusos, mas, além de serem vozes isoladas, foram
totalmente reprimidas. É o caso, por exemplo, do jesuíta Antônio Vieira que,
por denunciar os desmandos e horrores contra os indígenas e contra os judeus
foi incompreendido, perseguido e, por fim, silenciado. Escapuliu por pouco da
Inquisição.
As
atrocidades praticadas pelos portugueses, no momento da invasão do Brasil e
durante todo o período colonial, foram amparadas por documentos pontifícios.
Darcy Ribeiro, no seu livro: O povo brasileiro (São Paulo: Companhia de Letras,
2007, 2ª edição p. 36-37), nos lembra que por trás da brutalidade dos lusitanos
estava o respaldo de textos papais. O primeiro deles era a Bula Romanus
Pontifex, do papa Nicolau V, datada de 8 de janeiro de 1454, que afirmava:
"concedemos ao rei Afonso a plena faculdade, entre outras, de invadir,
conquistar, subjugar a quaisquer sarracenos e pagãos, inimigos de Cristo, suas
terras e bens, a todos reduzir à servidão e tudo praticar em utilidade própria
e dos seus descendentes [...]. Se alguém, indivíduo ou coletividade, infringir
essas determinações, seja excomungado”. O outro era a Bula Inter Coetera, do
papa Alexandre VI, promulgada, não por acaso, em 4 de maio de 1493, após a
invasão do nosso continente por Américo Vespúcio, e que dizia o seguinte:
"E a vós e a vossos herdeiros e sucessores [...], pela autoridade do Deus
onipotente a nós concedida em São Pedro, assim como do vicariado de Jesus
Cristo, a qual exercemos na terra, para sempre, [...] constituímos [...]
senhores, com pleno, livre poder de sujeitar a vós, por favor da Divina
Clemência, as terras firmes e ilhas sobreditas e os moradores e habitantes
delas, e reduzi-los à fé católica”.
Como
se pode ver, esses textos pontifícios autorizavam toda e qualquer brutalidade.
Tudo em nome de Deus, e impedir a brutalidade significava ser excomungado. As
expressões invadir, conquistar, subjugar, sujeitar, reduzir à servidão, tudo
praticar em utilidade própria, não foram inventadas por mim, mas tiradas
literalmente de documentos papais. Os ingênuos e os católicos conservadores
argumentam que os papas não teriam pensado em atrocidades no momento em que
escreveram essas "autorizações”.
Teriam sido os espanhóis e portugueses a
praticar os exageros. Esquecem que, naquela época, essa era a forma mentis, ou
seja, o modo de pensar de toda a Igreja, particularmente de sua hierarquia.
Estávamos ainda no período da Inquisição, e a tortura, o assassinato, a
brutalidade contra os "infiéis e pagãos” eram consideradas normais.
É
verdade que alguns papas, vindo a saber de tais atrocidades cometidas nas
"terras de Santa Cruz”, se pronunciaram sobre o assunto, determinando
menos sofrimento e mais cuidado. Mas a Igreja Católica nunca tomou medidas
sérias efetivas para pôr fim ao massacre dos indígenas e dos negros.
Sempre tolerou
a "máquina de moer gente” (Darcy Ribeiro), na qual havia se tornado o
Brasil colônia. Mesmo porque vigorava então a lei do padroado, um acordo
instituído entre a Santa Sé e Portugal, através do qual o papa delegava ao rei
de Portugal o poder de organizar e financiar todas as atividades religiosas nos
domínios e nas terras invadidas pelos portugueses. Tomar medidas efetivas
contra os massacres realizados pelos portugueses aqui no Brasil seria
descumprir o padroado e criar sérios problemas para a Santa Sé, tanto de ordem
política como econômica. Desse modo a Igreja Católica Romana preferiu se omitir
e quase sempre silenciar diante dos golpes e atrocidades praticadas no período
da colonização.
Isso
continuará por todo o período do Império, ocasião em que os documentos papais
ainda são tidos como válidos e continuará vigorando o padroado, mudando apenas
o seu executor. Ao invés do rei de Portugal, o imperador do Brasil passa a ser
o organizador e financiador da Igreja Católica.
Todos silenciam mesmo porque,
como nota Darcy Ribeiro, as disposições papais terminaram por criar uma cultura
de submissão e resignação. Ainda hoje esse silêncio é a norma vigente no Brasil
que garante o exercício arbitrário do poder sobre o povo, tirando-lhe a
possibilidade de traçar seu próprio destino, vendo as pessoas apenas como meros
servidores dos poderosos.
Com
o golpe da proclamação da República se decreta também a separação entre Igreja
e Estado. Mas a Igreja Católica não se deu por vencida e continuou frequentando
a "cozinha” dos poderosos e dos governos, na esperança de que estes
depositassem alguma coisa de substancioso em seus cofres. Por essa razão, de um
modo geral, ela, seja através de sua hierarquia seja através da maioria
absoluta dos católicos, continuará apoiando todos os golpes, inclusive aquele
de 1964.
Se houve uma posição diferente a partir do final da década de 1960,
isso não se deve a uma mudança copernicana na posição da Igreja Católica no
Brasil. Aconteceu antes de tudo pela atuação inesperada do Espírito Santo
através do Concílio Vaticano II e de Medellín, pela ação de algumas eminentes
figuras do laicato católico, bem como pela coragem de bispos como Dom Hélder
Câmara, Dom Aloísio Lorscheider, Dom Ivo Lorscheiter, Dom Paulo Evaristo Arns,
Dom Luciano Mendes, Dom Tomás Balduíno e Dom Pedro Casaldáliga. Foram os anos
áureos da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) que enfrentou
corajosamente a ditadura e denunciou seus desmandos.
Mas,
de um modo geral, a maioria dos católicos (incluindo muitos padres e bispos)
continuou omissa e apoiando os golpes. Mesmo recentemente é possível notar como
a quase totalidade dos católicos se mostra indiferente para com o tema da
democracia e da cidadania. A atuação de João Paulo II e da Cúria Romana nos
últimos trinta anos permitiu que essa mentalidade conservadora se
intensificasse.
As redes católicas de televisão, por exemplo, salvo um ou outro
caso, se associam à mídia golpista e em nada colaboram para uma autêntica
formação da consciência crítica cidadã. Com seus programas, quase todos melosos
e alienados, contribuem para que o público católico continue ultraconservador e
direitista, tanto do ponto de vista religioso como político.
No
que diz respeito aos protestantes históricos, também eles chegam ao Brasil com
uma visão semelhante, mesmo porque, sendo minoria, não queriam um confronto
direto com o poder. Eram igualmente herdeiros do eurocentrismo e das tradições
conservadoras de seus países de origem, com aquela concepção de que a raça
ariana era a autêntica raça.
Isso ficou visível durante a Segunda Guerra
Mundial, quando os protestantes alemães silenciaram diante das atrocidades de
Hitler. Por isso, recentemente, as Igrejas protestantes alemãs recitaram
publicamente um "mea culpa”, reconhecendo que, enquanto cristãos, foram
omissos e indiferentes aos horrores praticados por Hitler. É verdade que na
Alemanha alguns protestantes se rebelaram contra o nazismo.
A figura mais
eminente foi Dietrich Bonhoeffer, pastor luterano e teólogo, fuzilado pelo
regime. Mas a maioria absoluta dos protestantes não se incomodou e nem se
mobilizou contra Hitler. Aqui no Brasil alguns pastores e lideranças de Igrejas
protestantes históricas se posicionaram contra a ditadura de 1964.
Vale
mencionar o nome do presbiteriano Jaime Wright, que juntamente com Dom Paulo
Evaristo Arns e o rabino Henry Sobel, desenvolveu uma ação de denúncias e de
lutas contra a ditadura, culminando no Projeto: "Brasil: nunca mais”. Mas
isso não significa que a totalidade dos protestantes brasileiros pensava e agia
do mesmo modo.
No
que diz respeito às Igrejas evangélicas e pentecostais a questão é mais
complicada, uma vez que hoje é possível comprovar que muitas delas chegaram ou
surgiram na América Latina com o propósito explícito de alienar as pessoas e de
destruir toda atividade daqueles cristãos que lutavam contra os horrores do
capitalismo. Délcio Monteiro de Lima, no seu livro: Os demônios descem do Norte
(Francisco Alves, 1987), provou como os Estados Unidos, especialmente na era
Nixon e Reagan, montaram um plano para financiar e dar suporte à direita
católica e a Igrejas evangélicas e pentecostais que conseguissem tirar do povo
toda e qualquer consciência crítica. Hoje já temos muitos evangélicos sérios,
bastante comprometidos com a luta pela democracia e pela cidadania.
É o caso,
por exemplo, dos Evangélicos pela Justiça, os quais possuem um site no qual se
pode ver a atuação deles. Mas, infelizmente, eles ainda são uma minoria, pois
os evangélicos, de um modo geral, manipulados por certas lideranças midiáticas,
continuam indiferentes e insensíveis às questões da cidadania e possuem uma
visão política ultraconservadora e direitista.
A
conclusão é dura, mas inegável: todas as Igrejas aderiram e apoiaram os golpes
e, sob muitos aspectos, continuam fazendo o jogo da burguesia e da elite
brasileira. Possuem, pois, uma dívida enorme com o povo brasileiro. Precisam, o
quanto antes, saldar essa dívida, se quiserem continuar sendo Igrejas cristãs e
se quiserem continuar existindo em nosso país. Com o passar do tempo o povo vai
se dando conta disso e vai abandonando-as.
O Censo de 2010 já aponta nesta
direção. Não só os católicos e protestantes históricos, mas também grandes
Igrejas evangélicas começam a perder cada vez mais fiéis. Aumenta o número dos
"evangélicos genéricos”, ou seja, de evangélicos que se declaram tais, mas
não se identificam mais com nenhuma Igreja. E estou convencido de que esse
abandono tem muito a ver com o distanciamento das Igrejas do núcleo essencial
da fé cristã anunciado por Jesus: "Se vocês tiverem amor uns para com os
outros, todos reconhecerão que vocês são meus discípulos” (Jo 13,35).
[José
Lisboa Moreira de Oliveira é filósofo, teólogo, escritor, conferencista e
professor universitário].
Fonte: http://site.adital.com.br
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